domingo, 28 de dezembro de 2014

Nicolau de Cusa, a natureza do infinito e a douta ignorância



"Nas coisas que admitem excedente e excedido não pode dar-se em ato um progresso até o infinito, pois de outro modo o Máximo seria da mesma natureza que as coisas finitas. É, portanto, necessário que o Máximo em ato seja o princípio e o fim de todas as coisas finitas. (...) Tudo o que não é o Máximo é finito, (tudo isso) tem também um princípio. Mas sendo necessário que derive de outro. Doutro modo, se derivasse de si, seria quando não era.  Não é possível também proceder, nos princípios e nas causas, até o infinito.  Existirá, pois, o Máximo simples, sem o qual nada pode ser. (...) Ao Ser Máximo nada se opõe, nem o ser, nem o não-ser e nem o ser mínimo."

NICOLAU DE CUSA, De Docta Ignorantia, cap.VI

Clássico da filosofia renascentista, o De Docta Ignorantia parte de um arcabouço de inspirações claramente neoplatônicas, pitagóricas e herméticas. Dionísio Areopagita, Pitágoras, Plotino e Hermes Trismegisto são unidos no primeiro tratado que versa sobre o Máximo Absoluto, ou Possibilidade Infinita, ou ainda, o Uno. Este está, por tratar-se do ilimitado e do infinito, para além de todo conceito ou palavra e sobre Ele só se pode ser douto na ignorância. 

A verdade, por ser absoluta, não admite gradações, concorda perfeitamente consigo mesma e, por isso, todo entendimento humano, que sempre está sujeito ao mais e ao menos, jamais pode alcançá-la perfeitamente. Assim sendo, o intelecto que possui conhecimento perfeito, cuja semelhança ao conhecido está para além da possibilidade do maior ou do menor, só pode ser ele mesmo o intelecto perfeito. A perfeita coincidência é a perfeita identidade, daí que nenhum intelecto finito pode jamais alcançar tal grau de inteligência.

Por essa razão, somos todos ignorantes os seres finitos. O único cujo conhecimento é perfeito é o Máximo Absoluto que não comporta em si nem o mais e nem o menos, mas é o máximo de atualização de toda perfeição. Sendo assim, nele estão todas as coisas na qualidade de princípio máximo de tudo e tudo o que pode ser está nele como a fonte simplicíssima na qual tudo está complicado, imerso antes de sua manifestação. 

Nele há a coincidentia oppositorum, isto é, os contrários coincidem nele porque justamente ainda não são contrários. E para falar dessa coincidência, Nicolau de Cusa utiliza-se de imagens matemáticas que só servem a seu propósito justamente porque são levadas ao infinito e, assim, transformadas em algo que elas por si mesmas não poderiam ser. 

O caminho místico-intelectualista de Nicolau de Cusa é calcado na extrapolação do quantitativo até o infinito em ato para que este, por assim dizer, seja conduzido à sua negação e, entrando em colapso, abra as portas para o infinito qualitativo em ato, o Máximo Absoluto, Deus.

Segundo Nicolau de Cusa, só é possível falar das coisas divinas por imagens e símbolos. Como as coisas sensíveis são instáveis por causa da matéria, elas não aparecem como as imagens mais adequadas das realidades divinas. A escolha recai então sobre os signos matemáticos por causa de sua certeza incorruptível.

O método seria então considerar as figuras matemáticas finitas em suas razões próprias e transferí-las para figuras infinitas em ato e, desse modo, transpor tais razões para o infinito simples. Se tomamos um triângulo e o aumentamos até o infinito em ato, ele deixará de ser um triângulo, uma vez que seus limites foram obliterados. Mas nesse momento, abre-se à inteligência o conceito mesmo do infinito ou, na linguagem cusana, o Máximo. 

Um triângulo infinito em ato não é mais um triângulo, assim como um quadrado infinito não é mais um quadrado e assim por diante. Qualquer figura quantitativa conduzida ao infinito em ato deixa de ser o que é e, como que desfazendo-se, torna-se o infinito. Se isso é assim, o Máximo é todas as figuras geométricas enquanto seu princípio infinito e ilimitado.

Tomando como exemplo uma linha finita, nela reside em potência todo um conjunto de figuras geométricas determinadas. Com linhas finitas posso construir um triângulo ou um quadrado, por exemplo. Analogamente, na linha infinita está em potência a linha finita assim como estava nesta em potência figuras geométricas determinadas.

Dito de outro modo, toda determinação tem origem no que é menos determinado e, por fim, no completamente indeterminado. O infinito em ato é, par excellence, o indeterminado, pois carece de todo e qualquer limite em qualquer sentido que se queira. Nele, na qualidade de princípio, estão concentradas  todas as coisas que ainda não se determinaram.

Como tudo o que é limitado pode ser sempre aumentado ou diminuído continuamente, por adição e subtração de partes, nenhum ente limitado - incluindo as figuras geométricas - pode ser de fato infinito,  uma vez que a infinitude simples não admite partes de qualquer tipo. A unidade máxima, Deus, é a única unidade verdadeiramente infinita.

O segundo tratado do De Docta Ignorantia versa sobre o universo e sua relação com o Máximo Absoluto. O universo não é mais do que o Máximo Contraído, a unidade que subjaz à pluralidade de todas as coisas e que só é existente em ato como isto e aquilo determinado.

Deus sendo o único legitimamente infinito, o universo não poderá ser ele também infinito. Contudo, ele não é tampouco finito. Só Deus pode ser infinito negativamente, isto é, infinito por não comportar nenhum gênero de limite. Dito do outro modo, todo e qualquer limite deve ser negado em Deus. 

O universo, por outro lado, não é infinito a não ser privativamente, ou seja, ele é privado de um termo ou um término definido. Deus é infinito em ato, pura e simplesmente sem nenhuma parte ou limite de qualquer tipo. O universo é finito por ter partes e limites, mas de certa forma é infinito porque seus limites não são um termo definitivo para além do qual não haja nada.

O terceiro tratado é aquele que versa sobre o Máximo Absoluto unido hipostaticamente ao universo contraído no homem como microcosmo e resumo de tudo o que há. É o discurso sobre a Encarnação e a união das naturezas divina e humana em Cristo.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Cristãos, islâmicos e a herança do saber clássico



"(...) os eruditos cristãos e muçulmanos não tinham a mesma atitude com respeito ao saber grego. De um lado, o cristianismo havia recuperado a cultura antiga, selecionando os empréstimos o epicurismo foi rechaçado -, mas integrando seu espírito. Embora sem um conhecimento profundo do saber grego, as tradições jurídicas e políticas do mundo romano exerceram certa influência sobre o direito medieval, as práticas políticas das comunas italianas ou a idéia de império. Por outro lado, o Islã adotou dos gregos o que considerou útil e abandonou seu espírito. Nem a literatura, nem a tragédia ou a filosofia gregas impregnaram em absoluto a cultura muçulmana. Unicamente a lógica encontrou seu lugar nela, em contornos muito variados e com algumas restrições."

SYLVAIN GOUGUENHEIM, Aristote au Mont-Saint-Michel


A recepção do saber grego no Islã medieval foi acolhimento, rechaço ou simples indiferença? Em geral, segundo Sylvain Gouguenheim, o tom foi de indiferença e de rechaço. Os que acolheram tais saberes foram uma "ultra-minoria". E, ainda assim, o filtro corânico foi determinante nessa aceitação.

Gouguenheim pretende desfazer os erros na interpretação da entrada do saber grego no mundo islâmico medieval. Para isso, ele ataca diversos exemplos geralmente aceitos como evidência de um "iluminismo muçulmano" naquele período, o qual supostamente teria lançado as bases da civilização moderna européia. 

O Kalam, por exemplo, frequentemente descrito em termos de uma teologia natural racionalista por alguns historiadores, era na realidade um movimento ortodoxo cujo uso da lógica grega se limitava a organizar o pensamento a fim de refutar as heresias e defender a fé islâmica.

O Bayt Al Hickmah ("Casa do Saber"), visto usualmente como uma casa de sábios de diversas origens e religiões trabalhando juntos em traduções e pesquisas filosofico-científicas, era uma biblioteca privada do califa Harun Al-Rashid e se tornou aberta aos sábios somente no governo de Al Mamun e jamais recebeu judeus ou cristãos em seu interior. Para Gouguenheim, a fama do Bayt Al-Hickmah não passa de uma lenda.

As tão afamadas traduções de Aristóteles e de diversos outros autores gregos eram realizadas fora do Bayt, por iniciativa privada de sábios e eruditos, mormente cristãos e sabeus. Estes, inclusive, não estavam associados à Casa e não há evidências de que a sua direção esteve sob responsabilidade de Hunayn Ibn Ishaq, o tradutor e filósofo cristão siríaco, como usualmente se afirma.

E quem são os sábios dos quais o califa abássida Al Mamun cerca-se na Casa do Saber?  Segundo Gouguenheim, não são os falasifa, os filósofos, mas sim os ulama, os sábios e doutores nas ciências corânicas. O conceito de "sábio" jamais foi o de um pensador de estilo grego e sim o de um âlim, um conhecedor da Al'Ilm (A Ciência), o conhecimento do fiqh, o direito muçulmano. E como lei e religião formam um só todo no islamismo, tudo retorna à Shariah, a lei geral de todo fiel muçulmano.

E quanto aos celebrados falasifa? Gouguenheim afirma que estes absorveram da cultura grega só e tão somente o que não contradizia o texto corânico e que mesmo Ibn Rushid, considerado por muitos um racionalista, realizou sua obra primordialmente como jurista islâmico. A defensa da filosofia contida no famoso Discurso Decisivo não seria mais do que uma sentença jurídica que submetia e julgava a filosofia de acordo com a lei islâmica. 

Desse modo, a noção de um "Islã das Luzes" - que teria fecundado com sua cultura e amor ao conhecimento uma Europa então mergulhada na escuridão da ignorância e que teria assim criado as condições para o imenso progresso científico e técnico do mundo moderno - seria não mais do que uma lenda ditada, entre outras coisas, por uma tentativa de alçar o Islã ao status de raiz da civilização européia.

Para Gouguenheim, todo o avanço cultural europeu nasceu de suas próprias raízes gregas que nunca foram completamente esquecidas e nem obliteradas. Foram os próprios europeus que buscaram, desde o início do cristianismo, passando pelos esforços carolíngios e pelas traduções dos monges de Mont-Saint-Michel, preservar ou recuperar o tesouro filosófico-científico dos antigos.

Mesmo os avanços tecnológicos e de medicina criados por sábios islâmicos restaram desconhecidos no mundo latino de modo que nenhuma influência tiveram na sua vida cultural. E mais, eles foram rapidamente superados pelos feitos da ciência européia posterior.

A julgar pelo interesse e volume das traduções realizadas em Mont-Saint-Michel e pela dedicação dos europeus de recuperar e de aprender o saber antigo, seria plausível afirmar, Gouguenheim assevera, que a história de progresso cultural e científico do mundo europeu seria a mesma se não houvesse o contato com o mundo islâmico. A influência real foi muito menor do que usualmente se afirma devido a uma avaliação equivocada do alcance da helenização no Islã.

As diferenças no tratamento desse saber grego devem ser buscadas na própria estrutura das religiões que se confrontaram na Idade Média. No Cristianismo o saber grego estava unido desde o início à religião, pois ele nasce no mundo greco-romano, parte considerável de seus textos sagrados foram escritos em grego e os dogmas foram definidos com ajuda de termos filosóficos helenos.

E mais importante, a fé cristã centra-se em uma pessoa, Cristo, e este prega claramente um entendimento não legalista das prescrições sagradas. Há a necessidade de não somente obedecer a leis, mas compreender o sentido da mensagem contida nos textos sagrados, e isso consistiria uma "estrutura intelectual própria à fé cristã".

O Islã seria muito menos permeável à influência do mundo grego por diversos motivos. O Islã nasceu em um mundo muito diferente e afastado do mundo grego e se constitui precipuamente como uma ortopraxis, isto é, como um modo correto de portar-se no mundo. O centro de sua prática de piedade é a obediência à Shariah, a Lei comum. Não havendo diferenças entre o religioso, o social e o jurídico, a estrutura do Islã é mais compacta e mais - para usar uma expressão de Gouguenheim - "centrípeta".

O Cristianismo e o Islã seriam monoteísmos tão diferentes entre si que não poderiam apresentar o mesmo grau de helenização ou de abertura a influências externas. Por essa razão, para Sylvain Gouguenheim, as raízes da civilização européia moderna encontram-se firmemente fincadas no solo fértil da conjunção entre Grécia, Roma e Cristianismo. O Logos propiciaria um caminho mais auspicioso para o saber clássico do que as suras eternas do Qu'ran.

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sábado, 22 de novembro de 2014

Islâmicos, cristãos e as traduções medievais de Aristóteles



"A magnífica abadia de de Mont-Saint-Michel é conhecida por haver sido um centro de saber entre os séculos X e XIII. Sua oficina de cópia, o scriptorium, cujo tamanho pode hoje ser avaliado, produziu centenas de manuscritos, grande parte dos quais se ocupava da cultura literária e científica da Antiguidade. E foi em seu interior, ou nos seus arredores, onde na primeira metade do século XII traduziram-se as obras de Aristóteles diretamente do grego ao latim graças ao esforço de diversos homens, desgraçadamente quase todos anônimos. Estes tradutores foram, várias décadas antes que seus colegas ligados a Toledo, os pioneiros da difusão da filosofia aristotélica na Europa. Outro elemento importante: não limitaram-se somente traduzir, mas foram também artífices dos primeiros comentários da obra obra do Estagirita."

SYLVAIN GOUGUENHEIM, Aristote au Mont-Saint-Michel


O livro do historiador e medievalista francês Sylvain Gouguenheim, Aristote au Mont-Saint-Michel, publicado em 2008, criou acalorada polêmica na academia por suas teses centrais que negavam o protagonismo muçulmano na difusão da cultura grega na Idade Média e a importância das traduções árabes de Aristóteles no desenvolvimento filosófico-científico da Europa ocidental naquele período.

Gouguenheim afirma em sua obra que, a bem da verdade, nunca houve um completo desaparecimento da cultura greco-romana no ocidente latino, que os europeus mantiveram consciência de sua origens na Antiguidade e que buscaram avidamente - sempre que as condições materiais permitiam - recuperar essa cultura através de manuscritos originais ou de traduções das grandes obras do passado clássico.

O desastre da queda do Império Romano do Ocidente não cortou definitivamente as cadeias que ligavam os medievos aos seus antepassados e em muitas regiões alguma herança permaneceu viva. O autor identifica a sobrevivência de parte dessa cultura greco-romana no início da Idade Média em lugares como a Sicília, Salerno, Ravena e Roma.

Ademais, a cultura helênica clássica jamais morreu em Bizâncio - o Império Romano do Oriente -, o que representou para os ocidentais uma contínua oportunidade de recuperação de manuscritos e obras gregas. Ainda de acordo com Gouguenheim, houve inclusive um período de grande estudo de Aristóteles em Bizâncio entre os séculos IX e XII empreendido por intelectuais de escol como João Filoponus, Miguel Psellos, Fócio (Patriarca de Constantinopla), Miguel de Éfeso e Ana Comena.

O Ocidente não privou-se de  iniciativas próprias de resgate da herança grega. O "renascimento carolíngio" - obra de Pepino, o breve, e de Carlos Magno - teve como centro a tentativa de emular nas artes e nas letras a cultura cristã clássica embebida do mundo grego da Antiguidade. Tal empreendimento mereceu o título de "humanismo carolíngio".

Em torno do ano 1000 acontece uma redescoberta da dialética e da lógica aristotélicas que irá influenciar grandemente a cultura teológica do século seguinte, marcado pelo rigor lógico no tratamento das questões teológicas como testemunhado pelas obras de Pedro Abelardo e Anselmo de Cantuária.

Não obstante, é no século XII que acontece o renascimento mais radical da cultura grega no Ocidente impulsionado pela avalanche de traduções que tornaram acessíveis a obra completa de Aristóteles e todo um vasto conjunto de textos clássicos em matemática, medicina, astronomia e outros campos do conhecimento. E é no que tange aos acontecimentos desse período que Gouguenheim vai discordar mais contundentemente de seus colegas medievalistas.

Até o século XII as obras de Aristóteles traduzidas para o latim limitavam-se a alguns tratados do Órganon como, por exemplo, o Categorias e o Primeiros Analíticos. Todo o resto da produção filosófico-científica aristotélica permanecia desconhecida no ocidente. A tese mais aceita para a transmissão da obra aristotélica ao Ocidente é aquela segundo a qual tais obras chegaram aos latinos via Espanha ocupada pelos muçulmanos graças a um esforço de tradução das mesmas do árabe para o latim no século XII.

Gouguenheim ataca essa versão dos acontecimentos e afirma que, na verdade, por mais importantes que fossem essas traduções árabes, elas foram obra não de muçulmanos, mas de cristãos orientais e que as traduções feitas para o latim a partir do árabe foram precedidas em algumas décadas por traduções feitas diretamente do grego por monges cristãos ocidentais.

Hunayn Ibn Ishaq, Ishaq Ibn Hunayn, Teodoro Abu Qurra e Yuhanna Ibn Masawayh, entre outros, foram tradutores cristãos siríacos - e também médicos, teólogos e filósofos - que desde o século IV traduziram importantes obras da filosofia e da ciência gregas para o siríaco (língua próxima do aramaico e falada no norte da Arábia, sul da Turquia, Jordânia, Síria, Irã e Iraque) e que depois, a partir do século VII, traduziram-nas para o árabe, criando assim todo o vocabulário científico-filosófico que os falasifa islâmicos utilizaram a partir dos séculos X e XI.

Nas palavras de Gouguenheim:


"Durante mais de três séculos, entre o VII e o X, portanto, a 'ciência árabe-muçulmana' do Dar al-Islam foi em realidade uma ciência grega, por seu conteúdo e sua inspiração, e siríaca - e depois árabe - por sua língua. A conclusão é clara: o Oriente muçulmano deve-se praticamente todo ao Oriente cristão."


Sylvain Gouguenheim afirma - e essa é uma de suas teses centrais de seu livro Aristote au Mont-Saint-Michel - que as traduções das obras aristotélicas a partir do árabe realizadas em Toledo no século XII foram precedidas em algumas décadas por traduções feitas diretamente do grego por monges da abadia francesa de Mont-Saint-Michel, entre eles o misterioso Tiago de Veneza, "o grego".

Segundo dados cronológicos, Tiago teria iniciado as suas traduções de Aristóteles em torno do ano 1127 e continuado seu trabalho até sua morte, entre 1145 e 1150. Gerardo de Cremona, em Toledo, iniciou suas traduções de Aristóteles depois de 1165. Ou seja, Tiago começara seu trabalho cerca de quarenta anos antes de seus colegas de Toledo.

A figura de Tiago de Veneza, cognominado "o grego", é misteriosa e pouco se sabe sobre ele para além de sua estadia no mosteiro de Mont-Saint-Michel, onde realizou suas traduções. Suspeita-se que tenha estudado em Constantinopla, como indicaria sua alcunha e seu estilo manifestamente helenizante na tradução. É certo, contudo, que verteu as obras do Estagirita diretamente do grego ao latim, ao contrário dos tradutores do grego que o faziam do árabe.

Embora não fosse o único monge a traduzir obras clássicas diretamente do grego, é evidente que Tiago de Veneza é o principal personagem dessa fascinante empresa intelectual seja pelo volume de obras vertidas ao latim, seja pela extensão do impacto das mesmas na cultura européia medieval. Por essa razão, para Sylvain Gouguenheim, o Ocidente latino deve muito mais aos cristãos siríacos e aos monges franceses de Mont-Saint-Michel do que aos muçulmanos a preservação e posterior difusão da cultura filosófico-científica grega.

O livro de Gouguenheim, contudo, não pára nessa afirmação da anterioridade européia das traduções de Aristóteles, mas avança até um questionamento profundo da própria história da recepção do saber grego no mundo islâmico. Para o historiador francês, mesmo o famoso Bayt Al-Hickmah, em muitos de seus aspectos mais celebrados por diversos estudiosos contemporâneos, não passaria no fim de uma lenda.

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quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Robert Charles Zaehner: religião, mística sagrada e mística profana



''Acontece, sem dúvida, que, quando o servo bom e fiel entra na alegria de seu Senhor, ele fica intoxicado com a abundância imensurável da casa Divina. Pois, de uma forma inefável, acontece a ele o mesmo que a um bêbado que esquece de si mesmo e que não é mais ele mesmo. Está totalmente morto para si mesmo e inteiramente perdido em Deus, passou para Ele e se tornou um só espírito com Ele em todos os aspectos, tal como uma pequena gota d'água que é lançada em uma grande quantidade de vinho. (…) Contudo, seu ser permanece, embora em uma forma diferente, em uma glória diferente e em um poder diferente. E tudo isso acontece ao homem através de seu completo abandono de si mesmo. ''

HEINRICH SUSO, Pequeno Livro do Eterno


O Professor Robert Charles Zaehner, orientalista e especialista em Religião Comparada, sucessor de S. Radhakrishnan na cadeira de Ética e Religiões Orientais em Oxford assim define a experiência mística em sua obra seminal Mysticism Sacred and Profane:

''Experiências preternaturais nas quais a percepção sensível e o pensamento discursivo são transcendidos em uma apercepção imediata de uma unidade ou união a qual é apreendida como algo que transcende e está para além da multiplicidade do mundo tal como o conhecemos.''

Segundo o Professor Zaehner, existem três modalidades básicas de experiências místicas:

I - A experência pan-en-hênica, isto é, de que tudo é um;
II - A experiência de isolamento do ''eu'', cujos modelos são o Kaivalya (isolamento) do Samkhya-Yoga e a realização da identidade Brahman-Atman nos Upanisads e no Advaita-Vedanta;
III - O retorno do ''eu'' a Deus, isto é, a imersão em Deus em uma união profunda na qual todo o resto desaparece, restando somente ''a face de Deus''.

Zaehner divide essas três modalidades de experiência mística em duas categorias:

a) Mística Natural: corresponde precipuamente à experiência pan-en-hênica;
b) Mística Religiosa: abriga as experiências de isolamento do ''eu'' e de união/retorno a Deus;

Dentro desta última categoria, é possível ainda dividir as experiências em ''mística monista'' e ''mística teísta''. Tratando da mística natural, Zaehner a define como:

''Experiência da Natureza em todas as coisas ou de todas as coisas sendo uma só. Em todos os casos, a pessoa que tem a experiência parece estar convencida de que o que ela experimenta, longe de ser uma ilusão, é ao contrário algo muito mais real do que aquilo que ela experimenta normalmente por meio de seus cinco sentidos ou o que ela pensa com sua mente finita. Isso significa, em sua mais alta expressão, transcender o tempo e o espaço no qual um modo de ser infinito é realmente experimentado.''


Aparentemente, a experiência mística natural pode acontecer subitamente e sem nenhuma preparação prévia de ordem ascética e independentemente de formação ou afiliação religiosa, de indiferentismo religioso, agnosticismo ou ateísmo. Ela pode dar-se também a partir do uso consciente de mescalina e de outros tipos de drogas alucinógenas, como aliás comprovaram pessoalmente Aldous Huxley, William James e o próprio R. C. Zaehner. Em alguns casos, está associada a quadros clínicos de loucura e de mania e é capaz de conduzir à dissolução da personalidade sadia.

O escritor britânico Aldous Huxley, autor do famoso romance Brave New World e do ensaio The Doors of Perception fez uso de mescalina para, segundo ele, expandir sua percepção da realidade. O resultado foi uma típica experiência de mística natural a qual o autor identificou com as experiências dos místicos hindus, budistas e cristãos.

Tal identificação, para Zaehner, resulta em um desafio para a mística religiosa. Se, de fato, Aldous Huxley alcançou por meio de drogas uma legítima experiência mística como aquelas que as religiões tradicionais exibem, então não seria possível furtar-se à conclusão de que os místicos não passariam ou de desequilibrados ou de drogados. De qualquer modo, a experiência mística, considerada até então como um contato unitivo com o princípio último das coisas, seria somente um estado psíquico peculiar que poderia ser produzido quimicamente.

Contudo, segundo Zaehner, há uma diferença radical entre as experiências místicas religiosas e a experiência de Huxley sob a influência de mescalina. No misticismo estritamente religioso, seja ele hindu, cristão ou islâmico, todo o propósito do exercício é concentrar-se na realidade última até a completa exclusão de tudo mais; e ''tudo mais'' significa o mundo fenomênico ou, como os teístas afirmam, tudo o que não é Deus. 

Isso significa um total e absoluto afastamento da Natureza, um isolamento da alma dentro dela mesma seja para apreender a si própria como ''Deus'' ou para entrar em comunhão com Deus. O estado místico o qual o homem religioso deseja é o reverso da experiência mística natural: é o corte de todos os liames que ligam alguém ao mundo, a fixação em quietude na própria alma imortal e, finalmente, o oferecimento dessa alma a seu Criador. 

Segundo a interpretação de Zaehner, o primeiro estágio é aquele ao qual o monista aspira; o segundo está para além dele e parece ser alcançável somente com a ajuda ativa de Deus, que é percebido como algo diferente da alma imortal. O primeiro tipo pertence à mística de isolamento do ''eu'' e o segundo à mística de união com Deus.

O místico teísta clássico tem como objetivo uma total imersão em Deus. Os seus esforços ascéticos não são jamais suficientes por si mesmos para alcançar tal experiência de união. Em última instância, é sempre Deus que livremente concede Sua graça ao devoto.

Como assevera São Gregório Palamas em suas Tríadas:

''Eis porque todo crente deve separar Deus de todas as Suas criaturas, pois a cessação de toda a atividade intelectual e a união resultante com a luz do alto é uma experiência e um fim deificantes, garantidos somente àqueles que purificaram seus corações e receberam a graça. E o que eu direi dessa união, quando a breve visão é ela mesma manifestada somente aos discípulos escolhidos, apartados pelo êxtase de toda percepção dos sentidos ou do intelecto, admitidos à verdadeira visão porque cessaram de ver e foram dotados com sentidos sobrenaturais por sua submissão ao incognoscível?''


A conclusão de Zaehner no livro é a de que a experiência mística monista - que, segundo ele, caracterizaria o Advaita Vedanta -, aos olhos do teísta, não seria mais do que uma experiência de isolamento, primeiro passo necessário porém não suficiente para uma verdadeira experiência com o princípio último das coisas, Deus. Por outro lado, para o monista advaita, a experiência mística cristã não seria mais do que bhakti, devoção à uma divindade particular cuja natureza está abaixo da experiência da não-dualidade absoluta.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Thomas Kuhn, ciência normal, paradigmas e anomalias



"O que é exato no que concerne à posição de Sir Karl (...) é a idéia da testabilidade em princípio. (...) O que é vago, no entanto, com respeito à minha posição são os critérios reais (se é isto que se requer) que devem ser aplicados quando se decide que determinada incapacidade de resolução de enigmas (puzzles) há de ser ou não atribuída à teoria fundamental, tornando-se assim uma ocasião de grande preocupação. Essa decisão, contudo, é idêntica em espécie à decisão sobre se o resultado de determinado teste falseia ou não determinada teoria, e sobre esse assunto Sir Karl é necessariamente tão vago quanto eu."

THOMAS KUHN, Reflexões sobre meus críticos, In. A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento, p.306, trad. Octavio Mendes Cajado, Ed. Cultrix


No pensamento do filósofo e historiador da ciência americano Thomas Kuhn, “ciência normal“ significa pesquisa firmemente baseada sobre uma ou mais realizações científicas que uma comunidade particular de cientistas reconhece por um tempo fornecer o fundamento para a prática de pesquisa ulterior. Tais realizações são recontadas por manuais que expõem o corpo da teoria aceita, ilustram todas ou a maioria de suas aplicações bem-sucedidas e compara tais aplicações com exemplos de observações e experimentos.

Paradigmas ganham seu status porque são mais bem-sucedidos que as alternativas em resolver determinados problemas que um grupo de cientistas reconhece como importantes. Mas tal sucesso é também uma promessa, pois o problema resolvido indica como problemas reconhecidos como pertencentes a um campo determinado deverão ser resolvidos.

A ciência normal é justamente o processo de tentativa de resolução gradativa desses problemas a partir dos meios sugeridos pelos problemas já resolvidos. Sua função é aplicar diligentemente o paradigma aos casos ainda não explicados. Os problemas sobre os quais a ciência normal se debruça não são necessariamente interessantes em si mesmos, mas são encarados como puzzles que desafiam a engenhosidade do cientista em encontrar formas novas de aplicação do paradigma.

Os puzzles são considerados pela comunidade científica como os únicos problemas científicos reais e toda questão que não possa ser formulada nos parâmetros paradigmáticos é rejeitada. Por outro lado, como o paradigma guia tacitamente a pesquisa, ele não é posto em questão ou submetido a teste e qualquer fracasso na sua aplicação a um puzzle específico é geralmente considerada como uma falha do cientista individual.

A ciência normal é parte essencial de um “paradigma“, ou seja, um conjunto de exemplos aceitos de prática científica real – os quais incluem leis, teorias, aplicações e instrumentações – que fornecem modelos para a prática científica futura. Não há pesquisa científica sem um conjunto implícito de parâmetros partilhado e aceito por toda uma comunidade de cientistas. O paradigma guia a pesquisa e fornece-lhe um sentido.

Por essa razão, a pesquisa anterior ao surgimento de um paradigma é caracterizada por uma atividade sem um conjunto de parâmetros definidos –  sejam eles teoréticos, ontológicos, metodológicos, epistemológicos, etc – e resulta em uma profusão de fatos desconexos, fortuitos e sem maiores consequências. 

O que acontece, contudo, quando um puzzle (ou um conjunto deles) resiste às soluções sugeridas pelo paradigma? Refuta-se assim o paradigma? É preciso lembrar que a atividade da ciência normal é justamente trazer os casos ainda não resolvidos à normalidade do paradigma compartilhado.

A resistência dessas instâncias ainda não solucionadas é esperada pelos cientistas e não causa grande inquietação. Puzzles recalcitrantes são por vezes deixados de lado, adiados e até mesmo esquecidos. Puzzles persistentes não conduzem necessariamente a uma crise do paradigma.

O que transforma um puzzle recalcitrante em uma anomalia que coloca em risco o paradigma? Segundo Kuhn, não há uma resposta certa e definitiva para essa questão. A anomalia pode se tornar importante por colocar em questão as bases mais gerais do paradigma, por ser um obstáculo a alguma necessidade prática premente, por resistir ao paradigma por um tempo longo demais, etc.

Todavia, uma vez instalada a crise, três são as possibilidades:

1) O paradigma consegue resolver a anomalia;
2) A anomalia persiste e sua resolução é deixada às gerações seguintes;
3) A anomalia persiste e dá ensejo ao nascimento de um novo paradigma.

Durante a crise, cessa o período cumulativo e progressivo da ciência normal e inicia-se a “ciência extraordinária“, isto é, um período no qual todos os esforços estão localizados na resolução da anomalia e proliferam tentativas de resolução menos fiéis ao paradigma.

A resistência da anomalia acirra o descontentamento com o paradigma vigente e fornece o ambiente para a emergência de uma nova organização do campo que resolva aquele problema premente ainda que ao preço da implosão do modelo aceito até o momento. É somente quando uma alternativa satisfatória aparece que o antigo paradigma pode ser deixado para trás.

A emergência de um novo paradigma significa a reconstrução do campo sobre novas bases, uma reconstrução que muda algumas das suas mais elementares generalizações teoréticas tanto quanto seus métodos e suas aplicações. Quando a transição estiver completa, os cientistas terão mudado sua visão do campo, seus métodos e seus objetivos.

Agora, como o novo paradigma surge na mente de um cientista? Kuhn responde que ele nasce “no meio da noite“ e que o modo pelo qual um cientista chega a uma nova proposta de paradigma é inescrutável.

Como os critérios do paradigma moribundo são postos em questão por aqueles que querem substituí-lo por um novo, a solução para o impasse não pode ser a natureza ou a lógica, mas a persuasão argumentativa. Segundo Kuhn, entre o antigo paradigma e o novo há diferenças irreconciliáveis. 

Diferentes paradigmas afirmam coisas diferentes acerca dos entes do mundo e de seu comportamento. Além disso, cada paradigma tem seu conjunto próprio de métodos, problemas e padrões de solução aceitos. Antigos objetos e soluções são abandonados. Um mundo novo nasce. Não há somente incompatibilidade entre os paradigmas que se sucedem, mas incomensurabilidade.



A relação entre paradigmas incomensuráveis pode ser compreendida a partir da experiência visual de figuras como a do pato/coelho. Embora possamos perceber que a imagem pode ser a de um pato tanto quanto a de um coelho, não os percebemos a não ser sucessivamente, um após o outro, jamais pato e coelho ao mesmo tempo.

Analogamente, não é possível entender a realidade sob dois paradigmas simultaneamente. Na disputa entre paradigmas rivais, os cientistas devem escolher somente um, não podendo sustentar uma pesquisa científica sob dois paradigmas diferentes e inconciliáveis.

Entretanto, a transferência de um paradigma a outro é uma conversão e não uma questão de provas e lógica. Aquele que resiste ao novo paradigma não está sendo anticientífico. Ele confia que o antigo dará conta dos problemas que causaram a crise.

A causa da conversão também não tem uma resposta clara. O cientista pode se converter por razões consideradas extracientíficas, como crenças metafísicas, religião, idiossincrasias autobiográficas, nacionalismo, etc. Contudo, a resolução dos problemas que levaram o paradigma anterior à morte, a predição de novos fenômenos e a simplicidade também podem ser fatores conducentes à conversão.


domingo, 7 de setembro de 2014

Dostoievski, subterrâneo, consciência e ação



"(...) Pois o fruto direto e legítimo da consciência é a inércia, isto é, deixar-se ficar de braços cruzados, conscientemente. Já falei nisso. Repito, enfaticamente repito: todas as pessoas diretas, todos os homens ativos são ativos simplesmente porque obtusos e limitados. Como explicá-lo? Da seguinte maneira: em consequência de sua limitação, eles tomam por primárias as causas secundárias, imediatas, e assim se convencem, mais depressa e mais facilmente que outras pessoas, de que encontraram um fundamento inabalável para sua atividade. Então se tranquilizam, é isto que importa. Para começar a agir é preciso antes de mais nada estar perfeitamente tranquilo, sem nenhum vestígio de dúvida. Mas como chegaria eu a essa tranquilidade de espírito? Onde as causas primárias sobre as quais construir, onde os fundamentos? Entrego-me à reflexão, e, consequentemente, uma causa fundamental vai puxando outra, ainda mais fundamental, e assim até ao infinito. Tal é o verdadeiro cerne de toda consciência, de todo pensamento."

FEDOR DOSTOIEVSKI, Notas do Subterrâneo, p.26, Ed. Bertrand Brasil (Trad. Moacir Werneck de Castro)

O protagonista amargurado da novela Notas do Subterrâneo (1864) de Fedor Dostoievski opõe o "homem de ação" ao "homem da consciência". Enquanto o primeiro parece não padecer de dúvidas quanto a seus próprios princípios e conhecimentos, o segundo sofre do mal oposto, é quase incapaz de ação exatamente por duvidar demais.

A causa do comportamento do primeiro é que, na maior parte das vezes, os homens de ação são facilmente convencidos pelas causas mais próximas e acessíveis - às vezes sequer são elas causas reais! - e, por isso, agem mui tranquilamente como se estivessem sobre solo firme. Dito de outro modo, o homem de ação tem visão curta e convence-se mais facilmente daquilo que lhe é mais próximo.

Aristóteles afirmava na Ética que jovem não deve se dedicar à ciência política justamente porque é pouco experiente, não viveu quase nada e quase nada conheceu do mundo e dos homens. Por isso sua opinião é dispensável e superficial. Ele facilmente consegue compreender ciências formais, pois estas são abstratas em um nível superior às coisas da vida cotidiana. Mas quando se trata daquilo que exige experiência (empeiria), eles são ineptos.

O que acontece usualmente com os jovens, acontece com alguns homens adultos também. Por que é tão fácil doutrinar, arregimentar, cooptar os jovens? Porque eles nada sabem da vida. Estão prontos para a ação a todo o momento desde que alguém lhes apresente uma razão ou uma causa (nos dois sentidos) imediata e facilmente compreensível. Muitos homens feitos também são assim. 

A consciência e a experiência, contudo, instauram uma cisão, uma crise no homem. Ele duvida das bandeiras justamente porque sabe recuar nas cadeias de causas e contemplar a extrema complexidade do real. É porque se conhece tão bem a realidade - não por compreendê-la melhor, mas por perceber sua complexidade - que o homem de consciência demora a agir ou não age.

E a cisão da consciência divide o homem dentro de si mesmo e o opõe a ele mesmo. Será que estou agindo com com essas motivações nobres ou com outras mais sinistras? O exame da consciência é a desconfiança acerca de si mesmo. O inimigo está à espreita esperando para atacar e ele sou eu mesmo. Este é o teatro interno no qual crio o enredo da peça, assisto-a e julgo moralmente seu único personagem.

Essa dinâmica pode - como tudo na vida - degringolar e gerar um ser como o homem do subterrâneo  de Dostoievski. Ele não age, mas remói dentro de si suas incapacidades e misérias e tira delas até algum gosto. He who desires but acts not breeds pestilence, já dizia Blake.

Ele é desprezível, mas é capaz de perceber certas verdades. Ele percebe a idiotia e a estupidez de seus colegas e contemporâneos. E percebe também que, por mais ligeiro e superficial que lhe pareça o homem de ação, sem ele o mundo não andaria. 

Mesmo no subsolo, abaixo da linha na qual se dá a convivência humana, ele percebe coisas que os outros não percebem. Por exemplo, a superficialidade do positivismo e de todas as utopias de progresso e harmonia por meios materiais. Os homens de ação logo põem-se à serviço de utopias porque crêem que conhecem as causas primeiras das coisas e que tudo está sob seu controle.

Basta fazer isso ou aquilo, seguir tal e qual método, seguir esta teoria a não a outra e então tudo no final dará certo e os homens viverão felizes em um mundo controlado, medido, pesado e calculado para a sua própria felicidade. O homem do subterrâneo vê bem que não é assim. Vê que há algo que para o homem é mais importante que a sua felicidade material: o fato de ser homem. E para provar sua humanidade ele destruiria o paraíso matematicamente planejado.

E isso não é um pessimismo, pois o otimismo, nesse contexto, seria assumir que o homem pode ser planejado e controlado como são as coisas que o próprio homem produz. Isso sim seria um inferno. O que nos torna homens é justamente o fato de que somos imprevisíveis, que temos em nós um "resto" que foge aos cálculos. O homem de ação estaria mais à vontade no mundo do cálculo e do planejamento, pois ali impera a tranquilidade da certeza e da posse das causas primeiras.

O homem de consciência - e sua forma degenerada, o homem do subterrâneo - sabe que não é assim e que não pode viver nessa tranquilidade ilusória. Seu habitat é o conflito interno, a luta interior, que sustenta a dúvida, que mede a complexidade da realidade e que reconhece a extrema dificuldade de sua compreensão. Ele não se deixa levar pelo encanto das causas próximas, mas aceita a cadeia quase infinita das causas remotas.

O homem da consciência seria naturalmente desconfiado desses grandes projetos, das virtudes altissonantes e dos ideias exaltados que movem os homens de ação. Ele sabe que nem mesmo pode confiar em si totalmente. Talvez ele esteja mais à vontade com o pecador contrito do que com o humanista otimista.

Todavia, o homem do subterrâneo desceu demais, penetrou demais no interior de si mesmo e da realidade e, não encontrando ali nenhuma luz, fez da escuridão, da humilhação e da inépcia seu pão cotidiano. O homem de ação age porque inconsciente, porque iludido pelas causas (?) imediatas. São dois extremos. Há que se encontrar o termo médio.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Popper, nuvens, relógios, determinismo e indeterminismo



Karl Popper, em About Clouds and Clocks, uma conferência do ano de 1965 em homenagem a Arthur Holly Compton, pretendeu apresentar uma tentativa de solução para o problema do determinismo físico. Para tanto, Popper adota a curiosa metáfora das nuvens e dos relógios. 

As primeiras pretendem representar sistemas físicos cuja organização não obedece a leis deterministas rígidas, ou seja, cujo comportamento não pode ser previsto com exatidão a partir de seu estado atual. Os últimos (os relógios) são usados para exemplificar sistemas físicos cuja constância pode ser prevista com exatidão a partir de seu estado atual.

Segundo Popper, depois do sucesso da mecânica newtoniana que descrevia e explicava os fenômenos físicos terrestres como o movimento e a queda dos corpos bem como o movimento dos corpos celestes, os homens de ciência (como uma conseqüência não realmente pretendida por Newton), passaram a adotar a visão de que todos os corpos físicos eram regidos por leis mecânicas cujo comportamento poderia ser previsto com exatidão. Entre estes estariam também os seres humanos. 

A doutrina acima descrita passou a ser chamada de determinismo físico. Segundo os termos em que foi formulada, ela parecia um ataque frontal às pretensões humanas segundo as quais o comportamento dos homens não estaria sob o tacão de leis físicas rígidas. Em outras palavras, o determinismo físico não daria espaço para a liberdade humana. 

Ora, sem liberdade, o que o homem seria além de uma máquina, um autômato? Descartes já havia vislumbrado a possibilidade de os animais serem nada mais que máquinas, mas havia garantido a liberdade humana graças à idéia de uma substância pensante (res cogitans) que afinal distinguiria o homem do resto dos seres vivos. 

Mas o determinismo posterior não deixa espaço para essas “substâncias” algo misteriosas e afirma que, mesmo o comportamento humano poderia ser, em princípio, explicado em termos de leis físicas rígidas e imutáveis. Qualquer dificuldade em realizar esse trabalho se deve somente à nossa ignorância dessas leis e da maior quantidade de variáveis envolvida no comportamento humano. 

Por outro lado, dificuldades desagradáveis nasciam da consideração de tal teoria. Um homem sem liberdade pode ser culpabilizado por seus atos? Aparentemente a resposta é não. Se ele nada faz além de ser movido em seus atos por leis físicas irresistíveis, como pode ser responsabilizado pelo que faz ? Se ele não pode ser responsabilizado, qual a base para condená-lo moralmente ? E pior, como condená-lo judicialmente já que o crime deve sempre ser reconhecido como um ato livre e consciente daquele que o pratica? O determinismo mostra assim que suas conseqüências vão muito além dos laboratórios de física. 

Consciente das dificuldades acima elencadas, Popper toma partido nessa discussão ao lado dos indeterministas. O indeterminismo a que adere é o que ele chama de indeterminismo físico. Segundo ele, o indeterminismo físico 


"É simplesmente a doutrina de que nem todos os eventos no mundo são predeterminados com precisão absoluta, em todos os seus infinitesimais detalhes. Fora isto, ela é compatível praticamente com qualquer grau de regularidade que se queira (...) Enquanto o determinismo físico exige uma predeterminação física completa e infinitamente precisa e a ausência de qualquer exceção, o indeterminismo físico assevera somente que o determinismo é falso e que há pelo menos algumas exceções, aqui e ali, à predeterminação precisa." (POPPER, 1999, tradução própria ) 


Popper admite a possibilidade de se prever qualquer evento, embora não admita que os eventos possam ser de fato previstos de forma precisa em todos os seus detalhes. Pode-se sempre prever acuradamente e pode-se sempre prever cada vez mais acuradamente, mas nunca se pode chegar à uma previsão perfeita. 

Nenhuma teoria pode prever numa precisão infinita. As teorias, ainda que tratem de corpos físicos, sempre têm suas predições verificadas apenas aproximadamente, ainda que tal aproximação admita graus mais ou menos precisos de tolerância de acordo com seu campo de pesquisa. 

Parece assim que o determinismo não se sustenta em sua mais importante afirmação, a de que se possa prever com precisão o comportamento futuro de um sistema físico a partir de seu estado atual. A questão que está em jogo aqui é: de fato, o indeterminista está em contradição com a física newtoniana? A resposta popperiana é um seguro não. E com a física relativista? Também não. E com a mecânica quântica? Menos ainda. 

Se as principais teorias científicas de nossa época não estão em contradição com a posição indeterminista, como formulada por Popper, então o determinismo se revela como uma má interpretação da meta científica de busca por regularidades e das teorias científicas que são a base de nossa visão do mundo. Entretanto, o indeterminismo é satisfatório? 

Se não há possibilidade de se predizer de forma infinitamente precisa o comportamento de sistemas físicos, então há algum espaço aí para o acaso. A primeira pergunta que surge é então se há realmente um componente de acaso no indeterminismo e, em caso de resposta afirmativa, a segunda pergunta seria se ele (o acaso ) é de alguma forma mais explicativo que o determinismo férreo. 

De fato, o acaso nada explica e substituir o determinismo férreo pelo acaso de nada ajudaria à solução do problema. Dizer que algo acontece por puro acaso não é, de forma alguma, explicá-lo. Contudo, os termos em que o problema é colocado podem estar errados. Será mesmo que, na ausência de um determinismo físico invariável o que nos resta é o puro e caótico acaso? 

Para Popper o problema reside exatamente aí. Uma certa tradição científico-filosófica nos acostumou à idéia de que ausência de determinismo é igual à admissão do acaso puro. Talvez seja o momento de considerar uma alternativa, um meio termo entre nuvens e relógios. 

Popper chamava a tese determinista de pesadelo. Se o determinismo físico estiver certo, então não passamos todos de autômatos ou zumbis. Não é das mais agradáveis perspectivas. Todavia, entre a população de zumbis e autômatos estariam, sem dúvida, os proponentes dessa teoria. Isso traz algumas conseqüências e problemas bem interessantes ao determinista convicto. 

Afinal de contas, se o determinismo estiver certo e todo o comportamento de sistemas físicos são fechados e passíveis de previsão precisa, incluindo aí os seres humanos; se todo estado de coisas atual é ferreamente determinado pelo estado anterior e este pelos anteriores; se todos os atos humanos são conseqüências das mesmas leis que regem os outros corpos físicos, então o próprio determinismo, enquanto tese (ou teoria, ou hipótese) é também somente um produto dessas mesmas leis férreas. 

E quando se pensa que podemos considerá-lo como um teoria verdadeira, enganamo-nos. Isto porque nosso assentimento (ou rejeição) não se dará em termos de uma discussão racional sobre a verdade ou a falsidade dessa teoria (só será assim aparentemente, ilusoriamente), mas será simplesmente uma conseqüência necessária de estados físicos anteriores e poderia ser previsto sem falhas da mesma forma que prevejo um eclipse. 

No fundo, o determinista convicto seria um autômato que não se convenceu racionalmente do determinismo por meio de argumentos irresistíveis como pensa, mas somente foi guiado até sua conclusão pela força irresistível das leis físicas. Em suma, se o determinismo for verdadeiro, questões sobre o verdadeiro e o falso (e avaliações racionais de teorias) não passarão de ilusões. Se o determinismo estiver certo, o determinismo nem mesmo será uma teoria. Será apenas um comportamento previsível entre tantos outros. 

É nesse contexto que a discussão se tornará mais interessante e Popper poderá anunciar haver chegado ao cerne da questão. E tal cerne se refere ao que ele chamou de problema de Compton (filósofo a que homenageava com a conferência), que pode ser formulado como o problema de como significados abstratos podem influenciar o comportamento humano. Nas palavras de Popper, 

“o que queremos é compreender por que coisas não-físicas tais como objetivos, deliberações, planos, decisões, teorias, intenções, valores podem desempenhar um papel na produção de mudanças no mundo físico."

Por outro lado, esse importante problema traz à baila um outro muito mais discutido e conhecido pelos filósofos na tradição filosófica ocidental. Trata-se do problema corpo-mente, ou o problema de Descartes como o chamou Popper. Este o formulou como o problema de entender como estados mentais qualitativos podem comandar estados físico-corporais. Ambos os problemas, de Compton e de Descartes tratam essencialmente da liberdade e solucioná-los é dar uma respostas satisfatória à questão da liberdade humana. 

As respostas, para serem consideradas aceitáveis, devem atender a um postulado formulado por Compton, segundo o qual quaisquer respostas aos problemas acima enunciados devem explicar que a liberdade não é mero acaso, mas resultado da ação recíproca entre algo quase ao acaso e algo que funciona como um controle restritivo. 

Popper aceita a restrição feita por Compton e tenta formular uma solução para o primeiro problema (sobre como significados abstratos influenciam no comportamento humano) através da idéia de controles plásticos, ao invés de controladores rígidos. Para tanto, Popper enuncia sua teoria sobre a linguagem humana. 

Inspirado na teoria das funções da linguagem de Karl Bühler, Popper afirma que a linguagem tem funções diversas e que algumas delas os seres humanos compartilham com os animais. Entretanto, existem duas funções específicas da linguagem humana, uma descritiva e outra argumentativa. 

Animais e homens compartilham as funções inferiores da linguagem, a função (auto) expressiva e a função comunicativa. Na primeira os organismos expressam sintomaticamente seus estados fisiológicos tal como o bocejo de um leão expressa seu estado de sonolência. 

Na segunda, a comunicação ocorre sempre que o movimento expressivo de um indivíduo atua sobre outro na qualidade de sinal libertador da resposta deste último. Por exemplo, o bocejo em companhia contagia os outros e os induz a bocejar ou o rugido do leão induz uma resposta de amedrontamento em seu oponente. 

A linguagem humana, apesar de compartilhar essas funções inferiores com a linguagem dos outros organismos, tem ainda, segundo Bühler e Popper, a função superior descritiva. O homem descreve diversos fenômenos, desde de estados de coisas até argumentos e teorias de outros homens. 

É através dessa função que emerge a possibilidade de descrições que correspondam ou não aos fatos, ou seja, que sejam ou não verdadeiras. A idéia reguladora que atua aqui é a idéia de verdade. Sendo possível ao homem contar histórias falsas, enganar seus semelhantes, nasceu cedo a necessidade de critérios pelos quais determinar a verdade, a correspondência com os fatos, das descrições alheias. 

Desta necessidade nasceu uma outra função superior (um acréscimo popperiano à teoria de Bühler), a saber, a função argumentativa da linguagem humana. Na argumentação se avaliam as descrições, as teorias e hipóteses em seu conteúdo objetivo. A postura crítica se torna possível somente na função argumentativa onde a idéia de validade dos argumentos surge como idéia reguladora. 

Certamente, as funções inferiores estão presentes mesmo quando descrevem-se fatos e avaliam-se argumentos. Numa palestra não se pode evitar que o palestrante expresse seus estados fisiológicos ou que comunique sentimentos aos ouvintes que liberarão certos tipos de respostas. Contudo, a descrição feita pelo palestrante vai ser avaliada segundo critérios de verdade e validade. O que importa é a verdade da teoria, se ela é uma descrição correta dos fatos que pretende descrever, e se seus argumentos são válidos e convincentes. 

Para Popper, as funções superiores da linguagem exercem um controle plástico sobre as funções inferiores. Por exemplo, numa conferência científica, os presentes podem expressar sua animação ou desanimação, sua alegria ou sua tristeza com o que está sendo exposto, no entanto o que importa na conferência são os argumentos tomados em si mesmos. Se eles são válidos e se a tese exposta é verdadeira. As funções superiores da linguagem exercem assim um controle sobre as funções inferiores durante a conferência fazendo com que esta gire em torno somente de questões teóricas. 


"(...) os argumentos críticos são um meio de controle: são um meio de eliminar erros, um meio de seleção. Resolvemos nossos problemas propondo experimentalmente várias teorias e hipóteses concorrentes, como balões de ensaio, por assim dizer; e submetendo-as a discussões críticas e a testes empíricos, para o fim de eliminação de erros. 
Assim, a evolução das funções superiores da linguagem, que venho tentando descrever, pode ser caracterizada como a evolução de novos meios de solucionar problemas, por novas espécies de experiências e por novos métodos de eliminação de erros; isto é, novos métodos para controlar as experiências."


A solução para o problema de Compton reside exatamente no fato de que as funções superiores da linguagem evoluíram para dar conta da necessidade de um melhor controle das funções inferiores e de uma melhor adaptação ambiental. Podemos formular de modo objetivo através da função descritiva da linguagem novas teorias sobre o mundo e através da função argumentativa podemos criticar essas mesmas teorias, abandonando-as tão logo se mostrem inadequadas, aumentando assim nosso poder de adaptação. 

As funções superiores evoluíram até permitir que pudéssemos dar atenção ao conteúdo objetivo de nossas expectativas e teorias, num processo de abstração que nos permite avaliar o conteúdo invariável de uma teoria, do qual depende sua verdade. 

Entretanto, o controle exercido por nossas funções lingüísticas superiores não é um controle rígido (como o exigiu o postulado de Compton). Podemos discutir nossas teorias e, muitas vezes, rejeitá-las. Elas se configuram como controladores plásticos, pois se as teorias nos controlam, nós também as controlamos (discutindo-as criticamente) num efeito de retrocarga. Popper declara que esta é sua solução para o problema de Compton. 

Para solucionar o problema de Descartes, Popper desenvolve uma teoria de feição evolucionista que leva em conta os aspectos principais do neodarwinismo. Segundo essa teoria popperiana, todos os seres vivos estão envolvidos na solução de problemas. A solução desses problemas se dá sempre por meio do processo de tentativa e eliminação de erros. 

A eliminação dos erros pode ocorrer pela eliminação do organismo ou pela eliminação de órgãos, comportamentos ou mesmo hipóteses malsucedidas. O organismo é, ele mesmo, uma “hipótese” que resistiu ao teste até o momento presente, pois sua anatomia foi formada a partir do processo de tentativa e eliminação dos erros. 

Podemos assim construir um esquema evolucionário como se segue

P1 -> TT -> EE -> P2


Em que P1 é o prblema inicial, TT é a teoria (ou teorias) criada para solucionar P1, EE é o processo de discussão crítica e eliminação dos erros e, por fim, P2 é o novo problema (ou os novos problemas) surgidos a partir da solução de P1. 

Segundo Popper, tal esquema pode ser identificado ao processo descrito pelo neodarwinismo. Em ambos há um processo tentativa múltiplas para a solução de um problema e uma seleção posterior das respostas adequadas. A diferença reside no fato de que, no neodarwinismo, o erro é eliminado junto com o organismo que o sustentou e o problema central é o da sobrevivência. No caso popperiano, há uma infinidade de problemas das mais variadas espécies. 

O problema P2 emerge como uma conseqüência não prevista da solução de P1, o que permite Popper chamar seu esquema de evolução emergente. O novo problema surgido da solução do anterior demanda também uma solução e busca teórica e crítica de teorias e hipóteses que dele dêem conta, aumentando o conhecimento sobre o mundo. 

O esquema popperiano permite o desenvolvimento de controles plásticos de erros onde a eliminação dos erros não implica na eliminação do organismo. A crítica tornada possível pelas funções superiores da linguagem permite que uma teoria ou hipótese possa ser discutida criticamente, de modo objetivo, como algo fora dos seus proponentes. Se eliminada, ela não acarreta a morte do proponente. Em outras palavras, as teorias morrem em nosso lugar. 

Para Popper,


"Cada organismo pode ser encarado como um sistema hierárquico de controles plásticos – como um sistema de nuvens controlado por nuvens. Os subsistemas controlados fazem movimentos de experiência e erro, que são em parte suprimidos e em parte restringidos pelo sistema controlador. Já encontramos um exemplo disso na relação entre as funções inferiores e superiores da linguagem. As inferiores continuam a existir e a desempenhar o seu papel; mas são constrangidas e controladas pelas superiores."



Outro exemplo pode ser encontrado quando estamos estamos de pé e quietos. O tempo inteiro meus músculos estão corrigindo pequenos desvios e erros para manter meu equilíbrio e me manter em pé. Todo o tempo, meu corpo está solucionando problemas e eliminado os erros. Todo o tempo os corpos dos seres vivos estão concentrados na tarefa de solução de problemas. O que difere os demais seres vivos do homem, o que difere a ameba de Einstein, é o caráter racionalmente orientado dessa atividade no homem no caso de problemas linguisticamente formulados. 

A teoria popperiana levaria também à solução do problema de Descartes. Para Popper a consciência cresce de forma gradual e teve sua origem, provavelmente, num vago sentimento de irritação do organismo diante de um problema, tal com o contato com uma substância irritante. A importância evolucionária da consciência cresceu quando através dela se pôde antecipar meios de reação possíveis frente aos problemas. 

A consciência seria então também um controle plástico que eliminava erros através de comportamentos do organismo. Mais tarde a própria consciência foi controlada plasticamente pelos produtos das funções superiores da linguagem e seus produtos, como livros, teorias e hipóteses. A relação que se estabelece entre os controladores plásticos é então a de um efeito de retrocarga. 

Em vários níveis essa relação se repete nos organismos vivos. Os diversos comportamentos podem ser encarados como os testes que a consciência (em seus diversos níveis) lança ao ambiente como hipóteses. O próprio organismo individual também pode ser encarado como uma hipótese de seu filo e seu sucesso ou insucesso influencia decisivamente no destino do filo. 

No homem essa relação se dá pricipalmente, graças às funções superiores da linguagem, em termos de teorias e hipóteses linguisticamente formuladas. Em todos os níveis acima elencados há um dar-e-receber, um efeito de retrocarga, que caracteriza, segundo Popper, a função dos controladores plásticos.

sábado, 30 de agosto de 2014

"Do Androids Dream of Electric Sheep?" de Philip K. Dick




O real e a imitação, o ser e a aparência, o verdadeiro e o falso dominam a trama de Do Androids Dream of Electric Sheep do escritor de ficção científica americano Philip K. Dick. Como em outros de seus livros, a atração e a busca por aquilo que é real é obstaculizada por inúmeras ambiguidades nascidas, desta feita, do progresso da capacidade humana de produção.

O natural e o artefato - outra modalidade da oposição entre o verdadeiro e o falso - aparecem como o centro de gravitação dos conflitos do livro. O homem produz obras externas a ele, que não raro são mais longevas que ele mesmo e que, por assim dizer, tomam uma "vida própria" ameaçando a vida de seu próprio criador.

Em 2019 a Terra é um planeta devastado por uma guerra atômica, a Guerra Mundial Terminus, que matou todos os animais e que obrigou boa parte da população - aquela que podia pagar - a emigrar para colônias em outros planetas. "Terminus" é o nome do deus romano dos limites e dos limiares. Ele marcava o fim e o início, a linha que distingue a entrada e a saída.

Fica evidente que a Guerra Mundial Terminus marcou o início de uma nova era, de um novo tempo no qual a Terra não é mais o habitat natural do homem. Ele é obrigado então a exilar-se, a fugir de sua própria casa, apartando-se de seu centro. Os eleitos ascenderam às estrelas, os proscritos foram deixados para testemunharem o "choro e o ranger de dentes" de um mundo condenado à decrepitude progressiva.

O mundo é coberto por uma camada radioativa crescente chamada de "A Poeira". É ela a responsável pela decomposição de toda a superfície da Terra e pelas mutações bizarras de muitos de seus habitantes. Entre estes figuram os "cabeça de galinha", aqueles que foram afetados pela Poeira a tal ponto que suas faculdades intelectivas embotaram-se até à idiotia. 

Foi o homem que lançou sobre si mesmo esse destino lúgubre pela invenção e uso de um de seus artefatos, a bomba atômica. Tal engenho humano destruiu o habitat próprio do homem, o seu nascedouro. Eis o primeiro exemplo de como o natural é vencido pelo artefato.

A fim de reparar sua hubris, os homens criam animais elétricos. Estes se tornam presentes em inúmeras casas daqueles que permaneceram na Terra. São artigo comum e barato. Enfim Descartes estaria certo: animais são máquinas regidas por inflexíveis leis mecânicas. 

Os homens, entretanto, não sonham com ovelhas elétricas. O mecânico pode até ser exteriormente idêntico ao animal legítimo, emular todos os seus comportamentos típicos e mesmo possuir programas a fim de simular doenças e até a morte. Mas é só um produto, mais um exemplar produzido industrialmente. Em uma palavra, mais uma cópia

Não somos todos cópias e não pertencemos todos à uma unidade formal que nos define, a espécie? Sob esse aspecto, não somos todos iguais na generalidade e diferentes na singularidade como qualquer carro produzido em série? Por qual razão os homens não sonham com ovelhas elétricas?

Ovelhas elétricas não são naturais. Há mais do que a relação entre universal e singular. O que funda a desvalorização da cópia produzida é justamente o fato de que ela é um artefato. Não é natural. É uma junção de partes anteriormente existentes e que são dispostas em uma ordem imposta de fora. O natural é um desenvolvimento a partir de si mesmo, no qual as partes e o todo são coetâneos, as partes se formando e assumindo funções tendo em vista a realização do todo.

O natural é mais real. O artefato imita o natural e não o inverso. Rick Dekkard, o protagonista, sonha com ovelhas verdadeiras. Elas custam caro, são vendidas em catálogos junto com outros animais. São sinal de status. Para ele é vergonhoso possuir uma ovelha falsa e por isso ele finge que a sua é verdadeira. Quando sua ovelha pára de funcionar, Dekkard determina-se a comprar uma ovelha real. 

Sua esposa não entende sua obsessão por uma ovelha verdadeira. Ela vive deprimida e escolhe o tipo de emoção que irá sentir utilizando um aparelho de modulação de emoções por ondas. Se quiser ficar feliz, escolhe no menu o número corresponde à alegria. Mais uma vez, o artefato domina o natural, toma o seu lugar. Nem mesmo as emoções e os sentimentos nascem espontaneamente. São produzidos por um engenho.

Dekkard é um caçador de "andys", andróides exteriormente idênticos aos humanos produzidos por megaindústrias como as organizações Rosen. O problema é que a perfeição dos engenhos humanos é tanta que o risco é de que eles se infiltrem entre os homens reais e acabem por dominá-los. O dever de Dekkard é impedir que isso aconteça. Cabe ele ser a linha de frente da distinção entre o natural e o artefato, aquele que decide o que é real e o que é falso, aquele que impede que a humanidade seja tragada por suas invenções.

Sua posição é a de todo homem: busca orientar-se precariamente entre a realidade e a aparência. Por isso ele é um sujeito comum, até mesmo apagado, sem graça e meio burocrático. Até como caçador de recompensas Dekkard não se destaca. É somente quando o melhor caçador é gravemente ferido por um andy que ele consegue ascender ao primeiro escalão de sua corporação. 

Ele não é exatamente "o homem certo para o trabalho certo". Ao contrário, ele é o que estava disponível, o segundo que finalmente se torna o primeiro somente pela ausência de alguém melhor. Nem mesmo ele seria a opção natural para o trabalho. Sua entrada no caso é também artificial.

Seis andys Nexus-6, os mais avançados no mercado, fugiram de Marte e pousaram na Terra. Depois de colocarem o melhor caçador de recompensas fora de ação, eles infiltraram-se na sociedade humana e desapareceram. A missão de Dekkard é "aposentá-los", isto é, matá-los. O que parece à primeira vista ser um mero eufemismo descortina-se em uma questão crucial: se eles são andróides, eles morrem? 

Um artefato não morre. Deixa de ser útil, perde sua validade, esgota-se, acaba sua bateria. Mas morrer, não morre. Quem morre são os que estão vivos. Os seres orgânicos e naturais. Sendo assim, matá-los, digo, aposentá-los não é uma questão ética. É como desligar um aparelho que já cumpriu sua função. Se os criamos, então os desligamos.

Se os andys são exteriormente idênticos aos humanos, se conseguem imitar os comportamentos humanos com perfeição, o problema evidente será saber como distinguí-los de humanos legítimos. Eles são somente res extensa, máquinas regidas por inflexíveis leis mecânicas. Mas nós não somos exatamente res cogitans, algo pensante, e sim algo empático. No livro de Philip Dick, o que nos distingue dos andróides é nossa capacidade de sentir empatia.

A empatia é o centro, por sua vez, do mercerismo. Não se sabe qual sua origem, mas esse culto é o que há de mais próximo de uma religião em todo o livro. Consiste basicamente em um aparelho de realidade virtual interativa na qual os "fiéis" testemunham a difícil caminhada ladeira acima de um homem idosos chamado Wilbur Mercer. Durante o processo, há uma união de todos aqueles conectados naquele momento e eles compartilham inclusive os ferimentos sofridos pelo idoso em sua subida.

Evidentemente, Mercer tem algo de Cristo. Sua mensagem é semelhante à mensagem de amor, embora se limite a um exercício momentâneo de empatia compartilhada. Mercer sofre, sua subida parece uma missão a cumprir e ela implica em sofrimento e sacrifício. Alguns afirmam mesmo que ele seja de origem não-humana, divina.

Estranhamente, é também um culto via artefato, uma liturgia - se assim podemos dizer - mediada por aparelhos, muito distante do contato direto com o transcendente através de uma real experiência místico-religiosa. A artificialidade é sua marca. Por medíocre e superficial que o mercerismo seja, reduzido como é a um congraçamento virtual baseado no sentimento, ele aparece como uma refirmação da natureza humana e da diferença essencial que separa os homens dos andys.

Os andys seriam capazes de fingir empatia, simular sua aparência externa. Não conseguem, contudo, fingir as micro-reações físico-corporais espontâneas e involuntárias que acompanham o sentimento de empatia em humanos. A distinção é feita na medição dessas reações em um teste de empatia chamado de escala Voigt-Kampf. Mais uma vez, é o natural que separa o verdadeiro do falso.

A medição, o quantitativo, o externo pretende identificar o que não é mensurável, o estado qualitativo, o interno, aquilo que é pessoal e intransferível, o que somente um ser animal individual vivo pode sentir. Eu não sinto a dor de um outro homem. Seu comportamento externo ma indica. Ele pode fingí-la, contudo, como um ator finge uma dor que não sente. 

O espontâneo e o involuntário não podem ser simulados. Eles são a sede da verdade, imunes ao falso. É neles que o fantasma na máquina se revela. A mão humana, entretanto, avança na imitação e ameaça essa fronteira que pode bem não ser intransponível. O teste Voigt-Kampf pode ser eficiente mesmo com os andys Nexus-6, os mais avançados robôs já criados. No futuro, pode tornar-se obsoleto. 

Há a possibilidade de que um humano seja tomado por um andy e que seja, em seguida, aposentado, digo, morto? Há homens bem pouco ou nada empáticos. Ainda assim permanecem homens. De todo modo, uma anomalia não anula a natureza. Impede-a de efetivar-se plenamente. Homens sem empatia são filhos de outros homens, portanto humanos. O problema é que Dekkard só tem um medidor de reações físico-corporais externas espontâneas para decidir quem é homem e quem não é.

O teste deve ser testado. Dekkard vai até as organizações Rosen para aplicar a medição Voigt-Kampf em diversos voluntários da empresa, entre os quais se encontraria pelo menos um Nexus-6. A sobrinha do sr. Rosen, Rachael Rosen, é sua primeira candidata.  Ele descobre que ela é, sem o saber, um andy. Memórias implantadas a fazem pensar que é humana.

Sabendo que o teste ainda é efetivo, Dekkard parte para a caçada. Um andy tenta matá-lo travestido como comissário soviético, um grupo de andys o captura e o conduz à uma central de polícia falsa e ele conhece um caçador de recompensas que acreditava ser um andróide. O falso como armadilha, o falso como proteção e o falso como erro.

Restam três Nexus-6 a serem aposentados e Rachael Rosen se oferece para ajudá-lo a caçá-los. Dekkard envolve-se cada vez mais a situação dos andys e começa mesmo a ter empatia por eles. Por fim, acaba tendo relações sexuais com Rachael. Esta, no entanto, maquiavelicamente, deita-se com o caçador de recompensas - como fez com seus antecessores - somente para fazê-lo envolver-se emocionalmente com ela a fim de que não fosse capaz de aposentar os outros andys, principalmente um que era idêntico à Rachael.

Dekkard encontra os últimos três andys no apartamento de um "cabeça de galinha" chamado Isidore em um prédio abandonado desde o fim da Grande Guerra Terminus. Isidore é infantilizado e pouco inteligente. Um filho perfeito dos novos tempos. Discriminado, vive solitário e encontra nos andys fugitivos um consolo para sua solidão. Mesmo que seus "amigos" não sejam capazes de amizade. Isidore é o homem tão degradado intelectual e emocionalmente que não vê problemas em buscar o afeto de quem claramente não é capaz de dá-lo.

Tal incapacidade fica evidente quando ele encontra uma aranha viva real e assiste uma das andys friamente cortar as patas do bicho simplesmente para saber com quantas pernas ele conseguiria andar. Nenhuma empatia é demonstrada. Eles são máquinas. E Isidore é ainda abalado pela notícia de que o mercerismo é uma fraude. Mercer na verdade é um ator fracassado em um cenário pintado.

Dekkard chega ao apartamento de Isidore e aposenta os três andys restantes. Ao contrário do que Rachael esperava, ele sequer hesita em aposentar sua cópia. Ele termina sua missão. E, ao chegar em casa, sua mulher conta-lhe que sua cabra - que ele havia comprado com o pagamento dos dois primeiros andys aposentados - estava morta, lançada do alto de seu prédio por Rachael.

Incapaz de empatia, como qualquer andy, Rachael sabe bem como sentem os humanos. Ela sabe como usar a humanidade contra os homens. Compreende conceitualmente o que é empatia, mas não a sente. Sua atitude seria a vingança de uma mulher apaixonada ou simplesmente mais uma imitação de uma reação legitimamente humana?

Na volta para casa Dekkard encontra um sapo vivo em uma área abandonada, deserta e sem vida. Mas para sua surpresa, o sapo também é mecânico. A fim de consolá-lo, sua mulher compra moscas artificiais para o sapo artificial. O artefato vence mais uma vez e se impõe ao homem.

Assim como ele se impõe ao próprio mundo na qualidade de "bagulho", a acumulação progressiva de artefatos humanos abandonados, inúteis, sem sentido que aos poucos toma a face da Terra. A deterioração progressiva do mundo pela ação da Poeira e do "bagulho" parece ser a última palavra da vitória do artefato sobre o natural, do falso sobre o verdadeiro. E parece não haver esperança.

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quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Larry Laudan, racionalidade, progresso científico e tradições de pesquisa




"Eu defendo que a racionalidade e a progressividade de uma teoria estão mais intimamente ligadas não à sua confirmação ou à sua refutação, mas sobretudo com sua eficácia na resolução de problemas." (Tradução própria)

LARRY LAUDAN, Progress and its Problems: Towards a Theory of Scientific Growth 

A posição do filósofo americano Larry Laudan caracteriza-se por uma redefinição dos conceitos usados tradicionalmente na epistemologia no tratamento da questão acerca das relações entre racionalidade e progresso. Segundo o filósofo americano, até hoje, todas as discussões sobre essa questão passaram pela subordinação do progresso à racionalidade. Aquele nada mais era do que a sucessão temporal de escolhas baseadas em padrões atemporais.

Assim, o progresso era uma conseqüência da aplicação em casos particulares de uma racionalidade auto-fundada e fora das vicissitudes do tempo. Por isso se justificava a busca por um método distintivo para as ciências que as legitimasse a priori. Entretanto, tal modelo não deu os frutos que se esperava.

É essa perspectiva que Laudan pretende ultrapassar. Para tanto, ele apresenta a tese de que deveríamos inverter a relação tradicional que vê o progresso dependente de noções de racionalidade. A tese então é aquela segundo a qual a racionalidade será definida em termos de progresso. Logo, ser racional é aceitar a teoria mais progressiva, a que exibe maior progresso cognitivo “com respeito às aspirações intelectuais da ciência” distinto do progresso material, social ou espiritual.

No primeiro capítulo de seu livro Progress and its Problems, Larry Laudan afirma que ciência é essencialmente uma atividade de resolução de problemas. Ele admite que essa é uma definição quase trivial (já encontrada em Popper) e que, por outro lado, outros objetivos são encontrados na atividade científica.

Entretanto, segundo ele, um modelo baseado na caracterização da ciência como atividade de resolução de problemas é capaz de capturar melhor o traço distintivo da empresa científica do que outros modelos baseados em outras definições.

Ciência é resolução de problemas. Mas que tipo de problemas? Laudan apontará o que considera como problemas científicos e, em seguida, apontará para dois tipos principais de problemas que as teorias científicas deverão dar conta. O primeiro tipo é o dos problemas empíricos e o segundo o dos problemas conceituais.

Segundo Laudan, os problemas científicos não são fundamentalmente diferentes de outros tipos de problemas e o modelo por ele defendido pode ser estendido para outras disciplinas. O autor não dá nenhuma definição demarcatória de ciência e diz que as teorias nada mais são do que tentativas de resposta adequada para os problemas. As teorias então devem fornecer uma explicação, trazer o irregular para as cercas da uniformidade e permitir a antecipação preditiva dos eventos.

Assim, toda teoria deve fornecer respostas aceitáveis para questões consideradas importantes e interessantes. Todavia, a aceitabilidade das respostas de uma teoria não será avaliada segundo idéias tradicionais de verdade, confirmabilidade e corroboração e sim segundo o critério de constituírem elas adequadas soluções para problemas importantes.

O que define um problema como empírico é o fato de ele ser tratado dentro de determinada ciência, por conseguinte dentro de seus pressupostos teóricos, como um problema acerca dos objetos de estudo do domínio em questão. Não importam aqui questões sobre se tais problemas correspondem a reais estados de coisa. Basta que eles sejam pensados como reais e tratados como tal.

O que faz um fato corriqueiro se tornar um problema empírico é o fato de alguém, em determinada época, decidir que tal fato merece ser explicado. Um evento pode passar séculos sendo encarado com naturalidade e indiferença e depois, num tempo posterior, tornar-se um problema cognitivamente importante.

Dentre os problemas empíricos, Laudan distingue três tipos: problemas não-resolvidos, problemas resolvidos e anomalias. Os primeiros são aqueles problemas ainda não resolvidos adequadamente por nenhuma teoria. Os problemas resolvidos são aqueles problemas já resolvidos adequadamente por alguma teoria e as anomalias são problemas que uma determinada teoria não resolveu e que, no entanto, já foram resolvidos por uma teoria rival.

Os problemas não-resolvidos contam somente como problemas genuínos e de importância quando eles são resolvidos. Até então, eles são somente potencialmente problemas para as teorias. Isso se deve ao fato, observado muitas vezes na história da ciência, de não se poder prever a priori a qual domínio de teorias um fenômeno pertence. 

Até que seja solucionado adequadamente por alguma teoria T, não se pode dizer com certeza que um problema não-resolvido P deve ser resolvido por uma teoria da química, da física ou da biologia. Não se podendo determinar a priori de quem é a responsabilidade de resolvê-lo, o problema não ameaça a nenhuma teoria.

Se um problema só conta como tal quando ele é resolvido por alguma teoria, quando um problema pode ser considerado como resolvido?


"(..) podemos afirmar que um problema empírico está resolvido quando, dentro de um contexto particular de pesquisa, os cientistas não o encaram mais como uma questão não respondida, isto é, quando eles acreditam que compreendem porque a situação proposta pelo problema é do jeito que é."


Além do que foi dito, para Laudan os problemas resolvidos têm ainda três importantes características. Primeiramente, as soluções para os problemas são sempre aproximativas, variando o graus de aproximação de ciência para ciência. Por exemplo, o grau de discrepância aceitável entre as predições e os dados serão maiores em domínios como os da cosmologia e menores em domínios cotidianos da mecânica newtoniana.

Em segundo lugar, é irrelevante se as soluções para os problemas são verdadeiras ou falsas. Basta para que uma teoria T seja vista como uma solução adequada para um problema P se de T possamos inferir P como conclusão. E, por último, as soluções serão sempre impermanentes. Ou seja, o que conta hoje como uma resposta adequada ao problema P pode no futuro ser considerada inadequada.

Tradicionalmente as anomalias têm sido vistas como motivos sérios para o abandono das teorias que as exibem. Entretanto, desde a crítica Duhem/Quine, sabe-se que a existência de anomalias não necessariamente exige o abandono da teoria. Uma teoria é composta de outras teorias das quais se derivam dedutivamente predições. Se as predições se revelam falsas, não é possível determinar qual das teorias componentes é a culpada.

Por outro lado, os próprios dados experimentais que refutam a teoria em teste são, eles mesmos, frutos de teorias. Assim, sua confiablidade não é total. Se a teoria T é refutada pelos dados experimentais, o problema pode estar nos dados e não em T. Diante disso, Laudan propõe que a existência de anomalias numa teoria T faz nascerem dúvidas sobre ela, mas não obrigam o abandono de T.

Todavia, a inconsistência lógica entre teoria e observação está longe de ser (como foi tradicionalmente considerada) a única forma de anomalia. Uma das mais importantes espécies de anomalia são aquelas em que uma teoria T, embora consistente com resultados observacionais, não é capaz de resolver um problema já solucionado por uma teoria rival no mesmo domínio. Qualquer problema empírico resolvido por uma teoria T se tornará uma anomalia para qualquer teoria do mesmo domínio que não o consiga solucionar. 

Assim, o peso de resolver uma anomalia será grande na avaliação crítica de uma teoria. Se um problema P for uma anomalia para uma teoria T, a resolução do mesmo se tornará uma tarefa importante para T e, uma vez solucionado, P entra para a lista de sucessos da teoria T.

Se a tarefa das teorias, e da ciência por extensão, é resolver problemas cognitivamente importantes, como avaliar o grau de importância desses problemas? Laudan pretende dar alguns critérios, sugestivos e não exaustivos, para essa avaliação.

O peso e a importância dos problemas empíricos podem variar de um tempo para outro, de época para época. Com o intuito de possibilitar uma avaliação, Laudan fornece alguns critérios. A importância de um problema pode crescer justamente porque ele foi resolvido. O status de problema só se torna evidente quando ele é adequadamente solucionado, pois até aquele momento, não se poderia dizer qual teoria deveria resolvê-lo. Pode-se dizer, inclusive, que é somente após sua solução que o reconhecemos como um problema.

Um problema também pode crescer de importância quando ele é uma anomalia há muito resistente e que é finalmente resolvida; quando são arquetípicos, ou seja, se mostram como instâncias particulares dos problemas considerados básicos em um domínio (problemas de choque entre corpos para teorias cartesianas, por exemplo); quando um problema é considerado mais geral que os outros.

Alternativamente, um problema pode decrescer em importância quando as crenças sobre o que há no mundo mudam e, com elas, os problemas que lhes são próprios; quando um problema passa de um domínio para outro e quando o tipo de problemas considerados básicos em um domínio muda.

Laudan fornece alguns critérios para a avaliação da importância cognitiva das anomalias. Ela varia segundo o grau de discrepância entre as predições e os dados experimentais; segundo o tempo de resistência da anomalia frente às tentativas teóricas de resolução; e segundo a situação comparativa das teorias rivais dentro de um determinado domínio.

Segundo Larry Laudan, a importância dos problemas conceituais foi geralmente ignorada por epistemólogos e historiadores da ciência. Entretanto, o papel desempenhado por tais problemas é, no mínimo, tão importante quanto aquele dos problemas empíricos. Enquanto estes se caracterizam como questões sobre as entidades substanciais constituintes de um determinado domínio, os problemas conceituais se caracterizam como problemas de primeira ordem concernentes aos fundamentos das estruturas conceituais (as teorias).

Os problemas conceituais podem ser internos ou externos. No primeiro caso, quando uma teoria T exibe inconsistências internas (inconsistências lógicas e auto-contradições) ou ambigüidade nas suas categorias básicas. Certamente algum grau de ambiguidade deve ser esperado de qualquer conceito ou termo usados em teorias científicas. Entretanto, o esclarecimento e especificação progressivos desses termos é tarefa das mais importantes na atividade científica.

No segundo caso, os problemas são externos, quando uma teoria T entra em conflito com uma outra teoria qualquer do domínio cujos proponentes consideram-na bem-fundada. Nesses casos, duas teorias podem apresentar inconsistências lógicas entre si, como quando uma teoria mais recente faz afirmações que desafiam as afirmações de uma teoria mais antiga, bem-fundada e universalmente aceita.

Um outro caso comum de problema conceitual é quando duas teorias não são incompatíveis, mas cuja adoção de uma torna a outra implausível. Geralmente isso se dá quando uma teoria T, embora compatível com T1, afirma mais que esta, sendo portanto mais plausível a aceitação de T do que a aceitação de T1.

Também há o caso em que duas teorias são meramente compatíveis. Uma teoria química que somente seja compatível com a mecânica quântica sem, no entanto, utilizar nenhuma categoria teórica da última, torna-se suspeita.

Com tudo o que foi dito acima, resta uma questão importante: quais as fontes dos problemas conceituais? Se isso não for determinado, qualquer teoria científica pode ser impugnada por não se coadunar com alguma crença qualquer. Segundo Laudan, existem três tipos de dificuldades que podem, legitimamente, gerar problemas conceituais.

O primeiro deles nasce de dificuldades intra-científicas e se dá quando duas teorias estão em conflito. Quando isto acontece não há regras para definir de antemão qual das duas deverá ser eliminada. A suspeita é igualmente partilhada entre as duas e nada obriga o cientista a abandonar uma das teorias que constitui o par. A inconsistência somente indica que há ali motivos para se considerar a possibilidade de abandono de pelo menos uma das duas teorias.

O segundo tipo diz respeito aos problemas nascidos de dificuldades normativas. Eles surgem quando uma teoria infringe as regras metodológicas esposadas por uma determinada época. Na maior parte das vezes, o trabalho é de reconciliar a teoria com a metodologia, embora em muitos casos, ao contrário, são as metodologias que acabam por se coadunar com as teorias.

Por fim, o terceiro tipo de problemas conceituais nasce quando uma teoria está em conflito com algum aspecto relevante de nossa comum visão de mundo. Essas dificuldades se dão não mais, como nos dois casos anteriores, no interior a ciência, mas sim em um campo de discussão que extrapola o âmbito científico. Assim, teorias podem entrar em conflito com nossas crenças não-científicas que vão desde a metafísica, a lógica, a ética até a teologia.

Como no caso dos conflitos entre teorias científicas, quando a suspeita recaía sobre todas as teorias envolvidas, também no caso de conflitos entre teorias científicas e crenças não-científicas a suspeita será compartilhada por todas as visões envolvidas.

Não há, de antemão, nenhum privilégio a ser dado, como se poderia imaginar, à teorias científicas. A avaliação desse conflito deverá levar em conta o quão entranhada uma crença está em nossa visão de mundo como também o aumento de nossa capacidade de resolução de problemas.

Laudan afirma que os problemas conceituais, em geral, são mais sérios que os problemas empíricos. Isto se deve ao fato de que problemas empíricos são mais fáceis de solucionar do que os problemas conceituais. E a importância desses problemas varia de acordo com a confiabilidade que se tenha em cada uma das teorias em conflito, com o estado comparativo das teorias no momento e com a idade do problema conceitual.

Para sumarizar suas idéias acerca dos problemas científicos, Larry Laudan aponta para uma forma, ainda que aproximativa de como um modelo de progresso científico deve ser. Segundo tal modelo, o problema resolvido – seja empírico ou conceitual – é a unidade básica do progresso científico e maximizar o escopo de problemas empíricos resolvidos, minimizando ao mesmo tempo o escopo de anomalias e problemas conceituais, é o objetivo da ciência.

Para acentuar a importância dos problemas conceituais no modelo acima descrito, Laudan afirma que pode haver progresso sem crescimento de solução de problemas empíricos e que a troca de uma teoria por outra pode ser regressiva mesmo que o número de problemas empíricos resolvidos cresça se, na troca, apareçam mais anomalias e problemas conceituais do que aqueles que a teoria antiga apresentava.

As redes de proposições que usualmente chamamos de teorias devem ser distinguidas em duas categorias. A primeira delas se refere às teorias particulares cuja avaliação se dá segundo sua adequação enquanto soluções para problemas empíricos e conceituais. Podemos citar a título de exemplo, uma teoria que tente explicar o comportamento dos ursos no acasalamento. O segundo tipo se refere à maxi-teorias de maior generalidade, menor testabilidade e caracterizadas como um conjunto de doutrinas ou asserções. Como exemplo, podemos citar o darwinismo.

As tradições de pesquisa não se restringem ao campo científico. Elas estão presentes também na filosofia, na teologia, na ética, na psicologia em toda e qualquer disciplina intelectual. Toda tradição de pesquisa tem um certo número determinado de teorias que a exemplificam e parcialmente a constituem.

Ao mesmo tempo, elas exibem um conjunto de asserções e comprometimentos de ordem metafísica e de ordem metodológica que as distingue de outras tradições. Ao contrário das teorias específicas, as tradições se desenvolvem durante longos períodos de tempo e exibem formulações diversas e mesmos contrastantes.

Entre as funções da tradição de pesquisa está aquela de fornecer linhas-mestras para a criação de teorias específicas. Ela diz quais entidades básicas existem em seu domínio e como essas entidades interagem entre si. As teorias específicas deverão explicar os problemas empíricos a partir desses pressupostos e , assim, reduzí-los à ontologia básica da tradição de pesquisa.

A tradição de pesquisa também fornece uma metodologia básica para as teorias específicas que a constituem. Tais pressupostos determinam em que se constituem os métodos de pesquisa legítimos bem como as técnicas experimentais, modos de teste e avaliação teóricos. O conceito de tradição de pesquisa é assim definido por Laudan:


"Uma tradição de pesquisa é uma série de afirmações gerais sobre as entidades e processos em um domínio de estudo e sobre os métodos apropriados a serem usados na investigação dos problemas e na construção das teorias naquele domínio."


As teorias que constituem uma tradição de pesquisa seguem os pressupostos metafísicos e metodológicos dessa tradição. Evidentemente, fugir ou violar esses parâmetros é colocar-se fora dos limites dessa tradição de pesquisa. Laudan aponta para o fato de que isso não é necessariamente ruim, pois grandes revoluções na história científica nasceram justamente por uma quebra, deliberada ou não, dos cânones de determinadas tradições de pesquisa.

A associação de teorias particulares à tradições de pesquisa não significa que essas teorias devam ser homogêneas. Ao contrário, o que mais ocorre é que elas sejam mutuamente inconsistentes, uma vez que cada uma delas representa tentativas, dentro da estrutura daquela tradição, de solucionar problemas e corrigir as teorias predecessoras.

As tradições não são elas mesmas explanatórias, preditivas, testáveis diretamente com são as teorias particulares. No entanto, isso não significa que elas não tenham função no processo de resolução de problemas que é o objetivo maior da ciência. As tradições proverão as teorias específicas com instrumentos necessários para a resolução dos problemas, sejam eles empíricos ou conceituais.

Assim, uma tradição de pesquisa pode ser avaliada através do sucesso na resolução de problemas de suas teorias constituintes. Uma tradição será progressiva se levar a um maior número de problemas resolvidos. Mas, ao avaliá-la deste modo, não estaremos dizendo nada acerca de sua verdade ou falsidade. Estaremos somente avaliando sua capacidade de resolver problemas, sem nos determos no questionamento acerca da veracidade ou falsidade de seus pressupostos metafísicos e metodológicos.

E se uma tradição de pesquisa está estagnada ou não logrou sucesso até o momento, isso não significa que ela deverá ser esquecida para sempre. A decisão de abandoná-la será sempre tentativa, comparativa (escolhem-se outras tradições mais progressivas à disposição) e referente ao tempo da avaliação, não derivando daí nenhuma predição sobre o futuro dessa tradição.

Contudo, as teorias particulares compartilham do destino das tradições que por elas são constituídas. Uma teoria altamente bem-sucedida que se encontra numa tradição de pesquisa estagnada, terá seus méritos serão cobertos pela desconfiança. De forma inversa, uma teoria de poucos frutos pode ser defendida pelo fato de pertencer a uma tradição bem-sucedida na resolução de problemas.

O fato de as teorias particulares serem construídas a partir dos pressupostos metafísicos e metodológicos da tradição de pesquisa a que pertencem não deve levar à idéia de que a relação entre tradição e teorias seja de derivação lógica. As tradições fornecem somente linhas-mestras gerais para a construção de teorias e estas articulam esses pressupostos na busca da solução dos problemas com os quais se defrontam.

Além disso, diversas teorias de uma mesma tradição de pesquisa são mutuamente inconsistentes. Por outro lado, uma mesma teoria pode ser sustentada coerentemente por diferentes tradições.