sexta-feira, 11 de julho de 2025

Aristóteles, Física e a natureza do tempo (livro IV) - parte final

 

"Se, então, aquilo que é primeiro é a medida do que pertence ao seu gênero, a locomoção circular uniforme é a principal medida, pois seu número é o mais conhecido."

ARISTÓTELES, Física, Livro IV, 14, 223b

Conforme o que foi dito anteriormente, o agora (o instante) é a ligação do tempo, dado que conecta o passado ao futuro e é um limite, embora isso não seja tão evidente quanto no caso do ponto, que é fixo. Segundo esteja dividindo, o agora é sempre diferente, segundo esteja conectando o passado e o futuro, o agora é fixo, como nas linhas matemáticas. Assim, o agora é, por um lado, potencial enquanto divide o tempo, e, por outro, a sua terminação e a sua unidade.

A depender do ângulo sob o qual é encarado, o agora será diferente pelo fato de que cada momento é distinto do anterior e do posterior, e será o mesmo se for o elo que liga os momentos passados aos momentos futuros e se for tomado como o término de um período temporal qualquer. O ponto, destarte, é sempre diferente enquanto divisor de uma linha, mas o mesmo enquanto o termo da linha. 

Outro sentido de agora é o de "fulano virá agora", no qual quer-se dizer que ele virá hoje, e de "fulano veio agora" no qual afirma-se que ele veio hoje. Em ambos, a referência é a um momento próximo do agora tomado como o fim de uma extensão temporal. Diferente do sentido de "em algum tempo", momento indeterminado no passado ou no futuro com referência ao presente. O termo "presentemente" significa algo que está acontecendo. "Repentinamente" refere-se a algum acontecimento que se deu num período de tempo muito curto, quase imperceptível.

Sempre haverá tempo porque sempre há mudança. E será o mesmo tempo ou um diferente se a mudança for a mesma ou diferente. O agora pode ser tanto o fim quanto o início de períodos temporais, mas nunca de um mesmo período simultaneamente. Este agora determinado é o término de um período passado ou o começo de um período futuro. Semelhante à circunferência, que possui em si a concavidade e a convexidade, o tempo está sempre no início e no fim. Eis a razão pela qual o tempo parece sempre diferente.

Aristóteles compara o agora à circunferência porque ambos abrigam aspectos opostos sem contradição. A convexidade não é a concavidade, nem esta é aquela. Só haverá contradição se identificarmos o côncavo ao convexo e vice-versa. O agora que termina um período temporal não é idêntico ao agora que inicia um novo período. Sob essa ótica, o tempo é sempre novo e irrepetível. 

As coisas vem a ser e deixam de ser no tempo. Porém, Aristóteles considera que o tempo é mais propriamente a condição da corrupção das coisas, e é acidentalmente a causa de seu vir a ser. A evidência disso está no fato de que tem de haver mudança ou ação para algo vir a ser, enquanto que nenhuma mudança é necessária para algo corromper-se. Nesse caso, o tempo tampouco age, mas é causa acidental da corrupção.

Qualquer coisa deixada à si mesma corrompe-se depois de algum período. Uma casa sem manutenção (limpeza, consertos, proteção, etc.) degrada-se progressivamente até ficar inabitável. A despeito de depredação ou de desastres naturais, a própria casa vai aos poucos perdendo sua ordem e suas características. Para que viesse a existir, um agente teve de construí-la. A corrupção, contudo, acomete a casa mesmo na ausência de medidas deliberadas. 

Uma vez que o tempo é definido como o número da mudança, surge naturalmente a pergunta sobre qual seria a realidade do tempo se não houvesse quem o contasse. Afinal, a contagem só existe potencialmente até que uma alma dotada de intelecto (νοῦς) realize essa operação. Não havendo ninguém para contar, restaria somente a mudança, da qual o tempo é um atributo (o numerado com relação ao antes e ao depois). 

Aristóteles parece admitir a tese de que o tempo é dependente daquele que o conta. Em outros termos, isso não significaria afirmar que o tempo não existe de forma independente de um intelecto, de modo que no mundo externo nada acontece temporalmente? Aceitar essa interpretação não implicaria numa patente contradição com todo o resto da filosofia realista de Aristóteles exposta até o momento na Física? Se o tempo só existe para nós, não possuindo nenhuma realidade independente de nossas mentes, e se o tempo é a contagem da mudança, então não seria também verdade que, no fundo, toda mudança só existiria na nossa mente?

É preciso recordar que o tempo não se identifica com a mudança. Logo, afirmar a dependência do tempo com relação à mente não é o mesmo que defender que a mudança dependa da mente. Por outro lado, no caso de uma hipótese que concebesse o tempo como uma realidade totalmente desvinculada da mudança, mas dependente da mente humana, então não seria possível admitir qualquer passagem temporal no mundo extra mentis. 

A posição de Aristóteles está no meio dessas duas possibilidades. O tempo não é idêntico à mudança e nem é independente dela. A mudança é uma das condições necessárias do tempo. A outra condição necessária é a contagem, que só se realiza em um intelecto. O fato de não haver quem conte um grupo de dez bois não torna aquela quantidade irreal. O grupo é numerável, porém ainda não numerado. O aspecto formal da numeração (o número contado) permanecerá potencial enquanto não existir quem o atualize, conquanto esteja presente o aspecto material (os bois) no qual a contagem pode realizar-se.

Analogamente, a percepção não acontece se não estiverem presentes como condições necessárias o objeto perceptível e o ser percipiente. Se uma coisa é imperceptível, ela não será percebida por nenhum ser capaz de perceber. Se a coisa é perceptível, ela também não será percebida se não houver um ser capaz de percebê-la. Nada disso implica que a percepção seja uma realidade puramente mental (ou subjetiva, em termos modernos), nem que a percepção resida só nas coisas exteriores à mente.

tempo, enquanto o número numerado da mudança, resulta de uma operação intelectual aplicada a uma realidade externa independente. A mudança será sempre mensurável ainda que não haja qualquer intelecto que a torne mensurada. tempo é a medida de qualquer mudança contínua, não somente a de um tipo específico, seja ela a geração, a corrupção, a alteração, o crescimento ou a locomoção.

É evidente que há várias mudanças acontecendo em simultâneo (ἅμα). Porém, mudanças em coisas diferentes implicam em medições realizadas em coisas diferentes. Haveria, pois, tempos distintos para cada uma dessas mudanças que acontecem simultaneamente? Existiria, talvez, um outro tempo que unificasse a todos eles? Aristóteles responde negativamente a ambas as questões. Tempos simultâneos e iguais em extensão são um só e mesmo tempo. Dois homens que demoram uma hora para percorrer simultaneamente uma determinada distância compartilham um único e mesmo período temporal. 

Já os tempos iguais em extensão, sem serem simultâneos, serão iguais ao menos formalmente, como sete cachorros e sete cavalos são iguais na quantidade, mas não na qualidade. Se um homem percorre determinada distância pela manhã e outro a percorre à noite, e ambos gastam uma hora no percurso, então seus tempos coincidem na quantidade (uma hora)embora não haja um único e mesmo período temporal.

Tipos diferentes de mudança (uma alteração de cor e uma locomoção no espaço, por exemplo) que ocorrem simultaneamente e têm duração igual compartilham um único e mesmo tempo. Também movimentos com velocidades diferentes, mas com duração igual, são um único tempo. Dois barcos que navegam em velocidades diferentes, um mais rápido que o outro, e cujos movimentos têm duração igual, estão no mesmo tempo. Este é idêntico em toda parte porque, apesar de as mudanças serem diferentes e separadas, o número de mudanças iguais e simultâneas é, em toda parte, um e o mesmo. 

Cada coisa é medida por algo que pertence ao seu gênero: a unidade pela unidade, o cavalo pelo cavalo, etc. O tempo, por conseguinte, é medido por um tempo determinado. O movimento que tem um tempo regular mede a quantidade tanto do tempo quanto da mudança. Não existe um tempo que corre independente das coisas, fora da medida da mudança que é numerada com referência a um tempo determinado e regular.*

Para entender esse ponto, é preciso lembrar que a medição não é mais do que a divisão de um contínuo pela repetição da medida (metro, μέτρον)qualquer que ele seja. O que fazemos quando medimos é determinar em quantas unidades da medida pode ser dividido um dado contínuo, repetindo-a sucessivamente até alcançar a totalidade da extensão. O tempo, como toda medida, necessita de um padrão estável para que a medição seja realizada.

Ora, diz o filósofo, aquilo que é primeiro é a medida de tudo o que pertence ao seu gênero, e como o movimento circular é o mais perfeito e o mais regular dos movimentos, ele será a medida do tempo de todas as coisas. As mudanças de alteração, de crescimento e de geração não apresentam a regularidade necessária para servirem de medida. A locomoção, todavia, pode ser regular, e dentre as locomoções que existem no mundo a mais regular e constante é o movimento circular, que não tem começo ou fim. 

Destarte, observa Aristóteles, não é de se espantar que muitos tenham considerado que o próprio tempo fosse o movimento da esfera celeste porque todas as mudanças são medidas por ele. Vem daí também a impressão comum de que as coisas humanas e naturais (como a geração e a corrupção, por exemplo) são cíclicas, dado que seus começos e seus fins são medidos pelo movimento circular dos céus. 

As mudanças deste mundo sublunar são mensuradas pelo movimento celeste, e, em particular (mas não exclusivamente), pelo ciclo regular, ordenado e previsível do Sol. O dia e o ano são medidas (os metros) por meio das quais obtemos o tempo enquanto número numerado do câmbio das coisas
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*Ao contrário da postulação de Isaac Newton, no Principia, da existência de um tempo absoluto independente das coisas.
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domingo, 29 de junho de 2025

Wen Tzu e a flexibilidade do sábio

"Os sábios, à medida que avançam e respondem às mudanças, sempre seguem e não se antecipam. Flexíveis e dóceis, por isso são calmos. Pacíficos e maleáveis, por isso são seguros. Aqueles que atacam o grande e superam o forte não podem rivalizar com eles."

WEN TZU, 9

Livro de Wen-Tzu, clássico do Taoísmo, ensina que "aqueles que alcançam a Via são parcos em ambição, mas fortes no trabalho; suas mentes são abertas e suas respostas são adequadas. Aqueles que são parcos em ambição são flexíveis e indulgentes, pacíficos e quietos, escondem seu desprendimento e parecem inexperientes. Tranquilos e livres, quando agem não perdem o tempo certo."

O sábio perfeito que alcançou a Via (Tao, 道) está no centro do portão onde todas as coisas têm a sua origem. O que mais poderia ambicionar que não fosse, por definição, inferior ao Tao? Sua falta de ambição não é a do desgaste ou do cansaço, mas o desprendimento da plenitude. Quem possui o melhor não tem olhos para o pior. Livre dos desejos egoístas e limitados, seu espírito (心) é vazio, e, feito um espelho sem manchas, pode refletir a realidade integralmente sem as distorções das inclinações e das aversões.

Destituído de ambições, o sábio é flexível, pacífico e quieto, embora exteriormente pareça comum e até mesmo inexperiente. Lieh Tzu, um dos três grandes mestres do Taoísmo, parecia aos olhos de todos o mais comum dos homens. A sua discrição é efeito natural da indiferença ao juízo alheio e às honras humanas. Por qual razão o sábio quereria o reconhecimento dos homens inferiores a ele mesmo?

Somente aquele que enxerga a realidade sem filtros internos é capaz de responder adequadamente às situações da vida. O sábio é flexível, adapta-se aos ritmos naturais e às exigências externas tal qual a água que assume a forma do recipiente que a recebe. Por isso, ele é capaz de responder adequadamente e no tempo certo, o καιρός dos antigos gregos.

Em outro âmbito, um lutador dominado pela ansiedade, pelo medo ou pelo desejo de vencer o adversário permanece dentro de si mesmo, aprisionado em seu mundo interior. Ele não enxerga a situação e nem seu adversário tais como são. Seu espelho é manchado, maculado e incapaz de refletir integralmente o que se posta diante dele. Ou atacará precipitadamente, antes de qualquer movimento do oponente, e, expondo-se, será vítima de um contra-ataque certeiro, ou, preso em sua mente, retesado e rígido, levará tempo demais para reagir e será golpeado.

A mente vazia reflete integralmente a situação, acompanha e espelha cada movimento do adversário, entra em harmonia com ele. Não há nuvens diante do monte Fuji. O ataque do oponente é naturalmente seguido pelo bloqueio e/ou pelo contra-ataque adequado. Não há mais dois lutadores, mas uma só realidade. "Ao enfrentar um adversário, pensamentos de golpear ou de ser golpeado indicam ignorância e ilusão", ensinava o mestre Zen e espadachim Tesshu Yamaoka, da escola Muto-Ryu (não-espada)

"Portanto, a nobreza deve enraizar-se na modéstia, a altivez deve basear-se na humildade. Use o pequeno para conter o grande. Permaneça no centro para controlar o exterior". O sábio que está na Via é nobre e altivo porque é menor que o menor e mais humilde dos seres. Não guarda nada para si, não acumula bens exteriores. O pequeno contém o grande assim como o mínimo movimento é suficiente para se desviar de um golpe impetuoso. 

Somente o vazio pode abrigar o Todo. Permanecendo no centro de si mesmo, sem desvio para cá ou para lá, o sábio controla o exterior, tal qual o ponto adimensional domina toda circunferência que dele parte. O lutador que é pequeno interiormente consegue conter em si todo o cenário que o envolve como alguém que contempla a montanha distante enxerga toda a paisagem sem se fixar em nenhum aspecto em particular. 

"Seja flexível, porém firme, e não haverá força que não possa ser dominada ou inimigo que não possa ser superado". O flexível acompanha as mudanças sem opor-lhes resistências internas e, por isso, é capaz de ser firme quando as condições o exigem. "Responda aos desenvolvimentos, atente aos tempos, e nada poderá feri-lo". As consequências seguem-se de suas causas, desenvolvem-se no tempo, as circunstâncias mudam, e o sábio percebe o câmbio das coisas, e responde a tudo com flexibilidade.

"Aqueles que vencem o menor pela força encontram o impasse quando confrontados com seus iguais. Os que superam os superiores com flexibilidade têm poder imensurável". O homem que opõe à realidade a sua rigidez interior (ou exterior) só consegue superar aquilo que é mais fraco do que ele mesmo. Quando encontra um obstáculo (ou outro homem) de igual poder, as forças equivalentes chocam-se e anulam-se mutuamente. Nenhum resultado é obtido. 

"Quando a árvore é forte, ela quebra". A rigidez e a força são a morte. A árvore que resiste ao vento pela força acaba quebrando. Aquela que consegue envergar-se, assume o forma do vento e, por isso, vence até a tempestade. O lutador que vence um oponente mais fraco somente pela força, vai um dia encontrar um adversário igualmente forte. Se encontrar alguém mais forte do que ele, seu corpo será quebrantado. O flexível desvia-se dos golpes, acompanha os movimentos do oponente e ataca somente quando há o momento certo.

"Tomar a dianteira é o caminho da exaustão. Agir depois é a fonte do sucesso". A vontade de liderar ou a ansiedade para agir conduzem ao cansaço. Ações são empreendidas sem atenção ao tempo e às mutações das coisas, e, por fim, não alcançam seus objetivos, desperdiçando energia e recursos. Agir depois significa acompanhar as mudanças sem se antecipar a elas. 

A flexibilidade, contudo, não é passividade: "As mudanças no tempo não permitem descanso nos intervalos. Aquele que age precipitadamente ultrapassa os limites. Aquele que age tarde demais não recupera". O sábio valoriza o tempo mais do que pedras preciosas. Nada é mais difícil de achar e mais fácil de perder. A flexibilidade do sábio é a harmonização com o tempo das coisas. E sua ação não parte de desejos pessoais e mesquinhos, mas é a não-ação (wu wei, 無為) da simples presença da unidade originária que sustenta todas as coisas.

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sexta-feira, 20 de junho de 2025

Aristóteles, Física e a natureza do tempo (livro IV) - parte 2

"Tempo não é o número com o qual contamos, mas o número das coisas contadas, e isso com relação ao anterior e ao posterior que são sempre diferentes, pois os 'agoras' são diferentes."

ARISTÓTELES, Física, Livro IV, 220b 

Afirma Aristóteles que o menor número, no sentido estrito do termo número, é o dois. Todavia, o número concreto por vezes tem e por vezes não tem uma quantidade mínima. Em se tratando de linha, a menor quantidade com relação à multiplicidade, são duas linhas, enquanto no que tange ao tamanho, não existe uma quantidade mínima porque qualquer extensão pode ser continuamente dividida sem que se alcance nenhum limite para além do qual não se possa continuar dividindo. O mesmo se dá com o tempo, para o qual a quantidade mínima é dois sem que haja qualquer limite no sentido de extensão.

São apresentados nos exemplos acima dois sentidos distintos de número. No primeiro, concebemos a quantidade em termos de unidade ou quantidade discreta, no qual uma linha significa uma unidade. Para que haja o múltiplo, é mister que tenhamos, no mínimo, duas linhas (duas unidades). A linha, então, é tomada como um todo indivisível. No segundo sentido, a linha é considerada enquanto quantidade extensa, como um todo divisível em partes. À medida em que a extensão é dividida sucessivamente, ela diminui em tamanho sem nunca chegar a um ponto indivisível.

Outrossim, a divisibilidade do tempo apresenta também dois sentidos. Enquanto quantidade discreta, o tempo é constituído de pelo menos dois instantes: um agora e outro agora que são as unidades mínimas e indivisíveis que possibilitam a sua contagem. Na sua quantidade extensiva, não existe limite mínimo para a divisão do tempo. Qualquer porção temporal, por menor que seja, é divisível em porções ainda menores, e estas são divisíveis em porções menores, e assim sucessivamente ad infinitum.

Sendo uma extensão, o tempo é descrito em termos de muito ou pouco, longo ou curto, não como rápido ou lento. Aristóteles aponta para o fato de que a velocidade não pertence às categorias da extensão e do número. Inexistem quantidades rápidas ou lentas. Nem a linha e nem o dois deslocam-se de um ponto a outro. Corpos passam de lugar a lugar rapidamente ou lentamente. A velocidade é uma quantidade somente no sentido de que é uma mudança física que tem um aspecto expressável quantitativamente. 

erro categorial (atribuir  à uma categoria da realidade o que é próprio à outra categoria) da afirmação de que quantidades (discretas ou extensas) são rápidas ou lentas está em que o quantitativo é a condição de possibilidade da medição da velocidade. Se esta só pode ser aferida graças à atribuição de certa quantidade, então a quantidade não pode ela mesma mover-se ligeira ou vagarosamente. 

O tempo é o número medido e não a medida com a qual mensuramos a mudança. A distinção aqui é entre número numerante e número numerado. Utilizamos uma unidade qualquer para contarmos as coisas (número numerante), e disso resulta uma quantidade determinada de coisas contadas (número numerado). Apesar de um grupo de homens ser qualitativamente diferente de um grupo de cavalos, eles serão igualados quantitativamente se, quando contado, o número numerado de membros for idêntico em ambos. De modo análogo, cada momento é individualmente distinto do outro, embora sejam igualados quantitativamente quando contados. Assim, podemos dizer que o tempo é o resultado dos momentos quantificados.

Sabemos a quantidade de cavalos em um grupo utilizando o número, e só sabemos o número porque um cavalo é a unidade que utilizamos para realizar essa operação. O número numerante aplicado aos cavalos resulta no número numerado (quantos cavalos há). O instrumento de contagem permite contar e determinar a quantidade, e, por outro lado, aquilo que é contado determina o valor final da quantidade contada. O número utilizado para contar os cavalos é o aspecto formal, enquanto os cavalos são o aspecto material sobre o qual a contagem é feita.

Há uma relação recíproca entre a unidade de medida e a coisa mensurada por ela. Se, por exemplo, tenho uma estrada a medir, o resultado da medição (quantos metros) corresponderá ao quão longa é a estrada. A existência e a extensão da estrada precedem ontologicamente o ato de medição, e o resultado da medição expressa em termos quantitativos o seu comprimento. Destarte, o tempo é medido pela mudança, e vice-versa. Sabemos quanto tempo decorreu por meio da mudança. E a extensão inteira da mudança determina o tempo gasto (o número numerado). Se a mudança é longa, o tempo será longo.

A expressão "estar no tempo" significa, em primeiro lugar, existir enquanto o tempo existe. Numa segunda acepção, significa o mesmo que "estar em número", isto é, aquilo que é uma parte (ou modo) do número ou a coisa que tem um número. Dado que o tempo é número, o "agora" e o "antes" estão no tempo no mesmo sentido que "par" e "ímpar" pertencem ao número. Mas, "estar no tempo" não é idêntico à simples coexistência com alguma outra coisa. Duas coisas podem coexistir numa relação meramente incidental, como no caso em que o grão e o céu existem simultaneamente sem que um defina o outro. 

Aquilo que "está no tempo", ao contrário, implica necessariamente a existência de tempo, da mesma forma que algo que "está em movimento" necessariamente implica que há movimento enquanto esse algo persistir. Aristóteles enfatiza nessa passagem que o tempo e a coisa que "está no tempo" não são entidades independentes e separadas que se encontram unidas por acidente. Seria absurdo pensar que a mudança seja uma entidade independente e separada da coisa que muda, o móvel. Nem a coisa temporal pode ser considerada separadamente do tempo. 

Sempre é possível haver um tempo maior do que as coisas que ora existem, assim como sempre pode haver um número maior do que as coisas contadas. Essa é uma propriedade do número enquanto tal. Qualquer quantidade de entes contados (ou medidos) pode ser ultrapassada por uma quantidade maior posterior ad infinitum. Consequentemente, todas as coisas temporais estão contidas no tempo, e são "afetadas" por ele. 

Dizemos que o tempo gasta as coisas, que elas envelhecem por causa do tempo. Isso porque a mudança remove o que existe, e, como o tempo é a medida da mudança, ele é a causa do decaimento das coisas. Segue-se daí que aquilo que existe sempre não está submetido ao tempo. A razão é simples: se, por natureza, algo é imutável, então não passa de potência ao ato em nenhum sentido. Não havendo mudança, não há condições para a medição temporal. 

Contudo, o corpo que está em repouso também é medido pelo tempo, embora indiretamente. O que está em movimento necessariamente é movido, embora nem tudo que está no tempo esteja em movimento. O corpo em repouso é um móvel, algo que pode vir a se mover ou ser movido, e a extensão de sua permanência no mesmo lugar pode ser medida entre dois momentos. repouso é uma privação de movimento de um móvel que em algum momento estacionou e que num momento posterior pode retomar seu movimento. O tempo no qual um corpo permanece em repouso será medido pelo início e pelo fim desse estado. 

Pode-se acrescentar o fato de que algo que está em repouso num aspecto não estará necessariamente em repouso em todos os outros. Um corpo estacionado pode perder qualidades como a cor, por exemplo. Também é verdade que a medição do repouso pode ser feita tendo em conta a mudança de outros entes. O movimento regular do Sol (ou do relógio) permite medir o tempo até daquelas coisas que estão estacionadas, paradas ou imóveis sob algum aspecto.

O tempo não mede as coisas simplesmente por suas características quantitativas (comprimento, largura, altura, etc.), mas sim por serem mutáveis. Os entes submetidos à geração e à corrupção são propriamente temporais. Houve um longo período no qual não existiam e haverá outro ainda maior no qual não existirão mais. Dentre as coisas contidas pelo tempo estão as que não existem agora, como o que está no passado e o que está no futuro. 

Todavia, nem tudo o que não existe estará em algum momento futuro no tempo. O contraditório jamais existirá por ser o contrário do necessário. A incomensurabilidade da diagonal de um quadrado é uma verdade necessária, eterna e imutável, portanto não está submetida ao tempo. O seu oposto, a comensurabilidade, é impossível, não pode existir jamais. Somente aquilo cujo contrário não é eterno pode vir ou não a existir. São desse tipo as coisas submetidas à geração e à corrupção.

(continuará na parte 3)

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sexta-feira, 13 de junho de 2025

Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro VIII)

"Em suma, nada há neste mundo que não esteja sob a conservação e sob o domínio universal de Deus que a tudo sustenta. Pois aquilo que não tem nenhum poder não existe, nem é algo, nem tem qualquer lugar ou posição."

DIONÍSIO AREOPAGITA, Os Nomes Divinos, livro VIII

No livro VIII de Os Nomes Divinos, Dionísio Areopagita examina os sentidos nos quais as Sagradas Escrituras atribuem a Deus os nomes de Poder (δύναμις), Retidão (δικαιοσύνη), Salvação (σωτηρία) e Redenção (ἀπολυτρώσεως). Seguindo o padrão das reflexões anteriores, o termo Poder (ou Potência) significa que a Divindade Supraessencial antecipa em si mesma todos os poderes que se manifestam no mundo seja no seu conjunto ou nas suas partes, transcendendo-os infinitamente na qualidade de sua causa última.

Nos seus comentários à supracitada obra, Marsilio Ficino esclarece que "o que os gregos chamam dunamis, nós interpretamos propriamente como poder e capacidade, embora o uso comum agora pareça incluir virtude significando poder. Por isso, as autoridades religiosas chamam Deus poder ou virtude". O poder divino é, nesse sentido, uma virtus, uma capacidade de agir, de ser causa eficiente da existência dos entes. Não se trata, como no caso dos seres finitos, de uma potencialidade que, contingente, precisa de uma causa eficiente externa para trazê-la à realidade.

Deus dá origem a infinitos seres que são eles mesmos poderes. Estes, por serem finitos, jamais esgotam o Poder Infinito (ἀπειροδύναμος). Uma infinitude de entes limitados será sempre potencial, isto é, a cada elemento dado um novo elemento pode ser adicionado sem que haja de facto um número infinito. Portanto, essa infinitude quantitativa potencial não tem o condão de esgotar a capacidade do Absoluto que não está submetido a qualquer limitação.

O Poder divino é limitado somente nas coisas, no sentido de que cada ente só pode receber de Deus o poder necessário e suficiente para ser este ou aquele tipo de ser. O homem só recebe o poder que corresponde à sua natureza, assim como o cachorro, a planta, a pedra, etc. Isso fundamenta a hierarquia da realidade na qual alguns entes são superiores e outros são inferiores. Não obstante, o Poder divino está presente mesmo nas mais humildes das criaturas sustentando-as na existência.

Tudo o que existe é poder, seja na forma de intelecto (νοερός), pensamento discursivo (λογική), percepção sensível (αἰσθητικὴ), vida (ζωτικὴ) ou simples ser (οὐσιώδη). O Poder divino concede existência à vida espiritual dos anjos e ao seu desejo pelo bem, dá azo à ordem, à harmonia e à concordância que permeiam o Cosmos, governa os seres, homens, animais e plantas, preservando as suas respectivas unidades, naturezas próprias e fins intrínsecos.

Deus é o governante universal (Παντοκράτωρ) que define as naturezas das coisas, estabelece os seus limites intrínsecos, combina-as num Todo ordenado e harmônico no qual os seres estão associados numa comunidade (κοινωνία) perfeita. Aquilo que carece de poder não existe de modo algum, não possui individualidade e nem lugar no esquema universal da realidade. Ser é poder. 

Dionísio comenta que certo mago chamado Elimas censurou o apóstolo Paulo por afirmar que Deus não pode negar-se a si mesmo, o que, segundo seu juízo, equivaleria a atribuir-lhe um limite, algo incompatível com a sua onipotência. "Se formos infiéis, ele permanece fiel; não pode negar-se a si mesmo" (2 Timóteo, 2:13). A objeção do mago interpreta a fidelidade divina como uma incapacidade de ser infiel e, portanto, como uma fraqueza ou uma carência. A onipotência (παντοδύναμός) exclui toda e qualquer limitação, portanto Deus não poderia estar privado da capacidade de ser infiel.

O busílis da questão reside na confusão (intencional, no caso de Elimas) entre a impossibilidade por limitação e a impossibilidade metafísica. A ausência de uma capacidade ou de uma potencialidade em um ente impossibilita certas operações, ações e efeitos. O homem, por exemplo, não pode voar, pois essa capacidade não está no rol das propriedades da natureza humana. O cego não pode enxergar por conta da privação de uma capacidade natural ao ser humano.

Deus, por seu turno, não é incapaz de negar a si mesmo no sentido de não possuir uma determinada propriedade ou de estar privado de alguma capacidade natural à sua espécie. Estas são incapacidades próprias de seres finitos. O ser infinito, Absoluto, não tem carência de nada, e, justamente por isso, não está sujeito às variações típicas dos entes limitados. A infidelidade é uma falta, um decréscimo que só faz sentido quando pensado em seres cambiáveis. 

Deus é "incapaz" de infidelidade não porque lhe falte uma capacidade, mas sim por não lhe caber essa imperfeição que não é outra coisa senão um decréscimo de virtude. Assim como não se pode dizer que um triângulo é incapaz de ser um quadrado porque lhe falta o poder de ser um quadrado, Deus não pode ser dito incapaz de ser aquilo que contraria a sua natureza infinita. Ao contrário do que o argumento de Elimas sugere, a possibilidade de Deus ser infiel provaria a sua limitação e não a sua onipotência.

A resposta de Dionísio ao desafio do mago consiste em mostrar que negar-se a si mesmo é declinar da verdade, e, sendo que a verdade tem Ser, então a declinação da verdade é uma negação do Ser. Logo, Deus não pode deixar de ser. Em outros termos, o infiel não se mantém na verdade. A deserção da verdade significa a deserção do Ser (a mentira é o contrário do que é real), e é impossível que Deus possa desertar de sua própria natureza enquanto o Ser Absoluto o mínimo que seja e em qualquer sentido que se queira.

O segundo nome atribuído a Deus é o de Retidão (ou Justiça) porque é Ele que concede às coisas a proporção (εὐμετρία), a beleza (κάλλος), a boa ordem (εὐταξία), determina a função e o lugar de cada uma delas na hierarquia da realidade de acordo com uma regra soberanamente equitativa. "Dispusestes tudo com medida, quantidade e peso" (Sabedoria 11:20). Nele estão contidas eternamente as medidas, os logoi, as ideias de todos os seres, consideradas separadamente e em conjunto, organizadas e dispostas num Todo ordenado, coerente e perfeito. 

Ἀεὶ ὁ θεὸς ὁ μέγας γεωμετρεῖ. "O grande Deus sempre geometriza". Ele determina a essência (εἶδος) de cada ser, impondo a cada um o seu limite (πέρας) e o seu fim (τέλος) específicos. Nenhum ente pode usurpar o lugar próprio de outro ente na ordenação da realidade. Consequentemente, a definição da Justiça é "dar a cada um aquilo que lhe é devido". Ser justo é reconhecer e agir de acordo com a ordem e a hierarquia expressas nas naturezas das coisas. "Comparada a todas as outras, portanto, a justiça é a mais divina e a mais abrangente das virtudes", pondera Marsilio Ficino.

Alguns dirão que não é justo que homens santos sejam oprimidos pelos maus. Dionísio responde que se esses homens são realmente santos, eles reconhecem que as coisas terrenas, objetos de ambição material, são inferiores às realidades divinas, as únicas realmente desejáveis. Se, em vez destas, eles amam e desejam aquelas, então não são de fato santos. E a justiça divina está em fortalecer a virtude desses homens desapegando-os das coisas inferiores e estimulando-os a buscar as realidade celestes, e não na concessão de bens terrenos e materiais que poderiam corrompê-los.

Deus é chamado Salvação primariamente porque Ele preserva na existência o mundo, mantendo cada coisa no seu lugar devido, evitando assim que a ordem do Cosmos definhe pelo conflito e pela degradação. E também redime os seres, restaurando o seu estado original, quando decaem e se afastam de seus limites próprios. Desse modo, a ordem do mundo é preservada da completa confusão mútua de suas partes e da sua destruição completa. 
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quarta-feira, 4 de junho de 2025

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo XVII) - o universal in re e ante rem

"Os possíveis de existir, que vão existir e os que não podem existir por conjunções outras, mas todos os possíveis , estão contidos dentro da ordem do Ser, e são pensamentos de uma mente suprema. Terá ela estes pensamentos como alguma coisa que pode ser delineada."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, 106

O capítulo XVII de A Sabedoria da Unidade retoma a investigação sobre o universal considerado in re (nas coisas) e ante rem (antes das coisas) interrompida no capítulo XV. Em quais sentidos podemos dizer que, por exemplo, a humanidade existe nos homens concretos e singulares e independentemente dos homens concretos e singulares? Para responder a essas questões, Mário Ferreira recorre às teses da metafísica do filósofo jesuíta espanhol Francisco Suarez (1548/1617).

Os indivíduos de uma espécie como a do homem são gerados por outros homens numa cadeia que não pode seguir ad infinitum. Se é da essência dos membros de uma espécie que cada indivíduo receba de outro o seu ser, então nenhum deles possuirá em si mesmo o ser absolutamente, e nem a própria espécie, dado que esta só opera mediante os indivíduos. O poder de existir que não reside na espécie e nem nos indivíduos, portanto, tem de vir de outro que não pertence à espécie. 

Se a causa fora da espécie for um ente que dependente de outros para vir a ser, o problema anterior se mantém. A única solução é que tal ente não se origine de outro, seja uma causa absolutamente independente e incriada. Em outros termos, que ela seja o ente a se. O argumento de Suarez aqui apresentado, ensina Mário Ferreira, pode ser traduzido na seguinte fórmula matética:

"Um ser no contexto beta, que é, portanto, um ser ab alio, necessariamente provirá de outro, e assim a série; mas esta, por sua vez, não pode provir do nada, por este ser impossível; não pode provir de si mesma, porque então seria um ser a se, quando é um ser ab alio, e terá necessariamente de provir de outro".

O ente a se, exatamente pelo fato de existir necessariamente, não pode ser senão um singular, e, portanto, irrepetível. Se houvesse dois entes a se, um seria limitado pelo outro, o que entraria em contradição com a infinitude do ente a se. Também é impossível conceber o Ser Supremo como um universal, pois este é repetível em muitos. O singular finito também é irrepetível, porém não se pode dizer que a essência incriada do ente a se seja da mesma espécie da essência criada do ente ab alio. O primeiro tem seu ser por si, sem carência de produção, enquanto o segundo carece da produção por outro.

A unidade absoluta do Ser Supremo não contradiz o dogma cristão da Trindade que afirma haver três pessoas numa única natureza divina? Mário Ferreira responde que as três pessoas são papéis que não podem ser essencialmente distintos. A pessoa não é uma essência própria e distinta, mas é algo de algo. No ser humano, a pessoa, caracterizada pela consciência de si mesmo e pela consciência de sua responsabilidade, é produto do entendimento. 

A personalidade, afirma o filósofo, é "o papel que o homem representa, cônscio da sua responsabilidade e de seu dever". A não pode ser uma essência própria, sob pena de haver em nós duas entidades distintas. De modo análogo, em Deus as pessoas não são essencialmente distintas da unicidade da natureza divina. As processões ad intra, as ações do entendimento e da vontade divinas, decorrem necessariamente de sua natureza, e não são coagidas por nenhum poder externo.

Mário Ferreira traz novamente à discussão as teses de Suarez para retomar a questão do universal. O singular exclui a existência em muitos em razão da diferença individual. Pedro só pode ser o indivíduo Pedro, e jamais haverá uma "pedreidade" que possa ser compartilhada por outros indivíduos. Uma natureza na realidade não pode abstrair-se por si mesma de seus indivíduos, nem existe anteriormente a eles.

Suarez afirma que para que uma natureza seja repetida nos indivíduos (para que esteja em muitos e seja predicada de muitos) é necessário somente que nos indivíduos não haja nada que contradiga a repetição. Para que João e Pedro tenham a mesma natureza humana, é mister somente que em João e Pedro não haja nada que impeça a sua repetição em ambos. Assim, Suarez rejeita qualquer realismo ante rem, isto é, qualquer realidade dos universais anterior à existência dos indivíduos nos quais a natureza comum é repetida. 

Os singulares não são repetíveis, porém isso não impede que a lei de proporcionalidade intrínseca, a natureza comum, esteja presente em cada um deles determinando o tipo de ser que eles são. Mário Ferreira dá o exemplo de um modelo de carro que está presente em cada carro produzido. Para que a repetição aconteça, basta que não haja nada nos carros individuais que entre em contradição com o modelo a ser aplicado. Tudo o que não é contraditório é possível. 

O modelo, por sua vez, estava na mente do seu inventor e era um possível de realizar-se no mundo. Nesse sentido, trata-se de uma forma ante rem que pertence desde sempre à ordem do Ser. Os possíveis do Ser são os pensamentos de uma mente suprema. Deus sabe desde sempre tudo o que é possível de ser realizado, mesmo que nem todos os possíveis se realizem. 

Mário Ferreira confirma aqui a Tese 156 da Filosofia Concreta na qual é dito que "os possíveis estão contidos no poder do Ser infinito". Negar essa tese implicaria afirmar o absurdo de que os possíveis estariam no nada. Em Deus, o possível é um "esquema eidético, a forma (eidos) de um ser possível de realizar-se". eidos que está na infinitude de Deus desde sempre e para sempre, o ente ante rem, torna-se finito no ser concreto e singular. A efetivação de um possível na existência corresponde à singularização e à finitização do esquema eidético contido na mente divina.

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domingo, 18 de maio de 2025

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo XVI) - contextos alfa e beta

"Hermes Trismegistos, nos livros que lhe são atribuídos, admitiu que o Ser Supremo não só estava neste mundo, mas, também, fora dele, sem limite algum, e por isso comparou-o a uma esfera perfeita, cujo centro está em toda parte, e circunferência em nenhuma, e deu a ideia dessa esfera como símbolo de Deus."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p.92

No capítulo XVI de A Sabedoria da Unidade, Mário Ferreira dos Santos retoma o tema dos contextos alfa e beta, que correspondem mateticamente à divisão dos seres entre infinito e finito, e apresenta algumas consequências da discussão do capítulo anterior. Já no primeiro parágrafo, o filósofo afirma que não está contido na conotação de ente que este seja finito ou infinito, e que, portanto, deve haver uma razão positiva que justifique essa distinção. O ente ab alio depende de outro para vir a ser e manter-se na existência. O ente a se tem nele mesmo sua razão de ser, existe por si. 

Essa verdade é expressa no livro do Êxodo (3,14) pela resposta de Deus a Moisés: "Eu Sou Aquele que Sou" (ἐγώ εἰμί ὁ ὤν), ou seja, aquele que é absolutamente, sem limite de qualquer espécie. O ente que está presente ante outro ou em relação a outro é limitado. Por conta disso, Suarez propôs que Deus não fosse dito presente, mas adsente (ad esse), pois sua existência não é limitada por nada. O adsente corresponde ao contexto alfa e o presente ao contexto beta. 

No texto medieval Liber XXIV philosophorum ("Livro dos 24 Filósofos"), por vezes atribuído a Hermes Trismegistos, autor putativo do Corpus Hermeticum, é dito que "Deus est sphaera infinita cuius centrum est ubique, circumferentia nusquam" (Deus é uma esfera infinita cujo centro está em todos os lugares e cuja circunferência não está em nenhum lugar). A esfera é símbolo do Ser Supremo primeiramente por ser um todo perfeitamente unificado e autocontido. Ela simboliza a inteireza, a completude, e a sua superfície é perfeita, sem ângulos ou arestas. 

A esfera tem também um aspecto de abarcamento que deriva da capacidade de sua circunferência de ser estendida ad infinitum para conter em si todas as coisas. O símbolo não é o simbolizado, então resta óbvio que qualquer esfera limitada, por maior que seja ou por mais que estendamos sucessivamente os seus limites, não pode mais do que sugerir uma analogia com Deus. Uma esfera infinita, a rigor, não é mais uma esfera, e serve somente como auxílio ou suporte à compreensão intelectual da adsência absoluta e "omniabarcante" de Deus.

Ora, como visto no capítulo XV, os entes contingentes podem ou não vir a ser. Segue-se disso que os futuros contingentes são contraditórios no sentido de que não podem se efetivar e não se efetivar simultaneamente. Tertium non datur. O impossível não tem potência para se realizar porque abriga contradição formal intrínseca. Não faz sentido, então, julgar que Deus seja menos onipotente por não realizar aquilo que não possui qualquer potência para existir. 

Afirmar que Deus pode realizar o impossível seria contradizer "a sua onipotência, porque seria afirmar que é capaz de realizar absurdos, de realizar contra as próprias leis, contra a própria regularidade estabelecida pela sua suprema unidade". Além disso, o impossível é um nada, dado que não pode existir por conta de sua contradição intrínseca. Fazer o nada é, rigorosamente, nada fazer. 

A unicidade do Ser Supremo é absoluta, não comporta divisões, potência receptiva ou acidentes. Se houvesse acidentes, estes teriam de distinguir-se de Deus em alguma medida. Se tivessem sua origem em outro, o ente a se teria recebido os acidentes de fora, o que o tornaria um ente ab alio. Na hipótese de os acidentes emanarem do Ser Supremo, isso implicaria potência receptiva e mudança. As distinções que fazemos dos atributos divinos têm validade para nós, por causa do nosso modo de entendimento, e não correspondem a distinções reais em Deus. 

Segundo o que foi demonstrado no capítulo precedente, a totalidade dos seres não pode ser formada pelos entes ab alio, que são produzidos por outros, e, portanto, é necessário que haja um ente a se que contenha em si eminentemente todas as perfeições que se apresentam limitadamente nos entes ab alio. Nestes, portanto, quando existentes, há distinção modal entre essência, aquilo pelo qual a coisa é o que é, e a existência, o exercício de seu ser fora de suas causas.

"A essência é pura potência em ordem ao existir", afirma o filósofo. Enquanto tal, não está realizada em nenhum ser concreto. O homem é racional desde todo o sempre, ainda que nenhum homem existisse efetivamente, porque a essência é uma potência objetiva da realidade. Mário Ferreira argumenta que um juízo do tipo "o ser que corre se movimenta" é uma verdade eterna, mesmo que não houvesse nenhum ser que corresse. O juízo diz que onde quer que haja um ser que corra, seja lá em qual tempo for, será sempre verdade que correr é essencialmente uma espécie de movimento.

Os possíveis, enquanto são possíveis, não têm número determinado, mas quando se realizam são sempre numericamente finitos, embora a eles possam ser adicionados sucessivamente tantos quantos se queira. A infinitude quantitativa é apenas sucessiva, cada número determinado podendo ser ultrapassado por uma unidade posterior. Em termos de graus qualitativos de perfeição, algumas coisas sendo mais perfeitas que outras dentro de uma hierarquia de intensidade de ser, podemos pensar numa infinitude essencialmente ordenada.

As reflexões empreendidas no capítulo XVI, em boa parte reiterações de pontos já explicados anteriormente, serão seguidas pelo retorno no capítulo XVII à temática da existência do universal in re e ante rem. 
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* Mário Ferreira nota que nem todo o impossível possui contradição formal intrínseca. Alguns possíveis podem ser impossíveis relativamente à ausência das condições empíricas para a sua existência. Por exemplo, o centauro é logicamente possível, embora não possa existir tendo em vista as condições dadas neste mundo.
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domingo, 11 de maio de 2025

Semyon Frank, o incognoscível e o conhecimento objetivo

 

"A verdadeira constituição de nosso conhecer e de nosso conhecimento consiste no fato de que tudo que é dado abertamente e explicitamente é dado somente sobre o pano de fundo do não dado, do inexplícito, do desconhecido."

SEMYON FRANK, The Unknowable, p.8

O filósofo Semyon Frank (1877-1950) foi um dos mais importantes pensadores russos do século XX ao lado de Pavel Florensky, Sergius Bulgakov, Lev Shestov e Aleksey Losev. Sendo de origem judaica, converteu-se à Ortodoxia em 1912, e suas crenças religiosas lhe custaram a expulsão da União Soviética em 1922, acompanhado de outros intelectuais, a bordo do famoso Vapor dos Filósofos, e posterior exílio na Alemanha, França e Inglaterra (onde faleceu).

Em que pese a evidente influência do neoplatonismo de Nicolau de Cusa em suas obras, seu pensamento dialoga com filósofos contemporâneos (Bergson, Husserl) e com tradições orientais (Advaita Vedānta). O livro mais importante de Frank, considerado assim pelo próprio autor, é uma introdução ontológica à filosofia da religião intitulada O Incognoscível (Nepostizimoe), publicado em 1939. Ali são analisados os diversos planos da realidade nos quais a incognoscibilidade se apresenta, desde os mais evidentes na experiência comum até os mais remotos no apofatismo do sagrado.

O conhecimento objetivo, tema do primeiro capítulo, é expresso sempre por um juízo do tipo "A é B", que significa que toda vez que temos A também temos B. Nesse juízo temos A, algo desconhecido, que passa a ser conhecido porque identifica-se na sua composição um caráter que era previamente cognoscido. Outra forma de expressar a mesma relação é o juízo "X é A", no qual é o incógnito cuja natureza será, ao menos parcialmente, esclarecida por pertencer ou por apresentar o caráter A.

O conhecimento objetivo, portanto, tem seu início, e sua constituição básica, no fato inegável de que nosso olhar cognitivo percebe sempre o desconhecido, essa escuridão que, a um só tempo, oculta-se sob o símbolo X e é o seu pano de fundo ineliminável. Embora possa progredir indefinidamente, o saber humano nunca é completo, não esgota jamais a riqueza da realidade, de modo que o desconhecido é um aspecto inegável, inquestionável e autoevidente

As necessidades de ordem prática, que têm de ser garantidas para a nossa sobrevivência, exigem que, por economia de pensamento, e na maioria do tempo, consideremos o pouco que conhecemos e com o qual estamos habituados, como a totalidade daquilo que há. Por mais compreensível e indispensável que ela seja do ponto de vista prático, essa limitação cognitiva ao nosso "pequeno mundo" implica um falseamento ontológico da realidade.

A condição de um funcionamento sadio e normal da consciência, mesmo na sua dimensão prática, é justamente a sua abertura ao desconhecido, a infinita riqueza do mundo em geral. O contrário, o apego inflexível ao "pequeno mundo" habitual e seguro, é um sinal característico dos estados de insanidade. No campo filosófico, a tese do empiricismo de que tudo a que podemos ter acesso direto resume-se a agregados de dados sensíveis claramente presentes a nós aproxima-se dessa redução da experiência e falseia a dinâmica própria do conhecer que consiste na gradual penetração no desconhecido.

A constituição de nosso conhecimento consiste no fato de que tudo o que é dado explicitamente, e tudo o que sabemos, destaca-se num pano de fundo incógnito e inexplícito. No juízo "X é A", diz Frank, A é semelhante a uma pequena ilha cercada por X, um oceano de desconhecido. A diferença é que na realidade a ilha do conhecimento não possui limites tão distintos e identificáveis, de modo que estes imperceptivelmente esvanecem e se fundem com o oceano do ignoramus.

Na percepção visual, por exemplo, o que vemos distintamente não se assemelha a um quadro cuja pintura encontra-se firmemente alocada no interior dos limites impostos pela moldura. O que é contemplado com clareza destaca-se de um fundo indistinto que, a despeito de sua confusão, é um dado tão real e tão certo quanto o objeto de nossa visão. A fronteira entre ambos, contudo, está longe de ser rigidamente determinada, e recua ou avança de acordo com a nossa atenção.

Algo semelhante acontece em nossa experiência do tempo. O presente é o dado inegável ao qual temos de fato acesso. Sabemos perfeitamente que o presente integra um contínuo que inclui o passado e o futuro. Estes, por seu turno, são limitados pelo presente sem qualquer fronteira rígida explicitamente determinável. O desconhecido cerca a ínfima ilha do conhecido.

A experiência mais geral possível é a de que se "X é A", então X não pode ser nenhuma das possibilidades de não-A. Ao ser isto, seja o que for, um ente não pode ser outro, tudo o que não corresponde ao que ele é. Sabemos, todavia, que todo isto está acompanhado por aquilo, isto é, tudo o que é outro em geral. A relação de diferença mostra que qualquer isto dado explicitamente não exaure o que está presente diante de nós. Há sempre o outro para além dos limites intrínsecos deste este. Nosso conhecimento consiste tanto do isto quanto do outro que dele se distingue.

A conclusão que o filósofo russo a considera autoevidente é que o infinito está sempre presente na constituição da experiência (no seu sentido mais amplo) na qualidade de pano de fundo (background). O finito, enquanto isto, explicitamente dado e distintamente fixado, somente é finito porque tem limites intrínsecos que o separam de quaisquer outras coisas. O outro, quer apareça vagamente ou não apareça de modo algum, é o desconhecido e o infinito no sentido da abundância inexaurível de tudo o que é outro. 

O termo não-A expressa o "oceano" das infinitas (ou indefinidas) possibilidades diferentes de A, sejam elas B,C,D,E, F, etc. Sem dúvida, cada uma é finita e, por isso mesmo, individualmente cognoscível ao menos em princípio. Sabemos que o "oceano" do desconhecido, os entes que são não-A, é formado por objetos possíveis de nosso conhecimento. A infinitude, no entanto, só é abarcável pela nossa consciência potencialmente (este ente após aquele outro, e assim por diante), o que faz com que o infinito apareça na experiência como um fundo obscuro, oculto e opaco.

"A validade objetiva do conhecimento pressupõe que devemos ver algo sem o enxergarmos", assevera Frank. O conhecimento coincide com o objeto que existia antes de ser de qualquer forma iluminado pela nossa cognição. O que significa que temos diante nós sempre uma imensidão transcendente de objetos existentes que são possíveis apenas do ponto de vista de nosso saber. Considerados a partir da realidade objetiva, eles são atuais, efetivamente "dados", embora fora de nosso alcance atual.

Deve ser evidente a nós a existência de tudo aquilo que não enxergamos agora, mas que "vemos" contido na realidade que poderá ser experimentada em algum tempo. O Ser, no seu sentido de objetividade, é o desconhecido, esse "oceano" de escuridão e de obscuridade do qual nasce, como de um útero, a pequena "ilha" do conhecido. Não seria possível voltarmos nossa cognição ao desconhecido se não o possuíssemos como um dado. 

O sentido do conhecimento pressupõe a transcendência do desconhecido. Este, contudo, em alguma medida é cognoscível e, em outra, é incognoscível. Nenhum limite intrínseco pode ser dado a priori ao poder cognoscitivo humano, de modo que ele pode avançar indefinidamente. Porém, jamais o conhecimento alcança a completude, e, a despeito de cada passo de seu avanço, permanece factualmente limitado. O desconhecido coincide com o incognoscível. 

Tal verdade é evidenciada, por exemplo, pela infinitude espacial. O lugar onde nos encontramos é um ponto ínfimo diante do qual vislumbramos infinitos outros lugares onde nunca estaremos. A mesma experiência temos com relação à infinitude temporal. Nada sabemos do futuro, e do passado temos algum conhecimento histórico e pessoal que é quase um nada comparado com a totalidade dos acontecimentos pretéritos.

O incognoscível não deve ser confundido com o incognoscível em si, o que implicaria a existência de uma coisa em si para sempre fora do alcance de nossa cognição. A participação do ser humano na realidade preclude qualquer barreira intransponível separando-o dos entes. O desconhecido é incognoscível porque é inesgotável pelas capacidades cognitivas humanas, não porque pertence a alguma espécie cuja natureza especial o coloca de antemão fora de seu alcance.

O incognoscível pertence ao tecido do conhecimento, envolve o conhecido como um abismo de escuridão cujas bordas não são fixas e se fundem imperceptivelmente com a claridade do que sabemos. O que é conhecido não exclui o desconhecido, mas, ao contrário, o exige como parte constituinte de seu todo. Segue-se que tudo o que se conhece, em qualquer âmbito, é sempre misturado com a ignorância. O Ser é simultaneamente, e sem contradição, cognoscível e incognoscível. Tudo o que conhecemos não deixa de ser um mistério na medida em que lança suas raízes últimas no vasto abismo da incognoscibilidade.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo XV) - a divisão dos entes

"Todo ser finito é ser privado de um grau, mesmo naquilo que nele é positivo. O positivo, em sua máxima intensidade de ser, está eminentemente no Ser Supremo, pois este tem de conter o máximo no máximo; caso contrário, o que as coisas são em positividade viria do nada, já que elas são entes ab alio, e não entes a se."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p.89 (itálicos no original)

Mário Ferreira dos Santos, no capítulo XV de A Sabedoria da Unidade, propõe-se a analisar várias formas de divisão dos entes. A divisão adequada e suficiente, isto é, aquela que identifica as formas mais fundamentais de todo e qualquer ente, não pode deixar de fora de seu conjunto nenhum ser. Por sua vez, as categorias divisoras devem alocar integralmente o repertório dos seres, estando cada um deles presente em alguma das divisões estipuladas. Evidentemente, a inclusão dos entes deve se dar de acordo com uma razão ou logos.

A primeira divisão seria entre substância e acidente. Contudo, sem maiores esclarecimentos, o filósofo brasileiro a considera antropomórfica, mais nossa do que real. Mateticamente, a primeira divisão seria entre o ente a se, que possui em si mesmo o princípio e a razão de ser de sua realidade, e o ente ab alio, que, ao contrário, necessita de outro para afirmar a sua realidade. Sendo impossível que algo seja um ente ab nihilum (proveniente do nada), e que a experiência nos testemunha a existência dos entes ab alio (o que implica que nem todos podem ser entes a se)resta saber se todos os entes podem ser ab alio. 

Restará demonstrada a existência do ente a se, e confirmada a adequação da divisão, se nem todos os seres puderem ser incluídos na categoria dos entes ab alio. Ora, se é um caráter essencial dos indivíduos de uma espécie receberem o ser de um outro da mesma espécie (serem ab alio), então a própria espécie, que não existe senão nos seus indivíduos, só terá sua realidade graças a um ser de outra espécie, que poderá ser ab alio ou a se. No caso de ser um ente ab alio, o problema se repete, já que esse ente também necessitará de outro para existir, e assim por diante, não importando o número de entes ab alio que se acrescente à cadeia.

O resultado seria absurdo: uma cadeia de dependentes que não depende de nada. Não há motivos para se considerar que uma cadeia composta exclusivamente de seres dependentes de outros seres possa existir independentemente, pois os entes que a compõem, não importando o seu número, não possuem neles mesmos o poder de existir de modo a transferir esse poder ao seu conjunto. Logo, a existência da cadeia dos dependentes tem de depender de um ente externo a ela que, por sua vez, ou depende de outro ou depende de nada.

No primeiro caso, o problema é meramente escamoteado, pois permanece a questão de como um ente dependente de outro pode fundamentar a existência de uma cadeia composta exclusivamente por entes dependentes de outros entes. No fundo, o ser que fundamentaria a cadeia de dependentes tornar-se-ia ele mesmo um membro da cadeia de dependentes. E se a cadeia fosse infinita com cada um dos seres fundamentando o seguinte? O problema é que um regressus ad infinitum não explica nada justamente porque recua-se infinitamente nas causas sem jamais alcançar o termo em alguma realidade que fundamente as demais. 

Numa cadeia causal infinita, na medida em que sempre há uma causa anterior, nenhuma delas individualmente é causa por seu próprio poder, mas recebe transitivamente esse poder da causa que lhe é anterior na cadeia. Uma propriedade que não pertence a nenhum dos membros de um conjunto individualmente, e que cada membro só possui porque recebeu de outro membro, não pode ser uma propriedade do conjunto. De onde vem o poder que não se encontra na natureza de nenhum dos membros da cadeia tomados individualmente?

Uma analogia que talvez esclareça esse ponto é a de uma série de lâmpadas acesas. Não possuindo nelas mesmas o poder de acender, deve haver algo que serve de fonte de alimentação ao conjunto. Se essa fonte fosse uma outra lâmpada, o problema permaneceria intocado, pois qualquer lâmpada terá a mesma incapacidade de acender sozinha por sua própria força. Logo, nenhuma quantidade de lâmpadas, mesmo uma infinidade delas, fará qualquer diferença para acender o conjunto. A única saída possível é buscar a fonte de alimentação do conjunto em algo que seja especificamente distinto das lâmpadas. 

A cadeia dos dependentes, dos entes ab alio, só encontra a sua explicação necessária e suficiente num ser que não dependa de nada, a saber, no ente a se. Demonstra-se assim a adequação da divisão dos entes entre a se e ab alio. A independência do ente a se significa que ele não carece de outro para existir, e, portanto, não vem a ser em algum momento pela ação causal de um outro como é o caso dos entes ab alio. 

Ora, aquilo que existe sem ter sido trazido à existência por outro é improduzido*, e o que existe sem ter vindo a ser em algum momento é atemporal, eterno. O ente ab alio, por si mesmo, não pode existir sem a ação causal de outro ente, ele é um mero possível enquanto outro não o traz à efetividade. O ente a se, ao contrário, não é somente um possível ou um existente efetivado pela ação causal de outro. Nele devem coincidir a possibilidade e a existência, sendo a sua essência o ato absoluto de existir. Em outros termos, ele é o Ser Necessário.

Se o ente ab alio é uma possibilidade a ser atualizada, e o curso de sua existência será uma atualização contínua de potencialidades (o que constitui seu caráter temporal), então no ente a se, por seu turno, nada há que esteja nele em potência. Ele é absoluta unicidade, infinitude, perfeição e completude. Não há dois entes a se, dado que um não seria o outro, implicando assim limitação e privação.

A partir do que foi dito acima, uma nova divisão seria aquela entre o produzível e o improduzível, respectivamente o ente ab alio e o ente a se. O seu defeito é que se é verdade que o ente a se necessariamente é improduzível, não é verdade que o improduzível seja necessariamente o ente a se. O impossível também é improduzível porque implica contradição nos seus termos. Nunca haverá um triângulo quadrado, por exemplo. Será mais adequado dividir os entes entre produzido e improduzido

O ente produzido, por definição, é finito, já que carece da ação causal de outro para existir. Isso significa que, positivamente, o ser finito está limitado na sua entidade e na sua perfeição. Ser isto é pertencer à determinada espécie que exclui todas as outras que nela não estão implicadas, bem como ser um indivíduo que nunca é maximamente aquilo que a sua espécie contém. Negativamente, significa que o ente finito está privado da perfeição infinita do Ser Supremo, que contém em si eminentemente todas as positividades das criaturas.

A divisão seguinte, então, seria entre finito e infinito. É comum pensar a infinitude em termos quantitativos. Ocorre que o infinito quantitativo implicaria a ideia de um número sem limites. Toda quantidade, qualquer que ela seja e por maior que ela seja, sempre é limitada, ainda que possa ser indefinidamente ultrapassada. Por outro lado, a concepção do infinito enquanto uma qualidade num ser finito geraria o absurdo de um acidente ilimitado. O que é dependente de outro não pode ser infinito.

Concebe-se tradicionalmente na filosofia certo infinito que se refere ao gênero e à espécie. Quando tomamos, por exemplo, a humanidade enquanto espécie, não encontramos nela qualquer divisibilidade ou escalaridade. Sob essa ótica, a humanidade é indivisível e infinita, pois não se admite algo que seja mais ou menos humano. Pedro e João são igualmente e totalmente homens, inexiste a escalaridade típica das grandezas (maior, menor). A infinitude, nesse caso, é relativa, refere-se somente à espécie, ao que a coisa é (quididadequidditas), segundo o que ela é (secundum quid).

O ente infinito não é limitado por nada em qualquer sentido. Segue-se que é absolutamente existente ou necessário, não recebe seu ser de outro e nem está submetido à corrupção e à possibilidade de inexistência. Ser trazido à existência e deixar de existir são deficiências ou limitações compatíveis somente com o ser contingente, ou seja, aquele que pode ou não vir a ser. Porém, não se segue do que foi afirmado que o ser necessário produz os contingentes por necessidade. Se isso fosse verdade, só haveria seres necessários, hipótese que é negada pela manifesta caducidade e transitoriedade dos seres contingentes.

O ser necessário é o ente a se e o ser contingente é o ente ab alio. A mesma correspondência encontra-se nas divisões entre ser por essência e ser por participação, entre ente incriado e ente criado e entre ente em ato e ente em potência. Em todas essas divisões adequadas há o ente que está em posse absoluta de seu ser, e do qual dependem em última instância os entes que só existem pela ação causal de entes existentes que são eles mesmos dependentes de outros para existirem. 

Mário Ferreira observa ao final do capítulo que a divisão entre improduzido e produzido, embora adequada com referência ao ente, não é adequada se os termos forem tomados em seu sentido absoluto. O improduzido pode referir-se ao ser que está sempre em ato, o ente a se, ou ao ser que não foi produzido. No primeiro, ele é improduzido porque não cabe pensar em qualquer tipo de dependência com relação a outro, e no segundo, o improduzido assume o significado de algo ainda não efetivado. Ademais, o contraditório pode ser dito improduzido ao menos no sentido de que sua existência é impossível.

Podemos aqui aplicar a distinção entre negação e privação. A negação indica que algo não tem certa determinação, e a privação indica a ausência de uma perfeição. Negamos qualquer limite ao improduzido, no sentido de ente a se, sem com isso afirmarmos que ele sofre a privação de algo. No caso, a negação é uma afirmação de plenitude. "A negação implica ausência de privação, enquanto privação é ausência de ser", diz Mário Ferreira. O improduzido, referindo-se ao ente que ainda não é, significa que ele está privado da existência, mas pode vir a ser. O contraditório é improduzido porque é privado absolutamente até da possibilidade da existência.
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Mário Ferreira utiliza ao longo do texto os termos improduto, improduzido, improduzível e produzível. Os dois últimos poderiam ser substituídos por improdutível e produtível respectivamente. Optei por preservar os termos escolhidos pelo autor.
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terça-feira, 29 de abril de 2025

O Tao e o simbolismo da água

 

"Nada sob o céu é mais flexível e frágil que a água. A água é a Via."

WEN TZU, 8

O livro de Wen Tzu (文子), obra canônica da tradição taoísta, afirma no seu capítulo 8 que "a totalidade dos seres passam por uma única abertura, e as raízes de todas as coisas emergem de um só portão". As "dez mil coisas" (萬物), segundo a tradicional expressão taoísta de totalidade, nascem da fonte única, derradeira e indizível, o Tao (道, a Via). Os sábios, conhecendo essa realidade, "determinam uma trilha a seguir, e não desviam do original ou se afastam do perene".

A invariância do Tao é refletida na equanimidade do sábio que não se deixa desviar de sua imperturbabilidade nem pela alegria e nem pela raiva, nem pela inclinação e nem pela aversão. Tais são os excessos que destroem a tranquilidade, geram a ansiedade, o medo e a loucura. O que afasta o homem da Via são os opostos que nascem do desejo. Preferir isto é preterir aquilo. Ao preferir isto, surgem imediatamente o anseio de possuir isto e o medo de não possuí-lo. A mente não é mais livre, está cativa e só enxerga o objeto de seu desejo ou de sua aversão.

Ninguém pode enxergar o monte se seu olhar está fixado na nuvem que passa à sua frente. Acompanhar a sua passagem é preferir a parte em vez do Todo. O cenário inteiro só é visto quando nenhuma de suas partes é destacada, quando a nenhuma delas é concedida uma existência absolutamente separada de todas as outras. Ver o Todo implica não ver nenhum dos seus elementos em particular. Isso não significa perdê-los de vista, mas, ao contrário, vê-los na unidade que lhes ultrapassa, fundamenta e concede-lhes sentido.

Quem se livra dessas oposições criadas pelo desejo e pela aversão funde-se com a luz espiritual que, por sua vez, não é nada mais do que a "conquista do interior". No primeiro parágrafo do capítulo 4 afirma-se que "a sabedoria não tem a ver com o governo dos outros e sim com a ordenação de si mesmo. A nobreza não é poder ou posição, mas a auto-realização. Aquele que a alcança encontra o mundo dentro de si". Assim, o sábio, unido ao Tao interiormente, não teme ou deseja nada. Sua ordenação reflete a ordenação das coisas desde o seu Princípio.

Não são as coisas exteriores que devem se adequar aos desejos, às inclinações ou às aversões que habitam o interior do homem. É o interior que, adequado à Via, reflete a natureza das coisas externas como um espelho sem mancha reflete qualquer objeto indistintamente, sem preferência e sem mudança em sua natureza vazia. Não é possível ao recipiente cheio receber mais água.

"A Via molda miríades de seres permanecendo sempre sem forma. Silente e imóvel, compreende por inteiro o indiferenciado desconhecido". O sábio abraça o caminho do Céu (天道) e possui a mente do Céu (天心), "respira escuridão e luz, exala o velho e inala o novo". Tal qual a Via, o sábio não possui forma própria, por isso pode absorver em si os opostos sem resistência interior. Nada o agrada ou o desagrada, "todas as coisas são misteriosamente idênticas". A unidade subjacente ao múltiplo integra todas as coisas sem negá-las.

A Via e o sábio são firmes e flexíveis, podem se retrair e se expandir livremente de acordo com as circunstâncias. A firmeza não é a retração inflexível que impede o movimento e a adaptação. A flexibilidade não é a expansão frouxa que nada consegue realizar. O lutador cujo corpo é rígido, tensionado e retraído não consegue reagir a tempo ao golpe do adversário. É preciso que ele esteja relaxado e flexível para responder a ação externa sem demora.

Porém, o relaxamento não deve ser tibieza. O lutador cujo corpo é frouxo não logra reagir ao golpe do adversário por falta de firmeza. Tampouco seu contragolpe (se houver) será eficiente. O ponto está em ser flexível e firme nos momentos certos. A firmeza de um soco está na sua finalização, e é precedida pela flexibilidade do relaxamento do corpo. A firmeza deve novamente retornar à flexibilidade tão logo o golpe tenha sido desferido. A onda que se forma e bate contra a pedra desfaz-se em seguida retornado à indistinção do mar.

"Nada sob o céu é mais flexível e frágil que a água. A água é a Via: infinitamente larga, incalculavelmente profunda. Estende-se indefinidamente sem fronteiras. Cresce e decresce sem cálculo, no alto do céu faz-se chuva e desce, e abaixo faz-se terra úmida fértil. Sem ela, os seres não vivem e as obras não são realizadas. Abarca toda vida sem preferências pessoais. Sua umidade alcança até os seres rastejantes, e não busca recompensa".

A água (水) é um símbolo da Via (道). Amorfa, ela assume os contornos daquilo no qual se encontra, semelhante ao poder do Tao de, por assim dizertornar-se todas as coisas que ele origina. Justamente por não ser nada em particular, o Princípio último (a Possibilidade Absoluta) pode constituir os limites intrínsecos de cada coisa que há e pode haver. A adaptabilidade da água à forma de qualquer corpo continente representa essa virtude proteica e criativa de ser todas as coisas sob certo aspecto e não ser nenhuma delas segundo outro aspecto.

A extensão sem limite aparente e as profundidades abissais do mar sugerem a natureza infinita e indiferenciada da Via. Ela cresce e diminui sem cálculo, com liberalidade absoluta. Nesse sentido, a Via é desmedida, transbordante, e não estabelece qualquer limite para a sua doação às coisas. A sua prodigalidade contrasta com a avareza do homem que guarda ciosamente as suas posses. 

O trânsito ascendente da água na direção do Céu (天) e descendente na direção da Terra (地) representam a presença do Tao nos dois polos opostos primordiais da realidade. A unidade é fundamento da dualidade. As transformações respectivas da água em chuva e em umidade fértil indicam a permanência que subjaz às mudanças dos estados. Os seres vivos não sobrevivem sem água e nem as obras são feitas na sua ausência. Tudo depende do Tao para existir e se manter na existência.

A água distribui suas bênçãos gratuitamente a todas as coisas, as superiores e as inferiores, sem distinção de nenhuma espécie. Pois o Pai que está nos Céus "faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos" (Mt 5,45). A presença do Princípio nos seres traz todos eles à existência e os sustenta, não importando o seu lugar na hierarquia cósmica. Essa equanimidade é a suprema virtude (至德), e a água a simboliza por ser suave e flexível.

"Ilimitada a sua ação, incompreensível a sua sutileza. Não sofre dano se golpeada, a perfuração não a fere, o fatiamento não a corta, o fogo não a incendeia. Suave e flexível, não se dispersa. É tão penetrante que perfura o metal e a pedra, e forte para submergir tudo sob o céu (天下)".*

A água não apresenta limites na sua ação, renova-se constantemente. Nenhum golpe causa-lhe mágoa, nem lâmina alguma logra perfurá-la ou cortá-la. O fogo não a queima. Não é rígida, por isso pode ser flexível e se adaptar às situações. Não obstante, penetra as coisas rígidas como como os metais e as pedras, e pode submergir todas as coisas num dilúvio. Mesmo não sendo sólida, a água pode, se concentrada, destruir estruturas sólidas. 

O caráter imaterial e espiritual da Via é representado pela suavidade e pela flexibilidade da água. Nada pode atingi-la porque tudo o que há e pode haver, as "dez mil coisas", provém de seu poder inesgotável. O Tao está inteiramente presente nos seres, desde os mais tênues e imateriais até os mais grosseiros e sólidos, semelhante à água que penetra até nos metais e nas pedras. "O mais suave controla o mais forte". A despeito de sua sutileza e de sua invisibilidade, o poder do Princípio é capaz de submergir tudo o que há neste mundo. 

"O informe é o grande ancestral dos seres". forma vem do informe, o qual não deve ser entendido como aquilo que está abaixo de qualquer forma, mas como a transcendência de toda forma. As águas simbolizam tradicionalmente o potencial, o que ainda não se efetivou na realidade. No sentido das águas inferiores, elas representam o amorfo enquanto dissolução das formas. Porém, na qualidade de águas superioreselas são o repositório de todos os possíveis, a infinita coincidentia oppositorum na qual todas as coisas têm o seu nascedouro.
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* 天下, Tienxia, expressão formada pelos ideogramas 天, "Céu" e 下 "abaixo" ou "inferior" pode ser traduzida como "o que está sob o céu", significando o mundo como um todo. Há outros significados metafísicos, sociais e políticos.
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