domingo, 24 de outubro de 2021

Lieh-Tzu, realidade, memória e mente.

"Nossas emoções são o resultado de nossas crenças. Estas não têm nada a ver com o que é a realidade lá fora. Se acreditamos em uma coisa, então certas emoções aparecerão. Se acreditamos em algo diferente, experimentaremos emoções diferentes."

LIEH-TZU

O livro de Lieh-Tzu conta a história de um homem chamado Hua-Tzu que, na metade de sua vida, perdeu a sua memória. Sua família, apavorada, buscou a ajuda de feiticeiros para curar Hua-Tzu. Nenhum deles, contudo, foi capaz de curar o homem. 

A família dirigiu-se, então, à casa de um sábio em busca de ajuda. Este examinou com cuidado Hua-Tzu e percebeu que o homem sempre buscava o contrário daquilo que o sábio aplicava nele como tratamento. Se o deixava nu, queria estar vestido. Se o fazia passar fome, queria comer. Se o trancava em um lugar escuro, queria sair dali.

Ora, o sábio entendeu qual era a sua doença e explicou aos seus familiares que aquilo não tinha cura por meio de encantos, mas que necessitava de métodos diferentes. Pediu que a família o deixasse ali e só retornasse em sete dias. Enquanto isso, o sábio aplicaria uma técnica utilizada há muitas gerações.

Após os setes dias estipulados pelo sábio, a família de Hua-Tzu retornou e encontrou o homem curado. Porém, Hua-Tzu estava irritado e feroz. Quando questionado acerca da razão de sua irritação, Hua-Tzu respondeu que quando estava sem memória ele era livre de cuidados e de preocupações, nada tinha em sua mente e era um homem livre. 

Agora, com a memória restituída, Hua-Tzu era um homem miserável, olhava para trás e via suas venturas e desventuras, os ganhos e as perdas, as alegrias e as tristezas de sua vida. Acordara de um bom sonho e entrar em um pesadelo. Não seria jamais capaz de retornar àqueles tempos felizes quando não tinha memória.

Confucius, quando seu discípulo Tzu-Kung contou-lhe o caso de Hua-Tzu em busca de uma explicação, disse somente que isso era algo que o discípulo jamais entenderia. E mandou seu discípulo mais promissor, Yen-Hui, tomar nota de tudo aquilo.

A história contada por Lieh-Tzu em seu livro faz parte de uma coleção de contos que enfatizam as incertezas dos juízos humanos acerca da realidade. O que é realidade? Para a família de Hua-Tzu, ele estava doente, desprovido de uma função importante de seu corpo e, portanto, deveria ser curado. O sábio percebeu que Hua-Tzu buscava sempre o contrário daquilo que era apresentado ele como tratamento. Isto é, ele via tudo pelo contrário, seu mundo estava invertido. Ele deveria ser curado.

Quando finalmente foi curado, Hua-Tzu revelou uma dimensão da realidade que ninguém ali havia conhecido: a extrema liberdade de não ser atormentado pelas lembranças do passado. Sem memória, tudo era sempre novo para Hua-Tzu. Sua mente não era moldada pelos seus atos do passado e nem pelos seus temores. Hua-Tzu via tudo em equanimidade, pois sua mente estava vazia.

Ele havia ultrapassado os opostos de ganho e de perda, de felicidade e de tristeza, de sucesso e de fracasso. Por essa razão, sair daquele estado era como sair de um sonho bom para um pesadelo. Novamente Hua-Tzu estava no mundo das dualidades e das apreensões e juízos da mente. Para seus parentes, Hua-Tzu era um infeliz quando estava sem memória. Para Hua-Tzu a vida sem memória era um paraíso. 

Em outra história, Lieh-Tzu conta que um homem adulto partiu para a casa de seus ancestrais na terra de seu nascimento, Ch'u. Seus companheiros de viagem resolveram aplicar-lhe uma peça e, chegando à terra de Chin, disseram ao homem que aquela era a sua Ch'u natal. O homem ficou silencioso e pensativo. 

Depois, os companheiros, apontando para um prédio, disseram a ele que ali estava o templo da sua vizinhança. O homem suspirou profundamente. E, por fim, apontaram para algumas lápides e informaram ao homem que ali estavam enterrados seus pais. O homem chorou alto e amargamente. Os companheiros revelaram então a troça e o homem sentiu vergonha de sua reação emocionada.

Quando chegaram a Ch'u, o homem viu sua casa ancestral e as lápides da família. Dessa vez não se sentiu tão mal. Estava ele realmente triste quando fôra enganado pelos companheiros de viagem? As sua emoções foram resultado de sua crença de que estava realmente em sua terra natal. Não foi a realidade que o fez chorar, mas as suas crenças. A sua mente já estava mais desapegada quando chegou a Ch'u, por isso não sofreu tanto quando realmente estava diante de sua casa ancestral e das lápides de seus pais.

Novamente, o que é a realidade? A avaliação e os juízos acerca da realidade determinam as emoções, diz Lieh-Tzu. O homem de Ch'u não foi insincero em sua tristeza quando foi enganado pelos amigos. Seu juízo estava errado e determinou a sua reação a uma irrealidade. Do mesmo modo, a família de Hua-Tzu pensava que ele estava doente por sua falta de memória. Na verdade, ele estava plenamente feliz. 

Há um jogo de perspectivas nessas histórias que tem como objetivo último desfazer os juízos dogmáticos acerca da realidade e, cremos, abrir espaço para a aceitação da incompreensibilidade radical do Tao. Não se trata de mero relativismo, mas sim de um método espiritual.  

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Leia também: Νεκρομαντεῖον: taoísmo (oleniski.blogspot.com)

Um comentário:

Anônimo disse...

A muito tempo um texto não espantava tanto. Foi uma grande pérola (para mim) ler estes parágrafos