"Os sistemas de filosofia da Índia não foram movidos meramente pelas demandas especulativas da mente humana que possui uma inclinação natural de se entregar ao pensamento abstrato, mas por um desejo profundo desejo pela realização do propósito religioso da vida. É surpreendente notar que os postulados, objetivos e condições para tal realização encontrados foram idênticos em todos os sistemas conflitantes. Quaisquer que fossem as suas diferenças de opinião em outros temas, no que se referia aos postulados para a realização do estado transcendente, o summum bonum da vida, todos os sistemas estavam praticamente em total concordância."
SURENDRANATH DASGUPTA, A History of Indian Philosophy, volume 1, p. 71
O grande scholar indiano Surendranath Dasgupta, no capítulo IV do primeiro volume de sua obra clássica A History of Indian Philosophy, realiza uma série de observações acerca dos sistemas de pensamento da filosofia indiana. A primeira observação que faz refere-se à dificuldade de se escrever mesmo uma história da filosofia indiana. No mundo ocidental, os filósofos se seguiram uns aos outros propondo suas especulações independentes, e os historiadores organizaram essas informações em ordem cronológica comentando as influências de uma escola de pensamento sobre as outras.
Tal não se dá na filosofia indiana pela escassez de fontes referentes às épocas nas quais os sistemas filosóficos nasceram. Essas escolas surgem quase imediatamente após a composição e organização do mais antigo dos Upaniṣads. Contudo, os tratados sistemáticos foram escritos em curtas sentenças (Sūtras) as quais não elaboram o seu tema em detalhe, mas servem como resumo para a memória das discussões sofisticadas que foram realizadas.
É difícil tanto saber a extensão do significados desses sutras tanto quanto se as discussões que eles suscitaram em épocas posteriores refletiam realmente as intenções de seus autores. Os sutras do Vedānta, por exemplo, os Brahma Sūtras, deram azo a mais de seis interpretações divergentes, cada uma, como era de se esperar, considerando a sua interpretação como a correta. O pertencimento a uma escola determinava uma atitude de conciliação de todo e qualquer pensamento novo com as doutrinas já estabelecidas.
"Ao invés de produzir uma sucessão de livres pensadores tendo seus próprios sistemas a propor e a estabelecer, a Índia produziu escolas de pupilos que sustentavam as visões tradicionais de sistemas particulares de geração a geração, que as explicavam e as expunham, e as defendiam dos ataques das escolas rivais as quais eles constantemente atacavam com o objetivo de estabelecer a superioridade do sistema ao qual aderiram."
Há uma tradição de comentários, não de inovações teóricas ou especulativas. A cada ataque de uma escola rival, um comentário aos sutras é feito, e estes são respondidos por outros comentários, e assim por diante. Até mesmo Śaṅkarācārya, a quem Dasgupta descreve como o "provavelmente o maior homem da Índia após o Buddha", limitou-se a compor comentários aos Brahma Sūtras, os Upaniṣads e ao Bhagavad Gītā. Os comentários, com o passar dos séculos, buscavam responder a questões e objeções que não haviam sido explicitamente pensadas nos escritos originais. E nesse processo, há o desenvolvimento das escolas nessa discussão contínua com as suas rivais.
Dasgupta afirma que uma história das sucessivas filosofias da Índia não é possível. Cada escola deve ser estudada e compreendida em seu desenvolvimento ao longo dos séculos. Os sutras são como um bebê recém-nascido, e seu desenvolvimento até à maturidade corresponde à história dos conflitos da escola com suas rivais por meio da tradição impessoal dos comentários dos pupilos. Nenhum estudo dos sistemas indianos é adequado enquanto não tiver como objeto o desenvolvimento inteiro realizado por seus abnegados aderentes e defensores que se dedicaram a compor os seus comentários.
O centro do espírito de investigação era que a essência final ou verdade última era o Ātman, sendo, portanto, a busca por ele nosso mais alto dever. Enquanto não nos imergirmos nele, permaneceremos insatisfeitos com qualquer outra coisa. O Ātman não é isso, não é aquilo (neti, neti). Dasgupta sugere que os sistemas filosóficos surgiram na época e em torno dos Upaniṣads, a partir de discussões elaboradas que eram resumidas nos sutras e passadas adiante pelos discípulos que, embora pudessem acrescentar ou mesmo suprimir certas porções recebidas, não faziam alterações que corrompessem a essência da doutrina da escola.
Os comentadores não expunham suas opiniões próprias ou suas inovações a não ser naqueles casos onde os mestres antigos não tivessem deixado nenhum ensinamento. Por isso, diz Dasgupta, é impossível entender as escolas indianas pelas contribuições individuais dos comentadores. É só no conjunto de seu desenvolvimento que se pode compreendê-las adequadamente. A literatura filosófica indiana é precipuamente uma literatura de disputas, de objeções e de respostas à objeções. Cada escola cresceu justamente no embate discursivo com as suas rivais, de tal modo que para compreender uma escola é preciso estudar todos os sistemas em suas oposições mútuas.
Os sistemas de filosofia indianos são divididos em duas categorias: Nāstika e Āstika. Os primeiros são sistemas que não aceitam a validade, a autoridade e a infalibilidade dos Vedas. Exemplos de sistemas Nāstika são o Budismo, o Jainismo e o Cārvāka. Āstika são as escolas ortodoxas, que aceitam os Vedas, e são seis em número: Sāṃkhya, Yoga, Vedānta, Mīmāṁsā, Nyāya, Vaiśeṣika. O Sāṃkhya é atribuído a Kapila, e o Yoga é atribuído a Patañjali, tendo como texto fundamental os Yoga Sūtras. O Purva Mīmāṁsā é um código de princípios sistematizado para a interpretação dos textos védicos para propósitos sacrificiais. O sistema Nyāya e o sistema Vaiśeṣika são geralmente encarados como uma unidade, embora os Nyāya Sutras sejam focados na lógica, e os Vaiśeṣika Sūtras tenham seu centro na física e na metafísica.
Last but not least, há o sistema Vedānta, cujos Brahma Sūtras foram compostos por Bādarāyaṇa. O termo Vedānta significa "fim dos Vedas", no sentido de realização, termo, encerramento. O Vedānta corresponde aos Upaniṣads, e os Brahma Sūtras correspondem a um sumário das visões gerais contidas nos Upaniṣads. O mais antigo comentário que chegou a nós é o do grande santo Śaṅkarācārya, cuja interpretação não-dualista, Advaita, foi contraposta por comentários de mestres dualistas como Rāmāṉuja, Madhvā, Baladeva, entre outros.*
Entretanto, é preciso recordar que não há um termo em sânscrito correspondente a "filósofo" no sentido técnico ocidental. Os termos siddha, Jñānin, ṛṣis não significam filósofos no sentido moderno e se referem antes aos "perfeitos", "sábios", e "videntes". Dasgupta não desenvolve mais detidamente esse tema, mas seria aqui necessário ponderar que, à luz da exposição acima e dos estudos clássicos em filosofia indiana conduzidos por outros scholars, não há na Índia exatamente a figura ocidental do filósofo.
Seria um grande erro, por exemplo, confundir os ṛṣis (rishis) que compuseram os Upaniṣads com filósofos que contrapunham suas teses às teses de outros pensadores operando no âmbito do discurso teorético como no caso dos pré-socráticos e de seus sucessores. Se não é possível descartar algum componente especulativo nos Upaniṣads, é, contudo, impossível reduzir seus ensinamentos a meras hipóteses sobre a constituição fundamental da Phýsis. Antes de tudo, os rishis são sábios, os que experimentaram a Realidade.
O grande santo e mestre advaita Adi Śaṅkarācārya, de indisputável ortodoxia, comentando o segundo verso da primeira parte dos Brahma Sūtras, expôe a razão da autoridade dos Upaniṣads: "É a experiência que tem peso, e as escrituras possuem autoridade porque são os registros da experiência das mentes mestres que estiveram face a face com a Realidade (Āptavākya). Essa é a razão pela qual as escrituras são infalíveis". A Realidade citada é Brahman, o "Um sem segundo", aquele sobre o qual nunca se fala afirmativamente, mas sempre negativamente: "neti, neti".
Apesar da diversidade das escolas, Dasgupta ressalta que há um conjunto de ensinamentos que são compartilhados unanimemente por todas elas, excetuando-se somente o materialismo Cārvāka. A primeira dessas doutrinas é o Karma e o renascimento. Todas as ações individuais deixam para trás uma certa potência que trará alegria ou sofrimento de acordo com a bondade ou maldade dessas ações. Se os frutos são tais que não possam ser colhidos nesta ou em uma outra vida humana, o indivíduo terá de renascer como homem ou como outro ser a fim de sofrer suas consequências.
Já no período védico havia a noção de que os atos sacrificiais tinham o poder invisível (Adṛṣṭa) ou inobservado (Apūrva) que realizaria a possessão do objeto desejado. Analogamente, as escolas ortodoxas acreditam que os frutos das ações levam tempo para se realizarem na forma de satisfação ou de sofrimento, e que seu acúmulo prepara tanto a dor quanto alegria da próxima vida do agente. Somente ações particularmente boas ou más têm seus frutos colhidos nesta vida.
Não há começo para as encarnações que são sucessivamente determinadas pelas ações nas vidas anteriores. Se as ações realizadas nesta vida humana exigem como seu fruto necessário o retorno como um animal, por exemplo, um homem pode retornar como um bode. Infinitas vidas em diversas modalidades deixam suas marcas a cada renascimento e possuem suas próprias consequências. Os frutos ainda não maduros para a realização podem ser interrompidos pelo conhecimento último, mas aqueles já maduros não são evitáveis nem para o homem liberto.
Entretanto, a doutrina do Mukti ou Mokṣa, a libertação final, ensina que o ciclo pode ter fim na medida em que o homem abandona as emoções, desejos e ideias que o conduzem à ação interessada, e encontra em si mesmo aquele Ātman desinteressado que não sofre ou frui, que nem age ou renasce. Em sua natureza real, o Ātman não é tocado ou manchado pelas impurezas da vida ordinária, e é somente pela ignorância (Avidyā) e pelas paixões herdadas no ciclo dos renascimentos que nos identificamos com elas. A realização desse estado transcendente é o objetivo a último ser alcançado.
Apesar de ser negada pelos budistas (é preciso entender em qual sentido ela é negada), a doutrina de uma entidade permanente, pura e não contaminada por nenhuma ação ou paixão, chamada diversamente de Ātman, Puruṣa ou Jīva, é ensinada por todas as outras escolas indianas. O summum bonum é alcançado quando todas as impurezas são removidas e a natureza verdadeira de Ātman é completa e permanentemente apreendida, de modo que todas as conexões estranhas são absolutamente desfeitas.
Dasgupta admite que há uma certa atitude pessimista que permeia os sistemas indianos, principalmente no Sāṃkhya, no Budismo e no Yoga. O ciclo das experiências boas ou ruins sempre termina no sofrimento. Mesmo os prazeres desembocam no sofrimento, uma vez que sofremos quando os perdemos, sofremos quando ansiamos por eles e sofremos quando tentamos em vão prolongá-los. A dor é a a verdade última desse processo do mundo.
Não se deve pensar, contudo, que essa atitude derive uma negação do mundo e dos deveres da vida, nem mesmo uma defesa do suicídio ou do quietismo. A dor do ciclo mundano deve ser transcendida pela correta compreensão do Ātman, nossa verdadeira natureza que está desde sempre acima e dissociada das ações e dos sofrimentos que a identificação com essa existência trazem consigo. A elevação moral é a condição de possibilidade para que o homem possa aspirar à realização do Ātman, em comparação com a qual os prazeres deste mundo e mesmo as alegrias do Paraíso encolhem até à insignificância.
O pessimismo se esvai na consideração da verdadeira natureza de nosso Ātman. Os sistemas indianos concordam sobre os princípios gerais de conduta ética que devem ser seguidos para se alcançar a realização final. Todas as paixões devem ser controladas, não se deve ferir qualquer qualquer forma de vida, todos os desejos por prazeres devem ser verificados. É somente quando o homem alcança uma grau muito alto de grandeza moral que ele deve preparar e fortificar sua mente para purificações ulteriores a fim de chegar ao ideal supremo.
O objetivo da vida, a atitude frente ao mundo e os meios para alcançar a realização final compõem a Sādhanā, unidade que permeia todos os sistemas indianos. Surendranath Dasgupta arremata a exposição afirmando que "de fato, parece a mim que um sincero anseio por alguma autorrealização ideal bem-aventurada e calma é realmente o fato fundamental do qual não somente sua filosofia, mas muitos dos fenômenos complexos da civilização da Índia, podem ser logicamente deduzidos." (p.77)
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*Para uma exposição mais detalhada das doutrinas de cada uma das darsanas, recomendo a leitura do compêndio de Madhava intitulado Sarvadarsanasamgraha. Mais acessíveis são as introduções ou histórias da filosofia indiana escritas por Surendranath Dasgupta, Sarvepalli Radhakrishnan, T.M.P. Mahadevan, P.T. Raju, M. Hiriyanna e Arvind Sharma. Os links abaixo conduzem a textos introdutórios sobre temas variados do Hinduísmo e da filosofia indiana.
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