quinta-feira, 25 de maio de 2023

Maimônides, Torá e a negação dos atributos de Deus


"Tu deves entender que Deus não possui atributo essencial de nenhuma forma e em nenhum sentido qualquer, e que a rejeição da corporalidade implica na rejeição dos atributos essenciais. Aqueles que acreditam que Deus é Um, e que Ele possui muitos atributos, declaram a unidade com seus lábios, e assumem a pluralidade nos seus pensamentos. Isso é semelhante à doutrina dos cristãos, que dizem que Ele é um e que Ele é três, e que três são um. Do mesmo caráter é a doutrina daqueles que dizem que Deus é Um, mas que Ele possui muitos atributos."

RABBI MOISÉS BEN MAIMÔNIDES, O Guia dos Perplexos, cap. L

O médico, teólogo e filósofo cordobês do século XI D.C., rabbi Moisés ben Maimônides, conhecido também como Ramban, em sua obra mais famosa, O Guia dos Perplexos, pretende guiar aqueles fiéis que, tendo uma vida religiosa sincera e exemplar, sentem-se perplexos diante de muitas expressões e características humanas e corporais atribuídas a Deus na Torá. Logo no início do livro, o rabbi expõe claramente o seu objetivo de explicar certas expressões encontradas nos livros proféticos a fim de ensinar o verdadeiro sentido da Torá àqueles que estão preparados para tal conhecimento.

Não se encontram entre esses preparados os que são ignorantes, e nem mesmo aqueles que só se dedicam ao estudo da Lei mosaica. O Guia dos Perplexos é dirigido somente aos homens religiosos e diligentes cumpridores da Lei que realizaram também estudos filosóficos, e que, portanto, sentem dificuldade em aceitar como correta a interpretação literal das Escrituras. Esses são os que se encontram perdidos em perplexidade e em ansiedade.

O Senhor, em Sua bondade, revelou aos homens uma Lei para regrar o seu comportamento. Para compreendê-las, é mister obter conhecimento correto da existência do Criador de acordo com nossas capacidades, isto é, Metafísica. Mas para alcançar a Metafísica, é preciso passar pela Física. Por essa razão, as Escrituras se iniciam com o relato da Criação. Todas essas verdades profundas foram comunicadas a nós por meio de linguagem alegórica, figurativa e metafórica.

O Eterno fez assim para que todos compreendessem essas verdades difíceis, na medida de suas faculdades e na fraqueza de seu entendimento e educação. O mesmo não pode se aplicar aos que já fizeram estudos filosóficos. Estes, fiéis à Lei e à Revelação divina, encontram-se perplexos diante de certas expressões utilizadas nos textos sagrados com referência a Deus. 

Maimônides lança mão do dito talmúdico segundo o qual a Torá fala a linguagem do homem. O que significa que a linguagem usada nos textos sagrados é dirigida a todos sem distinção, de modo que os termos nem sempre possuem sentido literal a fim de que mesmo os mais ignorantes e parvos sejam capazes de entender a mensagem ali veiculada. Assim, quando se atribui a Deus algum termo que denota corporeidade, o intuito é sugerir a idéia de existência, já que muitos têm dificuldade de conceber qualquer existência que não seja corporal.

Obviamente, não se pode iniciar os jovens logo no estudo da Metafísica. Eles devem ser educados de acordo com suas capacidades. Os mais talentosos, contudo, devem ser identificados e, aos poucos, introduzidos em um modo de estudo mais alto baseado em provas e em argumentos. O ensino desses temas antes do tempo certo é prejudicial à fé. Maimônides fornece cinco razões contra o início dos estudos pela Metafísica.

A primeira é que o assunto é difícil, sutil e profundo. Nenhuma instrução deve iniciar com temas abstrusos. É preciso progredir do elementar ao mais sofisticado. A segunda razão é que a inteligência ainda não está completamente formada e preparada para esses estudos. A terceira razão é que a Metafísica requer estudos preliminares prolongados que poucos, muito poucos, estão dispostos a empreender. A quarta razão é a constituição física do jovem, cujo temperamento quente e desordenado deve antes ceder e dar lugar à moderação e à calma. A quinta razão são as necessidades da vida que impedem os estudos.

Após explicar os significados metafóricos, figurativos e alegóricos de diversas palavras empregadas na Torá com referência a Deus, Maimônides passa a tratar da questão metafísica dos atributos divinos. O atributo pode ter dois sentidos: no primeiro, expressa a essência de algo (por exemplo, se digo que o homem é um "animal falante", estou apenas expondo a definição do que é um homem). No segundo, é algo não inerente ao objeto, e que é adicionado a ele como elemento exterior.

Uma coisa pode ser definida de cinco modos. Primeiro, por sua essência, como o homem é definido por "animal racional". Ocorre que Deus não pode ser definido, já que nada há que seja anterior a Ele. Como definir aquilo que é a causa de tudo o que se pode definir? Em segundo lugar, uma coisa pode ser descrita por uma parte de sua definição, como quando afirmamos que todo homem é racional. Esse modo não se aplica a Deus pelos mesmos motivos do primeiro modo.

A coisa pode, em terceiro lugar, ser definida por uma de suas qualidades, sejam elas morais ou intelectuais, físicas, emocionais e passionais, ou mesmo quantitativas. Nenhuma, por óbvio, pode ser aplicada a Deus. A quarta tentativa seria definir a coisa por sua relação com outros entes, como quando se diz que Sócrates é mestre de Platão. O problema é saber se Deus pode ser definido por Sua relação com algo.

Maimônides é enfaticamente contrário a essa tentativa. Deus não pode ser comparado a nada, e o fundamento da relação é que os entes relacionados sejam do mesmo tipo. Não se relaciona o intelecto com a visão, pois não são entes do mesmo tipo. Mais absurdo ainda seria estabelecer alguma relação entre Deus e as criaturas, como se estivessem no mesmo patamar. O Absoluto não pode ser comparado o meramente possível. Nada há em comum entre Deus e as criaturas, e mesmo a existência é atribuída a ambos somente por pura homonímia.

Os homens foram levados a crer em atributos divinos por uma interpretação literal dos termos utilizados nos textos sagrados. Vale novamente o princípio de que a Torá fala a linguagem dos homens. As perfeições aplicadas a Deus na Torá são perfeições somente em relação aos seres criados. Muitos desses atributos são ações que parecem sugerir mudanças em Deus, mas na realidade não implicam nenhum câmbio na divindade. Se nos seres humanos há diferença entre a sabedoria e a vontade, nenhuma diferença pode ser encontrada entre a sabedoria divina e a vontade divina. Essas relações e distinções só existem nas mentes dos homens.

Em todos os outros entes da realidade, a existência é um atributo, por assim dizer, adicionado às suas essências. Isto é, quando conhecemos a essência de um ente finito, sabemos o que ele é, mas isso não implica que ele deva ou não existir. Maimônides aplica aqui a distinção islâmica entre essência e existência, defendida por Avicena. Para que a essência de um ente finito possa existir, a ela precisa ser dada a existência por um ente que já exista na realidade. 

Ora, Deus não é uma essência cuja existência deve ser-Lhe adicionada por uma causa externa. A existência não é um atributo adicionado à sua essência. Sua essência é idêntica à Sua existência. Deus não é uma substância cuja existência seja um acidente, Ele é a existência. Do mesmo modo, não possui a vida, é a vida. Não possui conhecimento, é o conhecimento. Não há pluralidade em Deus.

Só temos à nossa disposição uma linguagem inadequada quando tratamos de Deus. Por exemplo, se dizemos que "Deus é um", não utilizamos esse termo em sentido quantitativo, como em "um" e "muitos". Deus não é uma unidade entre outras unidades. O que queremos expressar é que não há nada semelhante a Ele. Quando dizemos que Deus é o "Primeiro" ou o "Último", não queremos insinuar nenhuma sucessão temporal, mas, ao contrário, expressar a Sua imutabilidade eterna. 

Rabbi Maimônides, havendo discutido a inadequação dos atributos positivos, passa a tratar de um tema que considera ainda mais recôndito que os precedentes. Os verdadeiros atributos de Deus são os negativos, ou seja, os que não incluem nenhuma noção incorreta ou qualquer deficiência com relação a Deus. Não é possível descrever o Criador a não ser por meio de atributos negativos. Estes não dizem o que é a coisa, mas somente o que ela não é. Circunscrevem o objeto de certa forma, só que pela exclusão de um atributo e não pela inclusão.

Compreendemos somente que Ele existe, não Sua essência. Ele não possui a existência como um acidente adicionado à Sua essência. Se Deus é pura existência, não é uma essência que sustente atributos positivos como são os outros entes. Os atributos negativos, por seu turno, não implicam multiplicidade ou limitação, além de fornecer ao homem o maior conhecimento sobre o Senhor. 

Deus é livre da substância, é absoluto, simplíssimo, incausado, perfeitíssimo. Tudo o que entendemos é que Ele existe, que não é similar a nenhum outro ser, que não inclui pluralidade, doador da existência aos seres, preservador e governante do universo. Diante de Suas obras, nosso conhecimento se prova ignorância. Toda perfeição que atribuímos a Deus é uma perfeição somente com relação a nós. Os atributos negativos não dizem o que Deus é. Nosso conhecimento consiste em saber que somos verdadeiramente incapazes de compreendê-Lo.

A seriedade do que foi estabelecido acima é tamanha que Maimônides declara que aquele que afirma que Deus possui atributos não erra somente por ter um conhecimento deficiente do Criador, mas, muito pior do que isso, inconscientemente perde sua fé em Deus. Nas coisas comuns, um conhecimento parcial significa um erro parcial. Em se tratando de Deus, onde não há pluralidade, é impossível conhecer algo e desconhecer outro tanto. Assim fazem os que assumem que Deus possui atributos adicionados à Sua essência.

O que Maimônides quer expressar é que Deus é incompreensível justamente porque não é uma substância com atributos como são os entes finitos deste mundo criado. Afirmar atributos positivos em Deus é como rebaixá-Lo ao nível das criaturas. É torná-Lo um ente entre outros entes. A absoluta transcendência de Deus exige a Sua incognoscibilidade essencial. Aquele que é a origem de todos os atributos não pode Ele mesmo possuir atributos. 

Obviamente, esbarramos nesse ponto nos limites de nossa linguagem, adequada para tratar daquilo que é inteligível, portanto limitado. A solução é a atribuição negativa, a linguagem apofática. Ela não diz o que Deus é, porém evita que conceitos limitados criem distorções e limitações indesejáveis. Afirmar que Deus é mau é obviamente errado, mas dizer que Ele é bom também não O descreve com justiça, dado que nossa medida de bondade é limitada. É preciso sim negar a imperfeição para afirmar a perfeição. Por outro lado, é também necessário negar mesmo a perfeição para que não se afirme a imperfeição.

O rabbi cordobês adiciona que todos os nomes atribuídos a Deus nas Escrituras são derivados dos Seus efeitos, exceto o Tetragrammaton (YHWH), que é exclusivamente atribuído a Ele como o Shem HaMephorash, "o Nome Explícito". A sacralidade desse nome, que só era pronunciado pelo sumo sacerdote no santuário no Dia da Expiação, está ligada ao fato de que ele denota a Deus Ele mesmo, e a mais nenhum outro ente. Todos os outros nomes dados a Deus na Torá são derivativos.

Quando Deus ordenou a Moisés que anunciasse Seu nome aos hebreus, o santo patriarca questionou como deveria apresentá-Lo ao povo. Deus manda que Moisés o anuncie como Ehieh asher Ehieh, nome derivado do verbo hayah, no sentido de "existente". Maimônides afirma que, nessa expressão, sujeito e predicado, o primeiro Ehieh e o segundo Ehieh, são idênticos. Unidos sujeito e objeto por asher, "que", a expressão significaria o existente que é existente. Em outros termos, Deus existe em um sentido diferente do sentido ordinário de existência. Sua existência é absoluta.

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Leia também: Νεκρομαντεῖον: Maimônides e os atributos divinos (oleniski.blogspot.com)

terça-feira, 16 de maio de 2023

Nancy Cartwright, ciência e as leis naturais


"O mundo manchado é feito de todas as ricas e variadas características que nós experienciamos em nossas vidas cotidianas e que estudamos em nossa vasta variedade de disciplinas científicas, sub-disciplinas e sub-sub-disciplinas. É um mundo rico em coisas diferentes com naturezas diferentes  comportando-se de formas diferentes. As leis que descrevem este mundo são uma miscelânea , não uma pirâmide. Elas não tomam a simples, elegante e abstrata estrutura de um sistema de axiomas e teoremas."

NANCY CARTWRIGHT, A Philosopher Looks at Science, p.126 (tradução minha)

A importante filósofa da ciência Nancy Cartwright, em seu último livro A Philosopher Looks at Science, de 2022, defende uma visão mais matizada da imagem da natureza que a ciência apresenta, o que ela denomina de dappled world (literalmente, "mundo manchado"). Cartwright argumenta que o mundo da filosofia mecanicista, do mundo como um grande relógio cujo mecanismo nunca deixa de funcionar de acordo com leis fixas e determinadas desde o seu início, não corresponde ao que se vê na realidade cotidiana e nem com o que a prática científica enfrenta em suas investigações.

Haveria, portanto, a necessidade de se pensar em uma natureza mais, por assim dizer, "negociável". A fixidez inabalável das leis naturais que garante que todas as peças do mecanismo funcionarão comme il faut sem a menor sombra de variação não passa de uma miragem, pois mesmo quando o cientista trabalha com aparelhos e máquinas as coisas nem sempre se dão como previsto. Menos ainda quando se trata de situações da vida fora dos contextos controlados dos laboratórios.

Ao contrário de um elegante sistema dedutivo de axiomas e teoremas, as leis que descrevem o nosso mundo têm muito mais a aparência de uma colcha de retalhos, dada a variedade de coisas existentes, com naturezas diferentes e comportamentos diferentes. Parcelas de grande precisão, porções resistindo à formulação precisa, sobreposições erráticas, cantos que se encaixam, mas na maioria das vezes pontas irregulares. Cartwright assevera que "muito do que ocorre acontece por acaso, sujeito a lei nenhuma. O que acontece é mais como o resultado da negociação entre domínios do que a consequência lógica de um sistema de ordem." (p. 127)

Historicamente, a tentativa de redução da variedade da natureza a leis fixas realizada pela filosofia mecanicista encontrou resistência desde de seu início. Mesmo no século XVII, como mostrou a historiadora da ciência Lorraine Daston, o fascínio pelo singular e pelo maravilhoso tinha enorme apelo nas mentes de inúmeros cientistas como Leibniz e Margareth Cavendish. A despeito de tais protestos, a filosofia mecanicista venceu o debate, explicando tudo na natureza em termos de mecânica, ou seja, movimento e matéria.

Cartwright argumenta que essa imagem gera dois puzzles. O primeiro é que, segundo a imagem padrão mecanicista, tudo acontece segundo leis naturais fixas e imutáveis, e, no entanto, em nossa vida, muito parece ser contingente e dependente de nossa ação. Essa fixidez mecanicista não se apresenta nem mesmo quando lidamos com a melhor de nossas máquinas, que dirá com o resto da natureza.

O segundo puzzle é que, se a natureza segue leis fixas e imutáveis, como querem os mecanicistas, como é possível que, ao mesmo tempo, seja defendido que o conhecimento dessas leis nos dará domínio tal sobre a natureza que mudaremos o curso dos eventos a nosso favor? Se tudo está determinado desde o início, nem a ciência poderia nos ensinar como mudar esse rumo. 

A doutrina de uma ordem total está calcada em duas premissas características da filosofia mecanicista que formam o que Nancy Cartwright denomina de argumento da regra absoluta:

1. As leis da física são determinísticas, com exceção das leis que governam os fenômenos quânticos, que são probabilísticos;

2. Todas as propriedades que ocorrem na natureza são fixadas por aquelas no domínio da física.

A conclusão: todas as propriedades que ocorrem na natureza são determinadas por algum estado físico inicial.

Tomando o segundo puzzle, a filósofa americana assevera que a imagem padrão parece ser inconsistente, pois a fixidez inexorável das leis determinísticas da natureza parece contraditar o poder humano de mudar o curso dos eventos. Os defensores do mecanicismo resolvem a inconsistência simplesmente negando a liberdade humana como uma ilusão. Cartwright admite que esse argumento é compatível com os dados que conhecemos, além de explicar as predições precisas que frequentemente são realizadas na física.

A questão, entretanto, não é se uma imagem meramente "acomoda" os dados, como parece ser o caso do mecanicismo, mas sim se ela é a melhor conclusão a ser inferida. O interesse de Cartwright é saber o que inferir sobre o mundo a partir da ciência, e sua tese é a de que o "mundo manchado" é uma imagem melhor da natureza do que o mecanicismo. A sua vantagem reside em que, embora indo para além dos dados como toda imagem da natureza, ela não avança tanto no terreno da metafísica como a concepção do universo mecânico.

A fim de defender a sua imagem do mundo, Nancy Cartwright passa a considerar onde a física obtém seus maiores sucessos. A física tem sucesso principalmente em fazer predições precisas e detalhadas. Não há lugar para o "mais ou menos assim". Entretanto, essas predições precisas acontecem na sua maioria em situações altamente planejadas e controladas, em um laboratório ou em um dispositivo tecnológico. Com a exceção do sistema planetário, que quase não é submetido a causas desregradas, raramente essas situações são encontradas na natureza. 

Cartwright denomina small worlds (mundos pequenos) essas configurações. Os small worlds seriam mundos dos quais uma determinada ciência saberia como criar um modelo, onde todas as causas significativas de um certo efeito pudessem ser descritas por essa ciência utilizando seus próprios princípios para entender e prever os resultados. O sucesso impressionante da física se dá geralmente em situações criadas para serem adequadas ao que a física sabe que pode fazer: small worlds, lasers ou laboratórios.

Há que se recordar também que os conceitos da física, uma ciência exata, devem ser precisos, mensuráveis e adequados a leis matemáticas. Essas restrições rigorosas na aplicação dos conceitos da física diminuem a possibilidade mesma de sua aplicação em todos os domínios da realidade. Assim, para se afirmar que o mundo é capaz de ser descrito completamente pelos conceitos rigorosamente restritos da física matematizada, é preciso afirmar que ele é inteiramente um small world.

A favor dessa tese haveria os crescentes sucessos da ciência em expandir seus limites para fenômenos antes considerados intratáveis. Porém, há igualmente uma história dos fracassos. Nem tudo o que há na realidade admite tradução em termos de conceitos físicos. Não há como decidir a questão somente com métodos históricos. De um jeito ou de outro, será necessário recorrer à metafísica.

Invocando uma noção do filósofo britânico John Stuart Mill, Nancy Cartwright concebe as leis da física como tendências. Elas não descrevem como as coisas se comportam, mas sim como as coisas tendem a se comportar. As leis não se realizam plenamente a não ser em situações adequadas, small worlds, onde não há ação de nenhuma outra força. Os sucessos preditivos da física só são produzidos nesses ambientes controlados onde nenhuma interferência externa é permitida.

A consequência importante que Cartwright infere disso é que, embora resultados precisos sejam alcançados em ambientes controlados, afirmar que no mundo que conhecemos as coisas se comportam precisamente como no laboratório é pura especulação. Do mesmo modo, é especulativa a tese de que todos os ambientes estão estruturados da forma correta, esperando apenas serem descobertos. 

Essas tendências sugerem certa estabilidade, pois as leis físicas descreveriam como tende a ser o comportamento das coisas mesmo em ambientes onde há muitas forças em ação além das que se verificam nos small worlds. Cartwright afirma que há duas formas de interpretar as tendências. A primeira forma seria encarar as leis físicas como instrumentos (tools), a segunda consistiria em ver nas leis descrições de poderes (powers).

Enquanto instrumentos, as leis científicas não implicariam qualquer afirmação metafísica de existência de leis naturais. O foco residiria em usar essas leis científicas como ferramentas para construir modelos, medições, predições e tecnologia. No caso dos poderes, as leis descreveriam capacidades nos sistemas para agir e realizar mudanças. Ambas as interpretações são compatíveis com o dappled world, onde estão misturadas a ordem e a contingência, e nenhuma delas exige o comprometimento com alguma forma de antirrealismo científico.

Outra vantagem dos poderes é que eles explicam as leis da ciência, isto é, as coisas se comportam como as leis científicas descrevem por causa dos poderes intrínsecos às coisas. No início da filosofia mecanicista era fácil explicar a regularidade das leis naturais pelos decretos de Deus no Livro da Natureza. Mas quando se retira o Senhor do cenário, torna-se mais difícil justificar metafisicamente a crença em um comportamento regrado das coisas no mundo.

Nancy Cartwright chama a atenção para um fato histórico bastante interessante. Os modernos debochavam dos antigos e dos escolásticos porque estes explicavam as coisas a partir de certos poderes. Desse modo, os escolásticos explicavam a queda dos corpos por uma tendência natural que eles chamavam gravidade. Ora, diz a filósofa, o mesmo é dito por Newton quando afirma que a Terra tem um poder de atração relacionado à sua massa. 

O que foi acrescentado nos anos seguintes de pesquisa científica foi um conjunto maior de informações sobre essa força e outras que podem agir em conjunto. Nos small worlds os cientistas sabem tanto quais forças estão em ação como também sabem calcular seu efeito conjunto. Contudo, nos large worlds, onde tanto as causas quanto os arranjos escapam ao escopo de qualquer ciência, não sabemos se há regras fixas para o que acontece. Talvez o que acontece se assemelhe aos resultado de uma regra aproximativa, de analogias grosseiras ou mesmo da ausência de sistemas. 

segunda-feira, 8 de maio de 2023

Alvin Plantinga, Deus e a regularidade das leis naturais


"Deus é capaz de criar partículas de matéria de diversos tamanhos e figuras, e em diversas proporções no espaço, e talvez de diferentes densidades e forças, e, portanto, capaz de variar as Leis da Natureza e fazer mundos de múltiplos tipos em múltiplas partes do Universo. Ao menos, não vejo nenhuma contradição em tudo isso."

ISAAC NEWTON, Opticks, livro III, parte 1

O importante filósofo analítico americano Alvin Plantinga publicou em 2012 o excelente Where the Conflict Really Lies, livro no qual investiga quais seriam realmente os pontos de conflito e de concordância entre e o teísmo cristão e a ciência moderna. Após examinar detidamente os pontos de conflito, que conclui serem superficiais ou ilusórios, passa, do capítulo 9 em diante, a apresentar os pontos de concordância entre a ciência e o cristianismo.

A primeira coisa que Plantinga observa é que, apesar de todas as declarações em contrário, o cristianismo não foi deletério para o desenvolvimento da ciência moderna, dado que foi no mundo cristão que ela floresceu. Os grandes cientistas da época eram crentes: Copérnico, Galileu, Descartes, Newton, Boyle, etc. O filósofo americano considera que nada há nesse fato a se estranhar. Ao contrário, o cristianismo ofereceu as condições necessárias e suficientes para o surgimento da ciência moderna.

Apesar das concepções divergentes acerca do que é a ciência (realistas considerando que a ciência busca a verdade, instrumentalistas defendendo que basta que as teorias sejam úteis e empiricistas construtivos exigindo das teorias somente adequação empírica), Plantinga postula uma ideia básica: ciência é fundamentalmente uma tentativa de aprender verdades importantes sobre nós mesmos e sobre nosso mundo.

Obviamente, essa busca por verdades importantes não significa que a ciência tente ou possa responder a qualquer pergunta. Questões morais ou religiosas, por exemplo, estão fora de seu escopo. A investigação científica é sistemática, disciplinada e necessariamente envolve um substancial envolvimento empírico. Mas em quê o cristianismo contribuiu para esse gênero de investigação? A concepção do homem como uma imagem de Deus, o onisciente, contribuiu para a ideia de que a inteligência é o atributo que propriamente mais nos aproxima da essência divina.

Se Deus, aquele que tudo conhece, criou o homem à sua imagem e semelhança, então o homem é também um conhecedor, embora infinitamente mais limitado. Para que o homem conheça efetivamente, e assim realize essa semelhança com Deus, é preciso que haja uma harmonia entre as faculdades cognitivas humanas e a realidade criada. A ciência não é mais do que uma extensão de nossas formas ordinárias de aprendizado.

Note-se que aqui Plantinga faz referência a um ponto central de sua própria epistemologia externalista. Ao longo de uma trilogia, Warrant: the Current Debate, Warrant and Proper Function e Warranted Christian Belief, o filósofo americano apresentou seu critério para que uma crença verdadeira qualquer fosse epistemologicamente justificada. Temos um conjunto de fontes básicas de conhecimento como os sentidos, a memória, a indução, a intuição a priori de verdades formais, etc. A evidência dessas fontes não é derivada de outras fontes mais básicas do que elas mesmas.

Acreditamos nessas fontes por algo que Plantinga chama de impulsional evidence (evidência impulsional), isto é, somos impelidos a acreditar nelas em circunstâncias normais. Se esses órgãos do conhecimento, por assim dizer, estiverem funcionando como devem funcionar, e seu funcionamento for dirigido à verdade, ou seja, for dirigido à fornecer informações que espelhem a realidade, então, a despeito do sujeito conhecedor saber disso ou não, haverá conhecimento plenamente justificado. A esse critério epistemológico Plantinga denominou Proper Function (algo como "função própria", "função precípua").

Como o próprio Plantinga fez questão de observar em uma de suas obras, nesse ponto a epistemologia toca a metafísica. Não é possível garantir a acuidade das faculdades cognitivas mais básicas sem o conceito de proper function, e este, por sua vez, exige um planejador (designer) que intencionalmente produza esse aparelho cognitivo feito para captar a verdade. A outra consequência, segundo Plantinga, é que qualquer metafísica que não admita esse planejador não conseguirá explicar como as faculdades cognitivas se formaram com o objetivo de serem confiáveis

O argumento não é novo, no entanto. Descartes, nas suas Meditações, já havia notado que qualquer outra origem que o ser humano tenha que não seja o Deus perfeitíssimo, todas as nossas mais básicas formas de conhecimento podem ser colocadas em dúvida. O argumento de Plantinga deriva a necessidade da existência de um designer supremo partindo das condições de confiabilidade (proper function) do aparelho cognitivo humano. Esse é o hardcore de seu famoso argumento contra o naturalismo metafísico.

Retornando à discussão sobre a ciência, Plantinga aponta que esta necessita que haja regularidade e previsibilidade no mundo para que as suas investigações tenham sucesso. O mesmo se dá nas ações intencionais individuais de nosso cotidiano. O cientista, portanto, para exercer o seu mister, tem que possuir de antemão a forte convicção de que o mundo é ordenado, de que há uma ordem natural governando todas as coisas

Ora, o cristianismo afirma justamente que Deus criou o mundo e o mantém por Sua providência. Tudo foi ordenado por Ele e obedece às Suas leis. Deus, como enfatizaram os medievais, é racional, não é caprichoso em Suas ações e em Seus decretos. Por essa razão, a Natureza é regular e previsível. No século XVII (no qual se iniciou a Revolução Científica) em diante essa regularidade foi formulada em termos de leis naturais. De Descartes a Stephen Hawkings, passando por Robert Boyle, Roger Cotes, Johannes Kepler, Isaac Newton e Albert Einstein, todos os cientistas estão convencidos de que o universo é governado por um conjunto pequeno de leis imutáveis e acessíveis à compreensão humana.

Resta a questão sobre o que é uma lei natural. Uma lei é sempre universal, isto é, aplica-se a muitos. Entretanto, nem toda sentença universal verdadeira pode ser considerada uma lei natural. Plantinga dá os seguintes exemplos:

    (1) Todos em minha casa têm mais de cinquenta anos.

    (2) Toda esfera feita de ouro tem menos que 1/2 milha de diâmetro.

Suponhamos que as duas sentenças sejam verdadeiras. São sentenças universais verdadeiras, mas não podem ser consideradas leis naturais. A razão é que são verdadeiras por mero acidente. Poderiam muito bem ser falsas. O que falta a elas é o caráter de necessidade. O necessário é aquilo que não pode ser negado sem gerar contradição, ou aquilo que não pode ser diferente do que é. O exemplo mais típico da necessidade se encontra nas ciências formais como a matemática e a lógica.

Ninguém pode negar que 2+2=4 ou que "todo solteiro não tem sogra". Ocorre que aqui se trata de necessidade lógica, e as chamadas leis naturais parecem não possuir o mesmo tipo de necessidade. Se é logicamente impossível pensar em qualquer outro resultado para 2+2=4, é logicamente possível pensar em duas partículas que não sigam as leis de Newton de atração à distância, ainda que estas sejam realmente leis naturais.

O teísmo, afirma Plantinga, oferece recursos importantes para esclarecer a natureza das leis naturais. Elas seriam necessárias na medida em que são ordens divinas que nenhum ente finito jamais poderá interromper ou alterar. Como o próprio filósofo define, "as leis da natureza, portanto, assemelham-se às verdades necessárias no que tange ao fato de que não há nada que nós ou outras criaturas possamos fazer para torná-las falsas. Poderíamos afirmar que elas são finitamente invioláveis." (p.281)

Por outro lado, embora sejam decretos divinos, essas leis não são necessárias em si mesmas. Elas são meramente contingentes, de modo que Deus poderia muito bem ter feito outras leis para a atração entre os corpos, por exemplo. E nem é justo pensar que essas leis limitam o poder divino. Nesse sentido, podemos pensar nas leis naturais da seguinte forma:

"Quando Deus não está agindo especialmente, então P."

Por exemplo,

"Quando Deus não está agindo especialmente, então nenhum objeto material acelera de uma velocidade menor que c para uma velocidade maior que c."

A lei natural seria definida pelo comportamento usual do fenômeno quando não está sob a ação especial de Deus. Note-se que assim Plantinga tenta eliminar qualquer acusação de que o milagre seria uma suspensão das leis naturais instituídas pelo próprio Deus. As leis naturais não têm o caráter de necessidade lógica, nada impede que sejam contraditadas. Sendo contingentes, a necessidade das leis naturais é somente uma tendência interna a apresentar certos efeitos que podem a qualquer momento ser interrompidos por uma ação divina especial.

Plantinga salienta que a lei natural pode ser expressa em um condicional no qual o antecedente sendo falso, o consequente será verdadeiro. Se Deus não agir de modo especial, as coisas seguirão seu rumo usual. Nenhum ser pode alterar a lei natural, só Deus. O que significa que ela só existe de forma inexorável e inelutável para nós. A lei natural expressa a diferença de poder que há entre Deus e os demais seres. 

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Leia também: Νεκρομαντεῖον: Alvin Plantinga (oleniski.blogspot.com)