"Quando se trata de coisas sublunares, nós nos contentamos em tomar em conta aquilo que produz na maior parte dos casos, por causa da instabilidade da matéria que as forma. Quando, por outro lado, queremos conhecer as coisas celestes, usamos o sentimento, e fazemos apelo a uma multidão de artifícios muito distantes de toda verossimilhança. Portanto,nós que estamos colocados, como se diz, no lugar mais baixo do universo, devemos nos contentar com a aproximação de cada uma dessas coisas. Que tal é o caso torna-se manifesto pelas descobertas que se fazem sobre as coisas celestes; pois de diferentes hipóteses tiram-se as mesmas conclusões relativas aos mesmos objetos; entre essas hipóteses, existem as que salvam os fenômenos por meio de epiciclos, outras por meio de excêntricos, outras por meio de esferas desprovidas de astros e girando em sentido inverso.
Os deuses, certamente, possuem um julgamento mais seguro; mas, quanto a nós, precisamos contentar-nos em atingir apenas a aproximação dessas coisas; pois somos homens...de modo que falamos de acordo com o que é verossímil e os discursos que fazemos assemelham-se a fábulas."
PROCLUS DIADOCHUS, Comentário ao Timeu de Platão
A doutrina do filósofo neoplatônico Proclus Diadochus (412-485 D.C.) aqui transcrita é rica em lições sobre a ciência antiga. Em primeiro lugar, Proclus afirma a divisão entre o mundo supralunar e sublunar já postulada por Aristóteles e, seguindo as linhas mestras do mestre de Estagira, declara que o conhecimento das coisas sublunares se dá pela maior parte dos casos por causa da instabilidade da matéria (hylê), que por vezes resiste à Forma (eidos).
Logo depois, trata das coisas supralunares, asseverando que elas não são são conhecidas por sua natureza (afasta-se aqui de Aristóteles), mas somente por aproximação. Mas a que tipo de aproximações Proclus se refere? Àquelas já tratadas por Hipparchus, Theon de Smyrna e Ptolomeu: as descrições matemáticas do movimento observado dos corpos celestes.
É preciso lembrar aqui que, como Pierre Duhem ensina, a astronomia era a única das ciências antigas que havia alcançado o "grau de aperfeiçoamento em que a linguagem matemática serve para exprimir as leis descobertas por experiências precisas". Entretanto, esse gênero de ciência tem seus limites e Proclus sabe que de diversas hipóteses as mesmas conclusões podem se seguir.
Ao invés de provar uma asserção através da demonstração de sua derivação lógica de princípios evidentes, como na Física aristotélica, a astronomia matemática só podia criar hipóteses cujas conseqüências fossem adequadas aos movimentos observáveis dos astros. Assim sendo, os epiciclos e excêntricos, hipóteses igualmente adequadas ao que se observava nos céus (como já havia demonstrado Hipparchus), só poderiam salvar os fenômenos e nunca provar algo sobre a natureza dos movimentos celestes.
Essa doutrina será passada à frente por outro filósofo neoplatônico, Simplicius, e chegará à Europa medieval através de seus comentários a Aristóteles, influenciando até mesmo Tomás de Aquino.
Contudo, o século XVII abolirá a divisão das esferas e aplicará a matemática até então reservada ao estudo astronômico dos corpos celestes a todo o mundo sublunar, iniciando assim a Revolução Científica. Para muitos, com essa extraordinária mudança, a física moderna herda a questão levantada por Hipparchus, Proclus e Simplicius acerca da verdade das hipóteses de cunho matemático.