"Conforme a fórmula bramânica, a dialética do universo é uma manifestação de um princípio não-dual, além de todo dual, porém imanente, que produz o mundo de nomes e formas (namarupa) e o habita como seu princípio animador. O dualismo da natura naturans (prakrti) e a imaterial mônada transcendente (purusa) fica deste modo transcendido."
HEINRICH ZIMMER, Philosophies of India
Toda religião ou doutrina metafísica tem como seu objetivo primordial revelar a verdadeira natureza das coisas e, por conseguinte, a verdadeira natureza do homem. Na Índia, essa revelação se dá pelo conhecimento de uma oposição essencial (a qual já apontei em outros posts) entre o determinado e o indeterminado.
Poder-se-ia dizer que a característica essencial da metafísica indiana é a discriminação (viveka) entre namarupa e nirguna. Tudo o que as doutrinas religiosas indianas ensinam, do Jainismo e do Sankhya até os Upanishads e o Vedanta, é a discriminação entre o fluxo incessante do mundo fenomênico de seres discretos atuantes no tempo e no espaço e a natureza real, imutável, inativa, eterna e, principalmente, sem qualidades.
A discriminação indiana não passa , como a ocidental, por uma divisão entre alma e corpo, ou mente e corpo. Tanto os fenômenos mentais e internos quanto os fenômenos corporais externos estão incluídos num mesmo reino. A metafísica indiana essencialmente discrimina entre namarupa, o mundo de nomes e formas determinadas e finitas e nirguna, o que não tem características, o indeterminado, o infinito.
Na antiga doutrina dualista e realista pré-ariana do Sankhya-Yoga, o mundo do nome e das formas é prakrti que é posto em movimento, desde sempre, pela presença inativa de purusa de forma análoga à grama que cresce pela ação indireta do Sol. Como o indólogo alemão Heinrich Zimmer afirmava, de purusa " nada pode ser dito (além da declaração de que ela é), exceto em termos negativos: não tem atributos, qualidades, partes, movimento; é imperecível, inativa e impassível; não é afetada por dores nem por prazeres, carece de emoções e sentimentos, é completamente indiferente às sensações. Está fora das categorias do mundo."
Ela é nirguna, sem determinações ou qualidades. Na filosofia vedantina ortodoxa, pregada pelo grande Sankaracarya, o adjetivo nirguna será aplicado a Brahman, a realidade subjacente não-dual e imanifestada que se revela e se esconde em cada manifestação fenomênica. Tudo o que é é Brahman, mas Brahman não é nenhuma das coisas em particular e nem a soma delas. É transcendente no sentido de que nada do que há o esgota e imanente no sentido de que cada coisa, sem exceção, manifesta-o.
Brahman Nirguna é o substrato de todas as coisas do qual nada se pode dizer, pois a linguagem dual do mundo das formas e nomes (namarupa) não é capaz de descrevê-lo. A tentação é chamá-lo de nada. Mas não um nada privativo e negativo, de ausência que qualquer coisa. Mas um nada que, como possibilidade última de toda e qualquer manifestação, é seu pressuposto. É o que, por ser imanifestado, torna possível a manifestação e, por conseguinte, não pode ser descrito ou esgotado por nenhum meio próprio ao que é manifestado.
Na filosofia Vedanta, no entanto, o dualismo Sankhya, que afirmava uma diferença ontológica real entre purusa e prakrti, é deixado para trás pela concepção na qual Brahman Nirguna não é ontologicamente diferente do mundo das formas e dos nomes (namarupa). Ele simplesmente é o barro do qual o vaso é a modificação. É a corda que, por engano e por ilusão (Maya), é vista como uma cobra.
Tat tvam asi. Tu és isso. Cada ser que observamos no exterior assim como nosso corpo e nossa realidade psíquica interior são manifestações desse princípio infinito e impessoal a que nenhuma vicissitude atinge.
Brahman é lótus florescendo.
Um comentário:
Fiz bem em vender esse livro pra você. É uma das poucas benesses em ter sido livreiro. As outras estão, é claro, contidas nos fatos de ter sido livreiro.
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