quinta-feira, 12 de março de 2015

Boécio, felicidade e a consolação da Filosofia



"Enquanto eu estava silenciosamente pensando tais pensamentos comigo mesmo e dando vazão ao meu pesar coma ajuda de minha pena, eu me dei conta de uma mulher de pé diante de mim. Ela era de uma aparência que inspirava veneração, seus olhos ardentes e cortantes para além do que são capazes os olhos dos homens. Ela era tão repleta de anos que dificilmente poderia imaginá-la como pertencente à minha geração, não obstante sua cor vívida e seu intacto vigor. Era difícil estar certo acerca de sua altura, pois algumas vezes parecia ser do tamanho médio de um homem, enquanto outras vezes parecia tocar o céu com o topo de sua cabeça. E quando elevava-se ainda mais, ultrapassava o céu e perdia-se da vista humana. Suas roupas eram feitas de material imperecível, com os fios tecidos com a mais delicada habilidade (disse-me depois que ela mesma os trançou). Sua cor, porém, era obscurecida por um tipo de película como a de longa negligência,tal qual as estátuas cobertas de poeira. Na bainha de baixo podia ser lida bordada a letra grega Pi (Π) e na extremidade oposta, a letra grega Theta (Θ). Entre as duas uma escada de degraus erguia-se da letra inferior até à superior. Seu vestido foi rasgado pelas mãos de saqueadores que tomaram tantas partes quanto puderam agarrar. Havia alguns livros em sua mão direita e um cetro na esquerda."

BOÉCIO, Consolações da Filosofia, livro I, 1


Anicius Manlius Severinus Boetius (480-524 D.C.) descendia de uma família romana aristocrática e ascendeu ao cargo de cônsul em 510 e conselheiro do ostrogodo Teodorico, o grande, que então reinava em Roma após sua vitória sobre Odoacro.

Talento precoce para as sutilezas da filosofia, Boécio pretendia traduzir do grego ao latim todas as obras de Platão e Aristóteles e, por meio de comentários, demonstrar a concordância dos dois grandes mestres em pontos capitais de suas respectivas filosofias. Na época, após a queda do Império Romano do Ocidente, o conhecimento do idioma grego era cada vez mais raro e não havia grande interesse de traduzir os filósofos clássicos helênicos para o latim, o que aumenta em muito a importância cultural da iniciativa de Boécio.

Os deveres burocráticos e políticos assumidos por Boécio e depois seu aprisionamento e fim trágico não permitiram que realizasse seu intento. Não obstante, conseguiu terminar as traduções do Isagoge de Porfírio e dos tratados de lógica de Aristóteles, nomeadamente Da Interpretação, Tópicos, Analíticos Primeiros e Segundos e Elencos Sofísticos. Serão basicamente as suas traduções e comentários que preservarão no Ocidente o conhecimento - ainda que incompleto - de Aristóteles.

O "último dos romanos e o primeiro dos escolásticos", como ficou conhecido, escreveu também tratados sobre música, aritmética, geometria, teologia e possivelmente astronomia e mecânica. É sua a designação quadrivium para as quatro ciências demonstrativas - astronomia, música, geometria e aritmética - incluídas nas chamadas sete artes liberais. 

Segundo o próprio Boécio, sua entrada no serviço público foi ditada por seu desejo de realizar aquilo que Platão ensinara acerca do dever cívico do filósofo de governar ou, pelo menos, como no caso de Boécio, influenciar positivamente o governante. Previsivelmente, sua honestidade e sua retidão angariaram-lhe inimizades e ele se viu envolvido em uma intriga palaciana.

Teodorico reinava em Roma, mas reconhecia como legítima a autoridade do imperador bizantino. Boécio, era sabido, inclinava-se simpaticamente ao governante do Império Romano do Oriente e, por essa razão, seus inimigos forjaram cartas comprometedoras que punham Boécio sob uma luz desfavorável diante de Teodorico. O filósofo é aprisionado em Pavia, torturado e, condenado, é espancado até a morte em 524.

Em Pavia, durante o período de seu emprisionamento, Boécio escreve sua obra seminal, a belíssima De Consolatione Philosophiae. Basicamente um grande diálogo em cinco livros, o texto apresenta como personagem principal o próprio Severino Boécio na prisão de Pavia a refletir sobre seu destino desventurado. O interlocutor não é outro filósofo ou algum homem qualquer, mas uma mulher diferente de todas as outras mulheres: a própria Filosofia que vem consolá-lo de suas tristezas.

Para tanto, a Filosofia pretende fazer Boécio compreender sua situação real por meio de discursos, cantos, poesias e, principalmente, como na tradição dos diálogos platônicos, perguntas. Ao invés de Sócrates e algum interlocutor, como nos clássicos diálogos de Platão, Boécio introduz a si mesmo como o interlocutor da própria Filosofia encarnada.

Depois de expulsar as musas da Poesia, a Filosofia anuncia que seu método de cura será aplicar remédios de força gradualmente maior à medida do avanço da discussão. Boécio conta as desventuras que se seguiram à sua elevação aos altos cargos do governo e se lamenta pela perda de seu posto, de seus bens e de sua liberdade.

Ao final do livro I, Boécio afirma saber que o mundo é ordenado e não um conjunto desordenado e caótico de coisas, que a origem última do mundo é Deus e  que o homem é um animal racional. Nada disso o consola, entretanto. A Filosofia diz que esse é seu problema. Seu estado emocional o fez esquecer-se das consequências ou do significado filosófico disso que ele diz saber.

No livro II, a Filosofia lhe mostra o caráter volúvel da Fortuna, apresentando a famosa imagem da Rota Fortunae. Não se pode confiar na Fortuna justamente porque ela é imprevisível. Ela eleva um homem ao cume de sua roda hoje e amanhã o faz descer na mesma velocidade com que subiu. Não é sábio, portanto, fiar-se nos bens que ela concede ou desesperar-se nos males que envia, pois ambos passarão cedo ou tarde.




Ademais, que tem o homem de realmente seu? Ele nasce nu e pobre e morrerá nu e pobre, sem bens e sem tesouros. A felicidade não pode ser posta nesses bens transitórios e externos, mas em um bem estável e interior que nenhum revés ou sucesso pode alterar ou tomar.

Os poderes e os cargos não tornam necessariamente o homem bom justamente porque não são necessariamente bons. Homens desprezíveis e baixos já ocuparam e ocuparão tais postos e terão tais poderes. Riquezas não satisfazem a ambição desmedida que escraviza a muitos.

A fama não é nada quando se lembra o quão pequena é a Terra e o quão pequeno é o alcance da fama mesmo no domínio deste mundo. Ser conhecido na posteridade, por maior que seja o tempo, não é nada comparado à eternidade. E morto, devolvido aos rincões do nada, de que adianta a fama? E se imortal, qual a importância da fama terrena?

No livro III trata-se da felicidade e a Filosofia afirma que quaisquer dos bens que o homem busca - suficiência, poder, respeito, honra, glória, prazer -, quando perseguidos individualmente, impedem o alcance dos outros. Como aquele que buscando a riqueza perde a suficiência, já que precisa de seguranças para guardar seus bens ou aquele que ambicionando poder acaba por desdenhar do respeito, da honra ou mesmo do prazer.

O erro está em dividir aquilo que na realidade é uno. A verdadeira felicidade é a fonte de todos esses bens que os homens buscam em separado. E onde está essa fonte? O mundo natural não pode ter tido sua origem em algo imperfeito, mas advém do perfeito e se degenera no imperfeito. Se há então uma felicidade imperfeita, aquela a que os homens geralmente se dedicam, então há uma felicidade perfeita.

Todo homem admite que o conceito de Deus é o de um ser perfeitíssimo. E admite-se igualmente que aquilo que é perfeito é feliz. A fim de que não se caia em um argumento sem fim, no qual cada ente menos imperfeito tem origem em um ente mais perfeito, deve-se concordar que Deus é o ser perfeitíssimo, e, por conseguinte, o sumo bem. E se o que é bom é feliz, o sumo bem é a felicidade perfeita.

A felicidade do homem não é outra coisa que a posse da fonte última de todos aqueles bens que ele busca separadamente. E já que quem possui um bem torna-se bom - como quem possui a justiça torna-se justo -, então quem possui Deus torna-se ele mesmo divino. O homem que participa da suma bondade de Deus torna-se Deus por participação. No fim, ser feliz é ser divino.

Não é nos cargos e dignidades públicas que está a felicidade. Nem tampouco nas riquezas ou nos prazeres passageiros. A fonte da felicidade se encontra naquele que está absolutamente livre das variações caprichosas da Fortuna e que é Ele mesmo a fonte eterna e estável de qualquer bem limitado e passageiro.

O homem só se torna perfeito e feliz na medida em que se diviniza pela participação na suprema felicidade de Deus.