terça-feira, 25 de maio de 2010

Proclus Diadochus e os limites das teorias astronômicas


"Quando se trata de coisas sublunares, nós nos contentamos em tomar em conta aquilo que produz na maior parte dos casos, por causa da instabilidade da matéria que as forma. Quando, por outro lado, queremos conhecer as coisas celestes, usamos o sentimento, e fazemos apelo a uma multidão de artifícios muito distantes de toda verossimilhança. Portanto,nós que estamos colocados, como se diz, no lugar mais baixo do universo, devemos nos contentar com a aproximação de cada uma dessas coisas. Que tal é o caso torna-se manifesto pelas descobertas que se fazem sobre as coisas celestes; pois de diferentes hipóteses tiram-se as mesmas conclusões relativas aos mesmos objetos; entre essas hipóteses, existem as que salvam os fenômenos por meio de epiciclos, outras por meio de excêntricos, outras por meio de esferas desprovidas de astros e girando em sentido inverso.
Os deuses, certamente, possuem um julgamento mais seguro; mas, quanto a nós, precisamos contentar-nos em atingir apenas a aproximação dessas coisas; pois somos homens...de modo que falamos de acordo com o que é verossímil e os discursos que fazemos assemelham-se a fábulas."

PROCLUS DIADOCHUS, Comentário ao Timeu de Platão


A doutrina do filósofo neoplatônico Proclus Diadochus (412-485 D.C.) aqui transcrita é rica em lições sobre a ciência antiga. Em primeiro lugar, Proclus afirma a divisão entre o mundo supralunar e sublunar já postulada por Aristóteles e, seguindo as linhas mestras do mestre de Estagira, declara que o conhecimento das coisas sublunares se dá pela maior parte dos casos por causa da instabilidade da matéria (hylê), que por vezes resiste à Forma (eidos).

Logo depois, trata das coisas supralunares, asseverando que elas não são são conhecidas por sua natureza (afasta-se aqui de Aristóteles), mas somente por aproximação. Mas a que tipo de aproximações Proclus se refere? Àquelas já tratadas por Hipparchus, Theon de Smyrna e Ptolomeu: as descrições matemáticas do movimento observado dos corpos celestes.

É preciso lembrar aqui que, como Pierre Duhem ensina, a astronomia era a única das ciências antigas que havia alcançado o "grau de aperfeiçoamento em que a linguagem matemática serve para exprimir as leis descobertas por experiências precisas". Entretanto, esse gênero de ciência tem seus limites e Proclus sabe que de diversas hipóteses as mesmas conclusões podem se seguir.

Ao invés de provar uma asserção através da demonstração de sua derivação lógica de princípios evidentes, como na Física aristotélica, a astronomia matemática só podia criar hipóteses cujas conseqüências fossem adequadas aos movimentos observáveis dos astros. Assim sendo, os epiciclos e excêntricos, hipóteses igualmente adequadas ao que se observava nos céus (como já havia demonstrado Hipparchus), só poderiam salvar os fenômenos e nunca provar algo sobre a natureza dos movimentos celestes.

Essa doutrina será passada à frente por outro filósofo neoplatônico, Simplicius, e chegará à Europa medieval através de seus comentários a Aristóteles, influenciando até mesmo Tomás de Aquino.

Contudo, o século XVII abolirá a divisão das esferas e aplicará a matemática até então reservada ao estudo astronômico dos corpos celestes a todo o mundo sublunar, iniciando assim a Revolução Científica. Para muitos, com essa extraordinária mudança, a física moderna herda a questão levantada por Hipparchus, Proclus e Simplicius acerca da verdade das hipóteses de cunho matemático.

sábado, 15 de maio de 2010

Hipparchos e a adequação das hipóteses astronômicas


"Está evidentemente de acordo com a razão que haja concordância entre as duas hipóteses dos matemáticos sobre os movimentos dos astros a o epiciclo e a do excêntrico; uma e outra concordam por acidente com aquilo que está de acordo com a natureza das coisas, o que era admitido por Hipparchos."

THEON DE SMYRNA, Astronomia




O trecho acima de Theon de Smyrna (335D.C./405D.C.), filósofo, matemático e astrônomo, pai de Hipácia de Alexandria, reproduz a descoberta do também astrônomo e matemático Hipparchos (190B.C./120B.C.)segundo a qual duas ou mais hipóteses astronômicas podem igualmente ser adequadas à observação.

Hipparchos havia demonstrado que tanto a hipótese dos epiciclos quanto a hipóteses das órbitas excêntricas*, apesar de incompatíveis entre si, eram, no entanto, igualmente adequadas para salvar os fenômenos, ou seja, eram plenamente concordantes com a experiência observacional e permitiam predições acertadas.

Ora, se duas ou mais hipóteses podem ser adequadas aos fenômenos observados, então qual o critério para decidir pela verdadeira? Evidentemente, somente uma poderia ser verdadeira, somente uma poderia estar de acordo com a natureza das coisas. As outras hipóteses eram concordantes com a observação por acidente.

Concebidas pelos gregos como hipóteses matemáticas submetidas à adequação de suas proposições e predições aos movimentos regulares e observáveis dos astros, as teorias astronômicas não podiam implicar qualquer tipo de doutrina sobre a natureza última de seus objetos de estudo.

Ao astrônomo cabia somente criar hipóteses meramente concordantes com o comportamento manifesto dos corpos celestes.Por outro lado, definir as essências, as naturezas desses corpos, era tarefa do físico que procedia através de princípios não matemáticos, mas pelos princípios gerais do movimento e das causas intrínsecas aos fenômenos.

O astrônomo desenvolvia descrições matemáticas dos eventos celestes, tendo como pedra de toque a adequação observacional. O físico, como Aristóteles, se dedicava a determinar a Forma (Eidos) e a matéria dos corpos celestes, bem como as condições gerais do movimento supralunar e sublunar.

A questão levantada por Hipparchos se estenderia por muitos séculos ainda, sendo parte importante das discussões acerca da nova astronomia nos séculos XVI e XVII e permeando as obras de Brahe, Kepler e Galileu.

Uma vez que o modelo matemático astronômico foi extendido à física, o problema permanece relevante no debate atual sobre o realismo e o instrumentalismo científico.

...

*Excêntricos eram órbitas circulares (de planetas ou epiciclos) cujo centro não coincidia com a Terra e epiciclos eram órbitas circulares cujo centro residia em uma órbita circular em torno da Terra.

Vídeos ilustrativos que apresentam o funcionamento dos epiciclos e dos excêntricos:




segunda-feira, 3 de maio de 2010

O simbolismo mitológico indiano e o Absoluto metafísico






"A filosofia e a ortodoxia hindu esclarecida são fundamentalmente monistas e monoteístas, apesar das multidões de deuses e seres supra-humanos em que é prolífica a mitologia no país. As múltiplas representações são apenas especializações, virtudes específicas, atitudes, componentes, facetas.Olhados sob o ponto de vista da própria divindade (...), os aspectos da existência que nos parecem contraditórios - criação, duração, dissolução - são apenas um e o mesmo em termos de origem e significado final.(...) A compreensão dessa unidade é o objetivo da sabedoria hindu."

HEINRICH ZIMMER, Mitos e Símbolos na Arte e Civilização da Índia, pag. 113


O simbolismo de Vishnu deitado sobre Ananta, a serpente de mil cabeças, é sublimemente rico. É, no seu sentido mais profundo, uma tradução simbólica e mitológica das mais altas verdades metafísicas da filosofia e da religião hindu.

Vishnu representa o Absoluto, Brahman, imanente e transcendente. Imanente porque se revela em todas as coisas e transcendente porque nada pode esgotá-lo. Podemos dizer que o vaso é de barro, mas o vaso é uma forma cambiante de uma matéria, o barro, que permanecerá e assumirá outra forma.

Desse modo, o vaso é barro, mas o barro não é só um vaso. Ele transcende essa configuração particular e transitória, tem em si mesmo inúmeras outras possibilidades ainda não atualizadas.

De modo análogo, o que sou hoje é a atualização daquilo que tinha em potência. Contudo, cada homem "é" sempre mais do que é num momento determinado. Ele "é" também tudo aquilo que tem potência para ser e que talvez um dia possa atualizar.

Vishnu, na figura do Absoluto, engloba todo o cenário em torno. Ele é Ananta, é o oceano, é Lakshmi, sua esposa que acaricia seus pés e também Brahma, o demiúrgico deus que nasce de seu umbigo. Todos não são mais que emanações, aspectos de uma só e mesma realidade, distintos somente por uma função no teatro cósmico universal.

Vishnu deitado siimboliza também o aspecto masculino, produtor que se une ao aspecto passivo da infinita possibilidade, feminina e passiva, representada pelo oceano, pela infinitude de Ananta e pela divina esposa Lakshimi.

Da infinitude potencial, maternal e uterina das águas do oceano, Vishnu como poder masculino formador faz brotar Brahma, o deus criador do universo manifestado. Ele vem montado numa flor de lótus e tem quatro rostos representando as quatro eras da manifestação. Após o fim dessas eras, o todo retorna de novo à fonte para, depois de gestado como uma criança, retornar em novo ciclo.

Mas se da infinita potencialidade do oceano nasce o mundo manifestado, nama-rupa, este não esgota o Absoluto. Como ensinam os Upanisads, o que sobra do infinito é sempre infinito e Ananta, a serpente de mil cabeças, representa também o infinito que ainda "sobra" após a manifestação.

As representações artísticas, em que deuses, como Vishnu e Shiva, assumem o papel do Absoluto, têm missão didática, de apoio à meditação, de veículo de sabedoria metafísica por meios mitológicos. E mesmo quando diante de trindades, como a Trimurti, os deuses não são mais que aspectos de uma só e mesma realidade absoluta.

Visnu é o aspecto mantenedor, Brahma o criador e manifestador e Shiva é o destruidor. Três aspectos do Absoluto que, por vezes identificado simbolicamente a Vishnu ou Shiva, engloba os três numa unidade transcendente à qualquer determinação.

Brahman, a realidade subjacente e impessoal, está para além de qualquer determinação e é a fonte última de tudo quanto há, dos deuses, homens, animais, demônios, vegetais e tudo quanto já se manifestou, se manifesta agora ou venha a se manifestar em algum momento.

Brahman é Purusha, o homem universal e primevo, de cujo sacrifício tudo provêm, a respeito do qual se diz no Rig Veda: "[Este] homem (Purusha) é o universo inteiro/o que foi e o que ainda vai ser."

Purusha significa homem (macho, não espécie) e seu significado simbólico e filosófico é multifacetado e tem conotações diferentes, embora análogas, em diversas tradições dentro da Índia, inclusive aquelas não-védicas, como o Shankhya.

No caso, o Absoluto é um homem porque nele todas as coisas são um mesmo organismo, os órgãos são subordinados, hierarquizados e têm funções específicas. Essas partes são o organismo, mas este não é a simples soma quantitativa das partes. O homem transcende qualitativamente as partes e estas são como que virtualizadas quando se toma o homem como um todo.

Brahman é sempre mais do que se pode seguramente expressar. Os limites do símbolo não são os da coisa simbolizada e não se pode permitir que induzam ao erro. O Absoluto não é um homem, não é algo, nem tampouco é nada. É a infinita possibilidade de determinações.

Não é "algo", não tem fronteiras intrínsecas ou é limitado por "outro". Portanto, não pode ser distinto de nada. Como dito nos Upanisads, "é o Um-sem-segundo".

É o infinito, o que não tem "ser" porque não tem forma, limites, Eidos, mas que é a condição de possibilidade da determinação e de todo e qualquer ser determinado que, por conseqüência, é limitado, finito e transitório.

Brahman não é isso ou aquilo (neti neti), pois nada do que é manifestado pode identificar-se plenamente com Ele, assim como o vaso de barro não é o barro, que o transcende e o torna possível.

Assim sendo, é necessário que aquele que se aproxima das imagens artísticas e dos contos mitológicos dos deuses indianos tenha em mente que a realidade para a qual eles apontam e à qual eles prestam verdadeiro culto ultrapassa de muito os nomes e as formas, ainda que estas sejam aquelas dos deuses.

Om Shanti Shanti Shanti!

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