"A sabedoria é considerada em toda a Antiguidade como um modo de ser, como um estado no qual o homem é de maneira radicalmente diferente dos outros homens, no qual ele e uma espécie de sobre-humano."
PIERRE HADOT, Quest-ce que la Philosophie Antique?, p. 334 (tradução minha)
PIERRE HADOT, Quest-ce que la Philosophie Antique?, p. 334 (tradução minha)
Hui Tzu perguntou a Chuang Tzu se alguém pode realmente não possuir natureza. O mestre respondeu afirmativamente. Hui Tzu redarguiu perguntando se alguém assim sem natureza pode ser considerado humano. Chuang Tzu respondeu que o Tao (道) concedeu uma face e o Céu (天) concedeu uma forma, então, por qual razão não poderia ser considerado um homem?
Hui Tzu não fica satisfeito e retruca dizendo que se Chuang Tzu o considera humano, como pode não possuir natureza? O mestre responde que o que ele quer dizer com não possuir natureza é não permitir que preferências e aversões o perturbem, é aceitar as coisas como elas são e não tentar melhorar a vida. Exasperado, Hui Tzu pergunta como alguém assim vai permanecer vivo se não tenta melhorar a vida?
Chuang Tzu responde que o Tao concedeu uma face e o Céu, uma forma. Ele não permite que preferências e aversões o perturbem. Mas Hui Tzu trata seu próprio espírito como um estrangeiro e exaure a sua energia. Encostado em uma árvore e lamentando, cochilando afundado sobre sua mesa. O Céu concedeu a Hui Tzu a sua forma, e ele a desperdiça tagarelando sobre distinções e sutilezas.
O relato do mestre taoísta Chuang Tzu trata aqui da diferença entre o homem comum e o sábio. Hui Tzu quer saber como alguém pode não possuir uma natureza humana e ainda ser humano. A questão colocada por Hui Tzu liga-se ao relato imediatamente anterior no qual é afirmado que o sábio provou o alimento do Céu e que, por isso, "ele tem a forma humana, mas não possui a natureza humana. Tendo a forma humana, convive com os homens. Como não possui a natureza humana, não é tocado por preferências e aversões."
O sábio é exteriormente como qualquer homem, embora já não seja igual aos homens. Lieh Tzu, outro dos três sábios do Taoísmo, era conhecido por ser "incomumente comum". O que distingue o sábio dos outros homens é o fato de que ultrapassou as distinções e polaridades, vivendo em harmonia com o Tao. Preferências e aversões são características do homem, e o sábio não se deixa abalar por essas distinções.
O Tao e o Céu o fizeram humano, então ele permanece humano. Todavia, ao mesmo tempo, o sábio não é mais humano, pois ultrapassou o horizonte dual que caracteriza os homens. Ele provou o alimento do Céu, está desperto, iluminado. É por essa razão que o sábio deixa tudo exatamente como está, sem impor qualquer tipo de juízo. Considerando todas as coisas a partir da equanimidade absoluta, o sábio retorna ao Princípio original sem deixar de ser homem e sem ser mais como os outros homens.
Hui Tzu não compreende como o sábio pode viver dessa forma, desatento às necessidades da vida. Chuang Tzu repete a afirmação da forma humana do sábio e de sua realidade interior livre das oposições. E repreende Hui Tzu por viver afastado de seu espírito, sem considerar o privilégio de haver nascido homem e dedicando-se a debates sobre distinções sutis. Note-se que a própria pergunta de Hui Tzu sobre como alguém pode ser homem e não possuir a natureza humana é, ela mesma, uma questão acerca de distinções.
O sábio é também figura central na filosofia greco-romana antiga, como o filósofo francês Pierre Hadot sublinha em seu clássico Quest-ce que la Philosophie Antique?. Segundo Hadot, a filosofia na Antiguidade era encarada precipuamente como um modo de vida, uma opção existencial que se manifestava em discursos teóricos e em exercícios espirituais. Ocorre que seu motor primeiro era o desejo de encontrar a sabedoria. Por essa razão, a figura do sábio tomava a forma de uma norma transcendente que determina o modo de vida filosófico.
Isso não significa que o próprio filósofo se considerava um sábio, mas que a filosofia era um modo de vida conducente à sabedoria, ao menos como aspiração. A despeito das diferenças entre as diversas escolas filosóficas (platônicos, aristotélicos, cínicos, estóicos, epicuristas, céticos), alguns traços comuns seriam identificáveis. O sábio seria dotado de saber perfeito, obviamente, mas isso não corresponderia a um simples acúmulo de conhecimentos e sim a um modo de vida que realiza aquilo que de mais alto há no homem.
O sábio é sempre idêntico a si mesmo, isto é, permanece o mesmo a despeito das circunstâncias. Ele encontra em si mesmo a sua felicidade e, por isso, é autárquico, independente. Sabe que são os juízos sobre a realidade que conduzem os homens ao sofrimento e que, controlando esses juízos, ele assegura sua perfeita liberdade interior, baseada na identificação com uma instância transcendente e supra-individual (Natureza, Razão ou Deus). Surge nesse ponto uma questão que é semelhante à indagação posta por Hui Tzu a Chuang Tzu: "na realidade, o sábio não se confunde com o divino?".
Indubitavelmente, o divino (deuses e/ou Deus) é o modelo da sabedoria para os filósofos antigos, afirma Hadot. Aproximar-se da serenidade, da imperturbabilidade e da felicidade do divino é tornar-se sábio. Mas, ao mesmo tempo, é tornar-se mais humano, verdadeiramente humano. A vida do espírito é uma identificação do homem com aquilo que é mais divino nele mesmo. O ponto central das éticas antigas e tradicionais é que o homem é mais homem quanto mais ele imita o divino, ou seja, quanto mais unifica suas ações segundo a natureza imóvel do divino e não segundo a variabilidade das preferências humanas.
Entretanto, Hadot ressalta, o sábio é considerado pela filosofia antiga como algo raro ou inexistente. O único consenso entre as diversas escolas filosóficas parece ser a figura de Sócrates. Cada escola reconhecia outros sábios, notadamente seus fundadores ou figuras proeminentes como Cato, o jovem, entre alguns estóicos, ou Plotino, entre seus discípulos. Para os filósofos gregos e romanos, o sábio é menos uma pessoa concreta e mais um modelo que define os traços de um comportamento ideal a ser imitado como um modo de vida.
O Tao é incondicionado, equânime e autárquico. O sábio descrito por Chuang Tzu possui as mesmas características, ainda que permanecendo um homem como todos os outros homens. Possui tudo, pois vive a partir do Princípio último das dez mil coisas. Não necessita de nada e nem teme perder nada.
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Leia também:
Chuang Tzu, Confúcio e a retidão do Tao:
Chuang Tzu e a inutilidade do sábio:
http://oleniski.blogspot.com/2020/05/chuang-tzu-e-inutilidade-do-sabio.html
Chuang Tzu, Confúcio e a equanimidade absoluta do sábio:
http://oleniski.blogspot.com/2020/06/chuang-tzu-confucio-e-equanimidade.html
O sábio é exteriormente como qualquer homem, embora já não seja igual aos homens. Lieh Tzu, outro dos três sábios do Taoísmo, era conhecido por ser "incomumente comum". O que distingue o sábio dos outros homens é o fato de que ultrapassou as distinções e polaridades, vivendo em harmonia com o Tao. Preferências e aversões são características do homem, e o sábio não se deixa abalar por essas distinções.
O Tao e o Céu o fizeram humano, então ele permanece humano. Todavia, ao mesmo tempo, o sábio não é mais humano, pois ultrapassou o horizonte dual que caracteriza os homens. Ele provou o alimento do Céu, está desperto, iluminado. É por essa razão que o sábio deixa tudo exatamente como está, sem impor qualquer tipo de juízo. Considerando todas as coisas a partir da equanimidade absoluta, o sábio retorna ao Princípio original sem deixar de ser homem e sem ser mais como os outros homens.
Hui Tzu não compreende como o sábio pode viver dessa forma, desatento às necessidades da vida. Chuang Tzu repete a afirmação da forma humana do sábio e de sua realidade interior livre das oposições. E repreende Hui Tzu por viver afastado de seu espírito, sem considerar o privilégio de haver nascido homem e dedicando-se a debates sobre distinções sutis. Note-se que a própria pergunta de Hui Tzu sobre como alguém pode ser homem e não possuir a natureza humana é, ela mesma, uma questão acerca de distinções.
O sábio é também figura central na filosofia greco-romana antiga, como o filósofo francês Pierre Hadot sublinha em seu clássico Quest-ce que la Philosophie Antique?. Segundo Hadot, a filosofia na Antiguidade era encarada precipuamente como um modo de vida, uma opção existencial que se manifestava em discursos teóricos e em exercícios espirituais. Ocorre que seu motor primeiro era o desejo de encontrar a sabedoria. Por essa razão, a figura do sábio tomava a forma de uma norma transcendente que determina o modo de vida filosófico.
Isso não significa que o próprio filósofo se considerava um sábio, mas que a filosofia era um modo de vida conducente à sabedoria, ao menos como aspiração. A despeito das diferenças entre as diversas escolas filosóficas (platônicos, aristotélicos, cínicos, estóicos, epicuristas, céticos), alguns traços comuns seriam identificáveis. O sábio seria dotado de saber perfeito, obviamente, mas isso não corresponderia a um simples acúmulo de conhecimentos e sim a um modo de vida que realiza aquilo que de mais alto há no homem.
O sábio é sempre idêntico a si mesmo, isto é, permanece o mesmo a despeito das circunstâncias. Ele encontra em si mesmo a sua felicidade e, por isso, é autárquico, independente. Sabe que são os juízos sobre a realidade que conduzem os homens ao sofrimento e que, controlando esses juízos, ele assegura sua perfeita liberdade interior, baseada na identificação com uma instância transcendente e supra-individual (Natureza, Razão ou Deus). Surge nesse ponto uma questão que é semelhante à indagação posta por Hui Tzu a Chuang Tzu: "na realidade, o sábio não se confunde com o divino?".
Indubitavelmente, o divino (deuses e/ou Deus) é o modelo da sabedoria para os filósofos antigos, afirma Hadot. Aproximar-se da serenidade, da imperturbabilidade e da felicidade do divino é tornar-se sábio. Mas, ao mesmo tempo, é tornar-se mais humano, verdadeiramente humano. A vida do espírito é uma identificação do homem com aquilo que é mais divino nele mesmo. O ponto central das éticas antigas e tradicionais é que o homem é mais homem quanto mais ele imita o divino, ou seja, quanto mais unifica suas ações segundo a natureza imóvel do divino e não segundo a variabilidade das preferências humanas.
Entretanto, Hadot ressalta, o sábio é considerado pela filosofia antiga como algo raro ou inexistente. O único consenso entre as diversas escolas filosóficas parece ser a figura de Sócrates. Cada escola reconhecia outros sábios, notadamente seus fundadores ou figuras proeminentes como Cato, o jovem, entre alguns estóicos, ou Plotino, entre seus discípulos. Para os filósofos gregos e romanos, o sábio é menos uma pessoa concreta e mais um modelo que define os traços de um comportamento ideal a ser imitado como um modo de vida.
O Tao é incondicionado, equânime e autárquico. O sábio descrito por Chuang Tzu possui as mesmas características, ainda que permanecendo um homem como todos os outros homens. Possui tudo, pois vive a partir do Princípio último das dez mil coisas. Não necessita de nada e nem teme perder nada.
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