domingo, 25 de agosto de 2024

Corpus Hermeticum, o manifestado e o Deus Imanifestado (parte 1)


"Foi criado um ser vivo visível, abarcando dentro de si aquelas criaturas visíveis. Foi criado como um deus visível, feito à semelhança do deus inteligível. Este nosso cosmos é singular, o único do tipo. Não há maior ou melhor, nenhum mais belo, nenhum mais perfeito."

PLATÃO, Timeu, 92c

O Corpus Hermeticum é uma coleção de dezoito discursos em grego que faz parte de uma pletora mais ampla de textos afins a qual ficou conhecida posteriormente como Hermetica. Os libelli que formam o Corpus remontam aos primeiros séculos da era cristã, e foram atribuídos a Hermes Trismegistos (Ἑρμῆς ὁ Τρισμέγιστος, o "Hermes Triplamente Grande"), figura mítica que combina em si aspectos do deus grego Hermes, o mensageiro divino e psicopompo e de Thoth, divindade egípcia da sabedoria, da escrita, da magia e do julgamento. 

A influência do hermetismo, enquanto tradição filosófico-religiosa, se fez sentir na alquimia, na magia, no neoplatonismo, e mesmo no cristianismo. Preservados pelos mil anos do Império Romano do Oriente, enquanto a Europa ocidental vivia a chamada Idade Média, os discursos herméticos foram traduzidos ao latim somente em 1463 pelo padre católico, filósofo neoplatônico e mago Marsilio Ficino, a pedido de Cosimo de Medici, antes mesmo que completasse a tradução dos diálogos platônicos. 

A grande historiadora Frances Yates, em seu Giordano Bruno and the Hermetic Tradition, mostra que o projeto de restauração religiosa de Giordano Bruno estava centrado em concepções greco-egípcias de uma prisca theologia contida nos escritos herméticos, os quais considerava serem mais antigos que a lei mosaica. Porém, em 1614, o filólogo e classicista Isaac Casaubon determinou que a data de composição do Corpus Hermeticum estaria entre os séculos III e IV da era cristã. Não obstante, o hermetismo permaneceu sendo uma das principais fontes (se não a principal) do esoterismo ocidental.

No artigo La Tradition Hermétique, publicado em 1931 na revista Le Voile d'Isis, René Guénon esclarece que o hermetismo é um conhecimento de ordem estritamente cosmológica, não da ordem metafísica pura. Portanto, não representa uma doutrina tradicional completa, mas sim um ponto de vista secundário e contingente de aplicação dos princípios metafísicos ao "mundo intermediário". No ano seguinte, na mesma revista, em artigo intitulado Hermès, Guénon reitera seu juízo sobre o hermetismo, acrescentando que

"De todo modo, deve ser bem entendido que não quisemos de forma alguma depreciar as ciências tradicionais que são da alçada do hermetismo, nem aquelas que lhes correspondem em outras formas doutrinais no Oriente e no Ocidente. Todavia, é necessário saber colocar cada coisa em seu lugar, e tais ciências, como todo conhecimento especializado, são somente secundárias e derivadas com relação aos princípios, dos quais não são mais que a sua aplicação a uma ordem inferior de realidade." (tradução minha do original em francês)

O próprio caduceu (κηρύκειον, "kerykeion"), o "cajado do arauto", que a tradição grega atribui a Hermes, simboliza o âmbito do hermetismo: duas serpentes (ou uma única serpente com duas cabeças) que se enrolam em espiral em uma bastão, e cujas cabeças se encaram mutualmente. O bastão vertical representa o Axis Mundi, o "Eixo do Mundo", que unifica e fundamenta todos os níveis da realidade, da Terra ao Céu. As duas serpentes que se encaram horizontalmente representam as dualidades e a manifestação dos diversos estados do Ser que são reunidos pelo "Eixo do Mundo".

Hermes, o Mercúrio romano, é uma divindade do intermediário. Na Grécia antiga, as estradas eram pontuadas por hermas (ἕρμα), pilares de pedra encimadas por cabeças esculpidas de Hermes e com um pênis na parte inferior, onde os gregos faziam libações e oferendas. O deus grego era o protetor dos arautos, dos ladrões, dos viajantes e dos comerciantes*, aqueles cujas atividades se dão na estrada, o medium que separa e une a um só tempo.  No canto XXIV da Ilíada, Hermes guia e protege o incognito rei troiano Príamo na sua rota até à tenda de Aquiles, a quem implorará a devolução do corpo de seu filho, o herói Heitor. 

O condutor realiza a união entre pontos distanciados, é um intermediário que possui a arte (τέχνη) da orientação não somente no espaço, mas também entre domínios da realidade. Hermes Chtonico é o psicopompo, o guia das psychai, invocado ao fim do terceiro dia da festa dionisíaca da Anthesteria para reconduzir os mortos que haviam entrado na cidade de Atenas aos campos de asfódelos no Hades, tal como narrado por Homero no canto XXIV da Odisséia:

"E o Auxiliador, Hermes, levou-as por caminhos bolorentos; chegaram às correntes do Oceano e ao rochedo branco; passaram além dos portões do Sol e da terra dos sonhos e chegaram rapidamente às pradarias de asfódelo, onde moram as almas, fantasmas dos que morreram." (tradução de Frederico Lourenço)

O caráter intermediário do hermetismo fica claro na doutrina da correspondência entre o microcosmo e o macrocosmo da Tabula Smaragdina: "quod est superius est sicut quod est inferius, et quod est inferius est sicut quod est superius". O que está em cima é como o que está embaixo, e vice-versa. Existe uma simpatia (συμπάθεια, tema caro aos neoplatônicos)** que une todos os níveis do Cosmos, o deuteros theos (δεύτερος θεός, o "segundo deus"). Sejam eles simbólicos, cósmicos ou ontológicos, os vínculos que unem todas as coisas permitem que se passe de um nível a outro da realidade, desde que as transposições adequadas sejam feitas.

No Corpus Hermeticum, o quinto libellus de Hermes a seu filho Tat esclarece o aparente paradoxo de "Que Deus imanifesto é o mais manifesto". Trata-se de um discurso iniciático acerca do melhor dos nomes, que é Deus, e constitui-se numa ascensão ontológica que vai do manifestado ao imanifestado. O que é para muitos o imanifesto (ἀφανής, "invisível", "oculto"), vai se tornar para Tat o mais manifesto.***

Na tradição hindu, o termo sânscrito prādurbhāva significa "aparecer", "vir-a-ser" ou ainda "manifestar-se", e é geralmente empregado para designar aquilo que está no mundo de nāmarūpa ("nome-forma"), isto é, no mundo das limitações (upādhi) e das condições que constituem os seres. Por conseguinte, Brahman, Incondicionado, "Um sem Segundo", a realidade absoluta e fundamental, é, par excellence, Imanifestado.

A maioria dos homens só consegue reconhecer o fenômeno (φαινόμενον, "aquilo que aparece"), o que pode ser testemunhado pelos sentidos. O fundamento da realidade visível, no entanto, é invisível. O orfismo atribuía a origem do mundo a Phanes (Φάνης), divindade nascida do "ovo cósmico", símbolo tradicional das potências cosmológicas enquanto ainda contidas no Princípio. Associado etimologicamente ao brilho e à luminosidade, Phanes simboliza a relação intrínseca entre o Cosmos e o visível. 

Hermes Trismegistos afirma que Deus é ἀφανής, imanifesto, invisível. Isto é, ao contrário de Phanes, o "primeiro nascido" (Πρωτογόνος), Deus não é cósmico. Tudo o que é manifestado é engendrado, tem uma origem (genesis, Γένεσις), não existe desde sempre. Vir-a-ser, manifestar-se, implica ser engendrado, significa não existir desde sempre. "Pois não existiria sempre se não fosse imanifesto". A eternidade ou atemporalidade de Deus o distingue essencialmente das coisas manifestadas. O Cosmos é visível, e só comporta entes engendrados, temporais.

Note-se que já no Timeu de Platão são postulados dois axiomas fundamentais para a construção do Cosmos"o que sempre é, e nunca vem a ser" e "o que vem a ser, e nunca é". O primeiro refere-se àquilo que possui absoluta estabilidade ontológica, e que, portanto, nunca passa por qualquer mudança. Em particular, não "vem a ser", não é gerado, engendrado em algum tempo.

O segundo axioma refere-se àquilo que "vem a ser", que é gerado, engendrado em algum tempo, e que, por isso mesmo, não possui estabilidade ontológica. Algo assim nunca é, nunca existe realmente, dado que não era, veio a ser, e depois deixará de ser. O que "é sempre" é conhecido pelo intelecto, enquanto o que "vem a ser" é conhecido pela sensação. Em suma, o sensível, visível, o temporal, tem a sua tênue realidade ancorada ontologicamente no inteligível, no invisível, no atemporal.

Hermes Trismegisto prossegue dizendo sobre Deus que "sendo ele imanifesto, faz todas as outras coisas manifestas". Princípio, é o fundamento das coisas limitadas e condicionadas justamente por não estar submetido às limitações e às condições dos seres por Ele originados. A afirmação seguinte, "como sempre existe, ele não é manifestado pelas coisas manifestas", parece negar o que foi prometido no início do discurso, a saber, que o imanifestado se tornaria a Tat o mais manifesto. A explicação para essa passagem é que as coisas não manifestam Deus tal como Ele é, fora de qualquer relação com elas.

As coisas são como lentes que permitem que o invisível seja visto, mas que "distorcem" em alguma medida aquilo que é visto. Se, por um lado, um objeto postado à longa distância só pode ser visto graças ao poder das lentes de um binóculo, por outro lado, aquele que vê o objeto deve descontar o efeito das lentes para fazer um juízo adequado da situação e não crer que o objeto esteja realmente próximo. As coisas revelam Deus na medida de suas capacidades. As suas limitações intrínsecas não devem ser atribuídas a Ele. 

Sendo atemporal, Deus não é manifestado pelas coisas temporais. A razão ontológica disso é que a manifestação, o engendramento, é o modo de aparecimento próprio dos entes. O ilimitado não se manifesta enquanto ilimitado. Se o fizesse, tornar-se-ia limitado, o que é absurdo. O modo de "aparecimento" de Deus é o "desaparecimento" dos entes. Enquanto estes não são abstraídos, ultrapassados, nenhum conhecimento de Deus é possível. 

"Pois a aparência sensível é somente dos engendrados. Por isso, nada mais é o engendramento do que a aparência sensível". O discurso hermético estabelece a implicação mútua entre ser sensível e ser gerado. É sempre sensível o ente que não existia e passa a existir (pela ação causal de outro ente que já existe). "E o inengendrado, plenamente e inaparente e imanifesto é Um". Deus é mónos (μόνος, "único", "sozinho", "desacompanhado"), não como indivíduo (ser numericamente distinto dos outros seres), mas como Princípio de todas as coisas.

Contrastando com a unicidade divina, as coisas sensíveis são múltiplas, e se manifestam em todas as coisas. Hermes Trismegisto exorta seu filho a orar ao Senhor (κύριος) e Pai (πατήρ), pois um só raio que seja lançado por Ele no pensamento de Tat em resposta à sua petição pode fazê-lo compreender tão grande Deus. "Pois somente a intelecção, e como sendo ela imanifesta, vê o imanifesto". Na filosofia grega, platônica ou aristotélica, a intelecção ("nóesis", νόησις) capta a Forma (εἶδος, no sentido de "padrão", "essência") das coisas individuais que são percebidas pela sensação (αἴσθησῐς, "aísthēsis"). 

O intelecto (νοῦς,"nous") é, ao mesmo tempo, o atributo que define o ser humano e a sua parte mais divina. É por meio dele que o homem possui ciência (ἐπιστήμη,"epistēmē") daquilo que é mais fundamental e universal nas coisas, e, portanto, mais verdadeiro e mais real. Os sentidos só percebem o sensível, o múltiplo. O intelecto apreende aquilo que, não sendo sensível, unifica e causa os entes sensíveis. Subindo na cadeia das causas dos entes, Deus é a causa universal de tudo o que há e pode haver.

Nos discursos anteriores do Corpus Hermeticum, Deus é repetidamente denominado Nous. Ele é o intelecto que produz todas as coisas, e o ser humano, dotado de nous é capaz de apreendê-Lo. O que está em cima é como o que está embaixo. O intelecto divino é refletido no homem como um objeto é refletido no espelho. A imagem guarda semelhançaembora nunca seja o objeto na sua inteireza. nous humano é o Nous divino refletido no espelho das condições que definem o tipo de ser que é o homem.

"Se puderes, ele se manifestará aos olhos da mente, ó Tat". Caso seu intelecto seja forte o suficiente, preparado para isso, o Nous vai se revelar ao nous de Tat. "Pois o Senhor é livre para se manifestar através de todo o mundo". O termo grego "aphthónos"(ἄφθονος)que é traduzido aqui como "livre", é o antônimo de "phthónos" (φθονος,"ciúme" ou "inveja"), pode ser traduzido também por "liberalidade" ou "generosidade". 

No Timeu, o mesmo termo ἄφθονος é atribuído ao Demiurgo (δημιουργός, "artífice"), o criador do mundoA intenção era opor a "generosidade" (generoso é quem gera, genesis) do Demiurgo ao temido "ciúme" das divindades tradicionais. Na religião grega, o homem cuja vida fosse excepcionalmente feliz atrairia a "inveja" dos deuses, que o castigariam com a desgraça. O Nous é isento de mesquinhez, e gera todas as coisas sem reservas.

"Podes ver a intelecção e receber com as próprias mãos, e contemplar a imagem de Deus?". O conhecimento adequado de Deus não se dá pelos sentidos e nem pela imaginação (φαντασία, "phantasia", "fantasia"), que só pode combinar e recombinar os dados sensíveis guardados pela memória. A imagem (εἰκών, "ícone") que é objeto de contemplação (θεωρία, "theoria") não é sensível e nem imaginativa. 

"Porém, o imanifesto está em ti e por ti". O Nous está em Tat. "Como, o si mesmo em ti mesmo, através dos olhos, será manifestado a ti?" De que modo é possível reconhecer o imanifestado naquilo que é manifestado é a questão a que vai se dedicar na sequência o quinto discurso de Hermes Trismegisto.

(continuará na parte 2)

...

* Note-se que o comerciante é um intermediador entre o que é produzido e o consumidor.

** A simpatia, por sinal, é o fundamento da magia segundo Plotino nas Enéadas.

*** Sigo basicamente a excelente edição bilíngue do Corpus Hermeticum Graecum do Prof. David Pessoa de Lira, publicada em 2023 pela editora Cultrix. Consultei também a tradução inglesa de Clement Salaman, Dorine van Oyen, William D. Wharton e Jean-Pierre Mahé, intitulada The Way of Hermes, de 1999.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

As armas, os livros e os limites da realidade

                    Ilustração de Jörg Breu para o Fechtbucher (1540) de Paulus Hector Mair
                                         
"A espada é a mente. Estude a mente para conhecer a espada. Mente maligna, espada maligna."

TORANOSUKE SHIMADA, "Dai-bosatsu Tōge", 1966

A pergunta “você prefere armas ou livros?” é constante nos debates públicos. A depender de sua resposta, o questionado é alocado na classe dos bons ou na classe dos maus. Se há algo que parece caracterizar os tempos atuais é certo infantilismo intelectual, uma recusa persistente a enxergar as complexidades e os limites intrínsecos da realidade em nome de slogans ou de chavões reconfortantes que têm por objetivo primário atuar como sinais externos e rasos de pertencimento a determinados grupos considerados a priori como representantes inequívocos da moralidade e da civilização.

A vida ética se constitui pela contínua atividade tentativa de identificar nas situações concretas quais são as ações mais adequadas para realizar o bem, para preservá-lo, ou, ao menos, para diminuir o mal, levando em conta para isso todas as circunstâncias e informações relevantes em cada caso. Optar abstratamente pelas “armas” ou pelos “livros” está longe de ser suficiente para determinar o valor moral de alguém.

First things first. Em termos lógicos, é óbvio que a escolha “armas ou livros”, do modo como é colocada, é um exemplo claro da falácia da falsa disjunção. A falácia consiste em apresentar uma disjunção como se as opções em jogo fossem as únicas e necessariamente incompatíveis entre si. No caso em questão, não há absolutamente nada em “armas” e em “livros” que os tornem completamente irreconciliáveis. Não há impedimento lógico de compor uma conjunção do tipo “armas e livros”.

O debate já se inicia utilizando uma falácia para que o interlocutor seja obrigado a escolher somente um dos lados. A desonestidade intelectual está no modo mesmo como a pergunta é formulada. Mas não é só isso. O segundo aspecto de desonestidade reside no fato de que a disjunção é formada por termos puramente abstratos. O que significaria optar por “livros” ou por “armas” abstratamente é algo que escapa à compreensão de qualquer pessoa racional.

No mínimo, a pergunta deveria ser acompanhada por um complemento como “na situação X” ou “para alcançar o objetivo Y”. Jogadas ao ar como se elas significassem algo fora de quaisquer circunstâncias, as duas opções não dizem rigorosamente nada. “Em uma guerra, o senhor prefere estar de posse de uma arma ou de um livro?” Esta é uma indagação com sentido. Sem esse tipo de complemento, “armas” e “livros” flutuam no ar como pássaros no céu.

Entretanto, é preciso reconhecer que “armas ou livros?” adquire um arremedo de sentido por conta de algumas premissas ocultas. A pergunta talvez pudesse ser traduzida em termos de “você é uma má pessoa, um ogro violento e inculto, ou você é uma pessoa boa e esclarecida que acredita na superioridade ética do trabalho intelectual?” A indagação ganha contornos de uma verdadeira coação moral: “veja lá se você vai responder corretamente, disso depende sua aprovação ou desaprovação no grupo”. A única resposta possível é estar de acordo com algumas categorias éticas muito genéricas que são aprovadas pelos “esclarecidos” ou pelos "ungidos", segundo o termo empregado por Thomas Sowell.

Tudo isso não resiste a um exame racional mais detido. Os termos “arma” e “livro” designam objetos da realidade criados pelo homem para certos objetivos. Os livros são veículos de informações impressas e as armas são instrumentos potencialmente letais de defesa ou de ataque. Enquanto tais, não são intrinsecamente bons ou maus. A idolatria dos livros e a demonização das armas são exemplos inequívocos da simplificação infantil da realidade.

Poucos fenômenos são tão constrangedores nos debates do que os suspiros de elevação celestial com que certos interlocutores reagem à mera menção a livros. É como se estivessem diante da mais sacrossanta e pura das realidades divinas. Assinale-se, en passant, que frequentemente o elogio exaltado dos livros está em relação proporcional inversa à efetiva leitura dos mesmos.

O livro tornou-se um fetiche socialmente aceito e incentivado. As ofensas (e as falácias) mais frequentes em discussões públicas ou privadas são aquelas que pretendem imputar ao interlocutor o grave crime de não ser muito chegado à leitura. “Vá estudar!” é a pretensa reductio ad absurdum dos acalorados debates atuais. Em outros termos, a ordem significa que “eu li muito, e gosto de ler, portanto sei mais do que você que não lê nada.”

O fetiche vai tão longe que adquire contornos soteriológicos. O livro vai salvar o mundo, e tornar a todos bons cidadãos. O livro teria um efeito mágico benéfico a despeito de seu conteúdo objetivo. Todos já ouviram a afirmação de que se deve ler qualquer coisa, o que cair nas suas mãos, pois o importante é ler e adquirir o famoso hábito da leitura. Todo esse culto irracional do valor intrínseco do livro deixa de ver o óbvio: não existe o livro in abstracto.

Às vezes é necessário lembrar às pessoas que o Mein Kampf é um livro. Há algum efeito mágico positivo naquelas odientas e mal escritas páginas? Ninguém imagina que ao optar pelo “livro” esteja optando também pelo Mein Kampf. Por isso não faz sentido exaltar o “livro” em abstrato. Na realidade, há sempre livros com conteúdos determinados. Eles podem ser considerados bons ou maus de acordo com o que veiculam. Nada mais óbvio.

Algo semelhante se dá com as armas. Elas não são más em si mesmas como se pretende muitas vezes. Mau ou bom, justo ou injusto, é aquele que empunha a arma. É um erro categorial básico atribuir intenções morais a um objeto inanimado. Dirão certamente que a arma é feita para matar. Nem sempre. Em boa parte dos casos, as armas têm o efeito de dissuasão. A razão pela qual os países bandoleiros não invadem seus vizinhos é o receio de enfrentar reação armada do país invadido ou de seus vizinhos. Não é preciso dizer que o mesmo cálculo informa a mente dos bandidos.

Por outro lado, quando usada, a arma não é sempre agressiva. Ela pode ser defensiva. Ninguém em sã consciência pode negar o direito à legítima defesa. E é mais do que evidente que o uso da arma nesses casos pode resultar na morte do agressor. Alguém pode alegar que a vítima da agressão também pode morrer. Sim, não existe segurança perfeita ou certeza de sucesso neste mundo. Contudo, uma chance é melhor do que nenhuma. It is what it is.

O importante é notar que a realidade possui mais nuances e sutilezas do que sugere a disjunção simplista entre armas e livros. Houve civilizações e sociedades sem livros, e mesmo sem escrita, mas jamais houve civilização ou sociedades sem armas. A ideia de que as armas serão um dia abolidas totalmente pela ação educadora dos livros é pura fantasia utópica. O mundo não é assim, e temos que adotar uma posição mais realista e mais adulta acerca desses temas.

Não há um pote de ouro no fim do arco-íris. Não há uma direção fantasmagórica na História, e nem um progresso moral necessário que desemboca no paradisíaco reino de Preste João. O mistério da consciência humana é insondável e avesso a qualquer tentativa determinística de amoldamento educacional. O que se pode fazer é apresentar a cada indivíduo o nosso patrimônio civilizacional acumulado, e torcer para que ele opte por aquilo que de melhor produziu o ser humano. É uma esperança apenas, não há garantias.

Outra forma da disjunção falaciosa entre armas e livros se apresenta como uma suposta relação de proporção inversa: “mais livros, menos armas”. Se a quantidade de livros for maior, a quantidade de armas será menor. De novo, não há qualquer relação lógica necessária que ampare essa relação. Colocada nesses termos, trata-se ou de um sofisma puro e simples ou, na melhor das hipóteses, de wishful thinking.

Curiosamente, desde Gutenberg até nossos dias, não parece ter havido nenhuma diminuição digna de nota em termos de guerras, massacres, revoluções sangrentas, genocídios, opressão e violência armada em geral. Se tomarmos só o século XX, nunca houve tantos livros em circulação, e isso não impediu que as guerras mais mortíferas e os regimes mais sanguinários e genocidas acontecessem justamente nessa quadra histórica.

Quantos milhões não foram mortos por inspiração do Mein Kampf, do Manifesto do Partido Comunista ou do Livro Vermelho? Os citados acima são apenas alguns, mas a quantidade de exemplos de livros deletérios que direta ou indiretamente instigaram violência é incontável. Não foram as armas diretamente que mataram tantos, foram homens imbuídos por ideias contidas em livros. Seres humanos usam armas, não o contrário. Não se trata aqui tampouco de condenação dos livros. O busílis é desfazer o maniqueísmo de que livros são intrinsecamente bons e armas intrinsecamente más.

Ao fim e ao cabo, livros não defendem bibliotecas. Armas defendem bibliotecas. Só é possível manter bibliotecas e livrarias abertas pela razão necessária, mas não suficiente, de que há homens armados assegurando a ordem interna e defendendo a integridade territorial de forças hostis externas. Considere-se quem defendeu as bibliotecas monacais contra as investidas destruidoras dos vikings na Idade Média. Não foram eruditos citando Aristóteles.

A violência é um traço ineliminável da realidade. Ela pode ser contida ou diminuída, jamais extinta. Armas são necessárias para a preservação da cultura e da civilização. A Atenas de Sólon, Péricles, Sócrates e Platão foi também a Atenas de Maratona e de Salamina. Não é preciso optar por armas ou por livros. É preciso entender os lugares adequados de cada um desses entes dentro da vida humana tal como ela é.
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terça-feira, 13 de agosto de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulos VII e VIII)

"O singular é de per si incomunicável. Contudo, há comunicação entre os singulares, mas pelo que têm de universal, de comum. Toda coisa tem uma diferença individual e uma natureza universal. Se houvesse só a singularidade, não haveria assimilação, nem conhecimento."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p. 49

Qualquer ente atua, opera, segundo o seu eidos. Só pode realizar e sofrer aquilo que está contido na sua estrutura eidética, no tipo de ser que ele é. Qualquer cachorro pode realizar e sofrer tudo o que é permitido dentro da estrutura eidética dos cachorros. Voar não está inscrito nessa estrutura eidética, portanto cachorros não voam. Resumindo de uma forma negativa, ninguém dá aquilo que não tem.

Os seres concretos que nos cercam possuem também uma estrutura hilética, isto é, são constituídos por componentes materiais que são ordenados segundo a estrutura eidética, que, por sua vez, pode ser substancial (intrínseca nos seres naturais como o cachorro) ou acidental (extrínseca nos seres artificiais como o relógio). Entãopodemos pensar na estrutura eidética do cachorro fazendo abstração de todos os cachorros concretos, e nesse caso ela corresponderá puramente à espécie, ao gênero (no sentido ontológico, não biológico).

O cachorro concreto, por ser um compositum, um composto dessa estrutura eidética que ordena uma estrutura hilética, adquire uma realidade própria que é incomunicável a qualquer outro ser. Primordialmente, o cachorro difere de todos os outros seres (não é um ser humano, nem um gato, nem uma águia, etc.) por conta da estrutura eidética que determina/define o tipo de ser que ele é. Mas, além disso, todo cachorro é um cachorro, este cachorro hic et nunc, aqui agora, diferente de todos os outros cachorros que existem, existiram e existirão.

A estrutura eidética que pertence a todos os cães é individualizada, aqui e agora, neste cão concreto que possui características distintas de outros cães (cor, tamanho, etc.). Quando consideramos a estrutura eidética de todos os cães, ela é invariável. Quando consideramos a estrutura eidética concretizada nos cães individuais, ela adquire variabilidade. O meu cachorro é numérica e materialmente diferente do cachorro do meu vizinho, possui características individuais (temperamento, cor, tamanho, idade, etc.) e  sofreu, sofre e sofrerá mudanças (internas e externas) que o distinguiram, o distinguem e o distinguirão do cachorro do meu vizinho (e de todos os cães).

Analogamente, em um ente artificial, a estrutura eidética imposta à matéria é sempre formalmente idêntica e invariável. Um oleiro que faz vasos aplica na massa amorfa sobre a qual trabalha sempre a mesma forma (o vaso) que possui em sua mente. Todavia, ao realizar essa operação, o artista individualiza o eidos na matéria gerando assim vasos concretos que serão igualmente vasos na sua estrutura eidética, mas que diferirão uns dos outros numérica e materialmente. 

Este vaso aqui e agora é tão invariavelmente vaso quanto qualquer outro vaso, embora este possua características variadas que o distinguem dos outros. Por exemplo, a massa pode ser materialmente mais ou menos adequada para o vaso que o oleiro quer moldar, o que resulta em vasos que são melhores ou piores a depender do caso.  Mais ainda, cada vaso sofreu, sofre e sofrerá mudanças, sejam internas ou externas, que o distinguirão individualmente de todos os outros. Este vaso sofre uma queda e se quebra, aquele não sofre uma queda, mas é demasiadamente exposto ao Sol, adquirindo uma coloração diferente da original, etc.

A variabilidade pertence à estrutura eidética considerada in concreto, no compositum, naquilo que Aristóteles denominava sínolo (συνόλων, aproximadamente "todo unido" ou "todo ao mesmo tempo"). Mário Ferreira distingue uma estrutura eidética concreta (variável em cada ser considerado individualmente) do eidos (a estrutura eidética invariável quando abstraída dos seres concretos). Uma não pode ser confundida com a outra sob pena de não se compreender o que é dinâmico e o que é estático nos seres.

O cão não pode possuir ao mesmo tempo a estrutura eidética de um papagaio, e o armário não pode possuir a mesma estrutura eidética da cadeira. O que não significa que a matéria da qual o cachorro é feito não guarde potencialidades que poderiam se atualizar com outras formas. O cachorro morre, deixa de ser cachorro pela corrupção corporal, e seus componentes (físicos, químicos, etc.) servem de matéria para outros seres vivos (vermes, plantas, etc.). O armário pode ser desfeito, e suas partes serem reutilizadas na construção de cadeiras. 

Nem toda matéria é apta a realizar qualquer forma, há que haver proporcionalidade ou adequação entre ambas. Um transatlântico real não pode ser feito de papelão. Porém, toda matéria é apta a realizar alguma forma, inclusive algumas que não estão realizadas nela em um determinado tempo. É isso que permite as transformações que testemunhamos no mundo. A matéria que compõe um cão poderia compor outros seres vivos, e efetivamente vai compor outros seres vivos quando ele deixar de ser cão por conta da morte e da corrupção. A madeira do armário poderia compor outros artefatos, e efetivamente vai compô-los tão logo o armário seja desfeito e suas partes sejam reutilizadas para construir cadeiras.

A matéria recebe a estrutura eidética individuando-a, tornando-a este ou aquele. A humanidade, tomada mentalmente como universalidade, está presente inteira em cada ser humano, mas de modo individualizado, nos entes concretos João, Pedro, Maria, Paulo, etc. A humanidade nunca se manifesta concretamente enquanto humanidade, somente como estes ou aqueles indivíduos. Não haverá jamais no mundo "o vaso" (ou a "vasidade"), mas tão somente estes ou aqueles vasos.

O indivíduo, contudo, não é comunicável a outro. Pedro e João possuem individualmente tudo aquilo que é próprio da natureza humana (que é "comunicada" a eles ou "partilhada" por ambos). Pedro é tão humano quanto João, mas não existe uma "Pedreidade" que Pedro possa partilhar com João, e nem uma "Joanidade" que João possa comunicar à Pedro. O indivíduo, tomado na sua singularidade, não é compreensível em conceitos que englobam necessariamente outros indivíduos.

Este Pedro (nascido em tal local, em tal data, com aqueles pais, com tais e quais características físicas, etc.) é absolutamente único e irrepetível. Só podemos compreender Pedro naquilo que ele compartilha com muitos outros. Quando afirmamos que "Pedro é brasileiro", comunicamos seu pertencimento a um grupo humano específico: o brasileiro. Se dizemos que "Pedro é impaciente", comunicamos um aspecto psicológico que ele partilha com muitos outros seres humano: a impaciência. 

Ao nos referirmos a Pedro, somos capazes de apontar várias de suas características físicas, psicológicas, sociais, biográficas, etc. Apesar de todas essas informações darem alguma ideia de como é Pedro, jamais chegaremos a uma "Pedreidade" no sentido de uma essência que, em tese, poderia ser compartilhada por outros. Os indivíduos não são esquemas eidéticos presentes nas coisas concretas, e, por conseguinte, não podem ser compreendidos abstratamente pela inteligência como o são os esquemas eidético-noéticos.

Mário Ferreira explica que "o que faz que a unidade formal, que há no indivíduo, seja incomunicável, não se deve a ser formal, mas à sua individuação, o que pertence à onticidade. Onticamente é incomunicável, porque o comunicável é apenas segundo o aspecto formal, que é o aspecto repetível." 

Este Pedro é humano por que repete em si o mesmo padrão (a humanidade) presente em todos os seres humanos. Porém, este Pedro só é absolutamente idêntico a ele mesmo. Não há, e nem haverá, outro Pedro igual a este. Para que existissem concretamente dois "Pedros" seria necessário que houvesse alguma mínima diferença entre eles. Se não existe nada que diferencie Pedro dele mesmo, então não existe nada que possa ser abstraído deste Pedro e comunicado (ou aplicado, atribuído) a um suposto "outro Pedro". 

Nenhum indivíduo pode ser repetido em muitos. Somente o aspecto formal possui essa faculdade. A humanidade não é um indivíduo, dado que está presente nos indivíduos humanos. Se a humanidade fosse um indivíduo, ela seria numericamente distinta de Pedro e de João do mesmo modo que estes são numericamente distintos um do outro. Haveria três indivíduos em vez de dois: Pedro, João e a humanidade. Excluída a universalidade que os unia essencialmente, Pedro e João não seriam mais humanos. 

Dito de outro modo, em uma terminologia que o próprio Mário Ferreira não emprega, a realidade comporta condicionantes e condicionados. condicionante é um estado que define as condições sob as quais um ente vai se manifestar concretamente. O condicionado é o ente concreto informado pelos condicionantes. A humanidade é um estado condicionante que reúne os atributos do que é um ser humano. Trata-se de um conjunto ordenado e permanente de camadas de limitação (que os hindus denominam Upādhi)

O estado condicionante não é este ou aquele ser individualmente. Ele é, façon de parler, o feixe de condições que torna possível que haja este ou aquele ser. Por exemplo, corporalidade é uma das condições implicadas na humanidade. Todo ser humano individual será, portanto, corporal. O erro fundamental daqueles que negam qualquer realidade às universalidades está em confundir o modo de ser dos condicionantes com o modo de ser dos condicionados: se Pedro e João são homens, então o que eles têm em comum (homem) será um "terceiro homem".

O modo de ser do estado condicionante tem que ser real para que o modo de ser do condicionado também possa sê-lo. O individual encontra o seu fundamento no universal. E se o fundamento é mais real do que aquilo que ele fundamenta, então, cremos, encontra-se aqui a positividade insuperável do platonismo. Em que pese o fato de que só existem concretamente os indivíduos, estes possuem seu fundamento em estados condicionantes cujo modo de ser, por definição, não está submetido às condições que impõem aos condicionados (os indivíduos).

Se negamos que a humanidade exista fora dos indivíduos humanos, daí não se segue que a humanidade seja irreal sob qualquer sentido. Certo, ela não existe individualmente como Pedro e João existem. Todavia, enquanto estado condicionante, a humanidade possibilita perpetuamente a existência desses indivíduos. O condicionado (o indivíduo) é o limite último, nec plus ultra, para além do qual não se pode descer. É o precipitado final que surge dos estados condicionantes.

Pedro, enquanto indivíduo, é incomunicável a outro. O individual é impartilhável, não pode ser transmitido inteiramente a um outro sem perder a sua individualidade. Posso partilhar um bolo com meus amigos, mas para isso tenho que dividí-lo, isto é, separá-lo em partes menores que o todo. O bolo perde a sua individualidade para ser partilhado. A humanidade não perde nada de si quando é "partilhada" em muitos indivíduos. Cada um destes será integralmente humano. Se a humanidade fosse um indivíduo, teria de ser dividida numericamente em Pedro e em João tal qual o bolo é dividido em porções a fim de ser distribuído aos convivas da festa.

Afirma Mário Ferreira que "o singular é o que é um em número; universal, o eidos do que é um". O ente concreto, encarado a partir de seu ser individual, de sua singularidade numérica, de sua heceidade (haecceitas, qualidade de ser "isto"), é incomunicável. Somente o universal é comunicável, sendo aquilo que o ente individual possui em comum com muitos. Negar a realidade do universal acarreta negar a possibilidade do conhecimento. O saber científico busca identificar o universal que explica os fenômenos singulares. 

Uma fórmula da Física, por exemplo, expressa matematicamente a relação que se apresenta em diversos casos de um mesmo tipo. Se negamos a realidade dos universais, não haverá jamais dois casos sobre os quais aplicar a mesma fórmula ("pequena forma"). Cada ente singular será completamente diferente de todos os outros, seus atributos sendo irredutíveis a qualquer comunidade. Serão ilhas incomunicáveis indizíveis. Como chamar dois entes de gatos se não há entre eles nada em comum?

Não obstante, nem sempre possuímos noeticamente (no intelecto) com precisão a estrutura eidética dos seres. Sabemos que gatos são diferentes de cachorros. Captamos as suas respectivas estruturas eidéticas, que são independentes de nossa mente. Não as produzimos ou as inventamos. Estão lá nos gatos e nos cachorros tornando-os o que eles são. Porém, nos referimos tentativamente ao quid ("o que é", quidditas) das coisas mesmo quando não conseguimos formular conceitos adequados para expressar as suas estruturas eidéticas.
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