domingo, 19 de fevereiro de 2023

Ibn Arabi e a absoluta Unicidade do Ser

"Aquele que Me vê e sabe que Me vê, não Me vê."

IBN ARABI, Futûhât Makkyya, IV

O místico, filósofo e poeta sufi andaluz Abū ʻAbd Allāh Muḥammad ibn al-ʻArabī al-Ṭāʼī al-Ḥātimī, conhecido como  Muḥyīddīn ("o vivificador da religião") e como Shaykh Al-Akbar ("o maior dos mestres"), é o autor de centenas obras espirituais que são veneradas e estudadas até os dias de hoje no mundo islâmico. Amado por uns e combatido por outros, a sua ortodoxia foi posta em questão durante os séculos posteriores à sua morte por autoridades religiosas que desconfiavam do conteúdo esotérico de seus escritos.

Nascido em Murcia, no Al-Andalus, no ano 1165 D.C., em uma família de comerciantes de origem árabe, Ibn Arabi abandonou muito cedo a azáfama do mundo e ingressou na via espiritual buscando exclusivamente a contemplação do Eterno. Havendo peregrinado por vinte e cinco anos pelo mundo islâmico, o homem santo instalou-se por fim em Damasco, onde faleceu em 1204. Entre as suas obras mais famosas está As Iluminações de Meca, fruto de sua peregrinação à cidade santa onde o Islã nasceu em 622 D.C..

Ibn Arabi é conhecido pelo seu ensinamento da servidão ou indigência ontológica dos seres, a completa e total dependência dos entes com relação ao Ser Supremo.  Ancorado na doutrina sufi da wahdat al-wujûd (a unidade do Ser), ele afirma que só Allah tem o Ser de Si mesmo, isto é, tudo o que há que não seja a Divindade não tem em si mesmo o poder de existir. Daí que o único que há, no sentido pleno de Ser, é Deus. Todo o resto tem seu ser dado pelo Ser Supremo.

Claude Addas, em seu livro Ibn Arabî et le Voyage sans Retour, ensina que o termo árabe wujûd, traduzido comumente como "ser", tem sua raiz em wjd, cujo sentido original é "encontrar". Então, wujûd significaria algo como "encontrado", "estar lá". O termo faz todo o sentido, pois só se pode encontrar aquilo que há. Se não há algo a ser encontrado, nada há. 

A doutrina da unicidade do Ser está magnificamente exposta na sua Risâlatul-Ahadiyah ("Epístola da Unidade"). O texto de Ibn Arabi foi traduzido para o francês no início do século XX pelo Sheykh 'Abd al-Hadi Aqhili, que iniciou no sufismo o venerável Sheykh Abd al-Wāḥid Yaḥyá. O ponto central desse pequeno tratado é que há somente um ser que é real, sendo todos os outros absolutamente dependentes do Ser Supremo.

Como Addas explica, wujûd significa sobretudo "ato de ser", isto é, tudo o que há existe pelo seu ato de ser. Esse simples ato de ser é univocamente o mesmo em Deus e nas criaturas. Quando digo que um lápis existe, digo que ele existe no mesmo sentido que Deus existe. Ambos têm o ato de ser, ou seja, ambos são igualmente existentes. Tudo o que existe exerce o simples ato de ser, de existir, não importando o que a coisa seja.

O que diferencia uma coisa da outra é a sua quididade, o tipo de ser que cada coisa é. Ser um cavalo é diferente de ser um lápis. Essa diferença está somente no tipo de ser que cada um é. Não obstante, um cavalo existente e um lápis existente são iguais do ponto de vista da sua existência. Então, só há um ato de ser em todas as coisas que existem, a diferença estando somente no tipo de ser que cada coisa é. O fundamento único, absoluto e último de todas as coisas é, portanto, o ato de ser (wujûd).

Ibn Arabi ensina que Allah é o ato de ser absoluto. Por conseguinte, a doutrina da unidade do Ser afirma sem peias que somente Allah existe. Ele é o Único sem nenhum outro que seja o Seu segundo, sem antes ou depois, o fundamento último de tudo, nada havendo ou podendo haver fora d'Ele. Não se encontra em qualquer outra coisa e nenhuma outra coisa pode Nele penetrar por alguma entrada ou alguma saída.

"Ninguém O vê, salvo Ele mesmo. Ninguém O compreende, salvo Ele mesmo. Ninguém O conhece, salvo Ele mesmo. Ele se vê por meio de Si mesmo. Ele se conhece por meio de Si mesmo. Outro que Ele não pode vê-Lo. Outro que Ele não pode compreendê-Lo. Seu véu impenetrável é Sua própria Unicidade. Outro que Ele não O dissimula. Seu véu é Sua própria existência. Ele é velado por Sua Unicidade de modo inexplicável."

Sendo a fonte última de todas as coisas, Deus não pode ser compreendido pela razão humana ou enquadrado em nenhuma categoria da realidade mundana. Ibn Arabi chega a afirmar que as coisas não existem e nem podem cessar de existir, pois, rigorosamente não existiram jamais. As coisas são nada, e é só reconhecendo essa nulidade é possível conhecer a Deus. A Gnose, ou o conhecimento de Allah, não exige, como alguns disseram, a extinção da existência, pois as coisas não possuem nenhuma existência.

É mister entender que nesse ponto Ibn Arabi não está negando absolutamente a existência das coisas. Ele está enfatizando o fato de que nenhuma das coisas que existem têm elas mesmas o poder de existir. Não se trata também de dizer que elas possam ser algo diferente do Ser Absoluto, pois nada há além da Unicidade do Ser. Deus não é um ser entre outros seres que Ele criou. Dizer que há algo além de Allah seria o mesmo que negar a Unicidade. 

Em outros termos, não existimos por conta de nossa própria capacidade de existir. Não há nada que exista que exista fora de Deus. Mas não estamos em Deus como algo está em outro. Não somos algo e não há outro. Somos só e tão somente Ele, modalidades de ser. O Ser, contudo, é um e não pode haver outro. 

Claude Addas explica que "encarado como uma entidade autônoma distinta do Ser Absoluto, o universo é uma quimera, posto que não possui o ser em seu próprio direito." Nesse sentido, Ibn Arabi pode afirmar que o universo é uma ilusão, pois não é algo subsistente por si mesmo. Por outro lado, continua Addas, "se o consideramos sob o ângulo de sua relação ao Ser Absoluto, do qual ele é uma cadeia de autodeterminações, o universo é totalmente real." (p. 87)

Deus não tem um Outro. O Outro de Deus teria que existir por si mesmo e não por Deus. Isso é absurdo, pois não há dois Absolutos. Daí se vê que a Unicidade do Ser exige que tudo o que há, houve ou pode haver não seja nada de diferente ou de independente do próprio Ser. "Aquele que conhece sua alma conhece o seu Senhor", diz o texto corânico. Conhecer-se a si mesmo é reconhecer que nada há além de Allah. É não atribuir subsistência a nada que não seja Allah.

Em outra passagem, Ibn Arabi afirma:

"Pois aquilo que tu crês que seja algo outro que Allah, não é outro que Allah. Mas tu nã o sabes. Tu O vês, e tu não sabes que tu O vês. No momento em que esse mistério for revelado a teus olhos, que tu não és outro que Allah, tu saberás que tu és o fim de tu mesmo, que não há necessidade de te aniquilar, que tu jamais cessou de existir, e que tu não cessarás jamais de existir."

É por isso que o wâçil, aquele que chegou à Realidade, pode dizer "eu sou o Verdadeiro Divino". Ele vê que não há sua alma e nem existência senão a de Allah. Aquele que "mata" a sua alma, aquele que conhece a si mesmo, vê que toda a existência é Sua existência. Conhecer a si mesmo consiste em saber com absoluta certeza que a sua existência não é nem uma realidade e nem um nada, e que nunca foi, é ou será.

O conhecimento de si mesmo é a Gnose, o conhecimento de Allah. Significa saber que só há uma única realidade que é propriamente existência: Allah. Todo o resto é como se não fosse, pois não existe por si mesmo, e só existe na medida em que manifesta o Imanifestado. Por nosso próprio poder, não somos nada. Pela Existência Suprema é que podemos dizer que existimos. Estamos nus, sem nada de próprio, indigentes diante do Eterno (que Ele seja glorificado). Somente o Senhor é verdadeiramente.

E quanto aqueles que dizem se unir a Deus? Como pode a Unicidade unir-se a Si mesma, dado que não é duas? Ibn Arabi responde que nunca houve separação ou união, distância ou aproximação. Só pode haver união de coisas que sejam distintas e análogas. Nada há de análogo ou semelhante ao Eterno. Há união sem unificação, aproximação sem proximidade. Só há Aquele que há.

"Quando se descobre o enigma de um só átomo, pode-se ver o mistério de toda a criação, interna e externa."

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Curtos comentários ao Isa Upanisad

Há dez anos ou mais, traduzi por conta própria alguns Upanisads hindus de forma bastante despretensiosa. Utilizei as traduções em inglês da editora indiana Advaita Ashrama e as traduções do indólogo britânico R.C. Zaehner. Acrescentei comentários que compilei a partir dos comentários de autoridades hindus tradicionais como Sankaracarya, Gaudapadacarya, entre outros, e de indólogos e estudiosos do pensamento indiano. 

Relutei bastante em publicar essas traduções por receio de deturpar de algum modo a maravilhosa mensagem dessa tradição milenar. Se agora as publico aqui, é no espírito humilde de contribuir o mínimo que seja para o conhecimento desse tesouro espiritual e metafísico, e, principalmente, como testemunho de meu profundo amor pelos Upanisads. Peço desculpas de antemão por qualquer erro que tenha cometido nesse texto, na tradução ou nos comentários.

1. Om. Todo este universo é penetrado pelo Senhor. Abandona o que quer que se mova neste mundo móvel. Não cobiceis os bens de quem quer que seja.

2. Realizando [sacrifícios] rituais (karma)um homem pode desejar viver cem anos. Para um homem como vós (que deseja viver assim), não há outra via. O homem não é corrompido pelo karma.

3Os mundos dos demônios são cobertos pela escuridão que cega. Aqueles que matam o Si, após terem deixado este corpo, para eles se dirigem.

4. Ele é imóvel, uno, mais rápido que a mente (manas). Os sentidos não O podem ultrapasssar, pois escapa a eles. Em repouso, ultrapassa a todos os que correm. Nele, Matarisva aloca todas as atividades.

5. Ele se move e não se move; está longe, embora esteja perto; está dentro deste grande universo, embora esteja fora dele.

6. Aqueles que vêem todas as coisas no Si e o Si em todas as coisas, jamais duvidarão d'Ele.

7. Quando todas as coisas se tornam o Si para o homem sábio, quais ilusões e quais sofrimentos podem haver para este que testemunha a unicidade?

8. Ele é todo-penetrante, puro, incorporal, sem mágoa, sem tendões, imaculado, intocado pelo mal, onisciente, governante da mente, transcendente e subsistente por si mesmo. A todas as coisas Ele ordenou segundo suas naturezas por anos infindos.

9. Na escuridão cega entram aqueles que veneram a ignorância (avidya/ritos); contudo, em maior escuridão ainda entram aqueles que que estão engajados no conhecimento (vidya/meditação).

10. Um resultado diferente é alcançado através de vidya e outro resultado se dá por meio da avidya, dizem aqueles sábios que nos ensinaram.

Comentário de Sankara Acarya: "Um resultado realmente diferente é alcançado por vidya (veneração ou meditação), pois o texto védico diz: 'O mundo dos deuses é alcançado através da meditação' (Br. I, 16); por avidya, karma (ritos), um outro resultado é obtido, pois assim diz o texto védico: 'O mundo de Manes é alcançado por meio de karma.' (Br. I, 16)."

11. Aquele que conhece os dois, avidya e vidya juntos, alcança a imortalidade através de vidya, ultrapassando a morte pela avidya.

Comentário de Sankara Acarya: "Sendo assim, aquele que conhece os dois juntos, vidya avidya - isto é, meditação sobre as divindades e os ritos, respectivamente - conhece-os como coisas a serem realizadas pela mesma pessoa; somente para esse homem - que combina os dois - ocorre a aquisição sucessiva dos (dois) objetivos num mesmo indivíduo. Através de avidya, por meio de ritos como o Agnihotra (sacrifício ao deus do fogo), é ultrapassada a morte. Através de vidya, a meditação nas divindades, obtêm-se a imortalidade, a identificação com as deidades."

12. Aqueles que veneram o não-nascido* (Prakrti) entram na escuridão cega; mas aqueles que são devotados ao nascido (Hiranyagarbha) adentram em uma escuridão ainda maior.

13. Daqueles que recebemos o ensinamento, ouvimos que um resultado é obtido na veneração do nascido e um fruto diferente resulta da veneração do não-nascido.

14. Aquele que conhece esses dois, o não-nascido e o nascido juntos, alcança a imortalidade através do não-nascido, ultrapassando a morte por meio do nascido.

15. A face da Verdade está oculta pelo barco dourado. Revela-O, ó Sol, para que eu - que sou fiel a meus deveres - possa vê-Lo.

16. Ó tu que és o nutriente, o viajante solitário, o controlador, o obtentor, o filho de Prajapati, remove teus raios, retrai teu brilho ofuscante. Contemplarei, por tua graça, a tua forma mais benigna. Eu sou aquela Pessoa que ali se encontra.

17. Deixa minha força vital alcançar o ar imortal; agora, deixa este corpo ser reduzido a cinzas. Om, ó mente, relembra tudo o que foi feito! Tudo o que foi feito, relembra!

18. Ó deus do fogo, tu que conheces nossos feitos, conduze-nos pelo bom caminho até o gozo dos frutos; remove todos os nossos erros. Nós oferecemos a ti muitas homenagens.
Fim do Isa Upanisad
...
*O termo usado é asambuthi que é a negação de sambuthi. Este, segundo Sankara, significa "o nascido", "o que nasceu". A tradução de R. C. Zaehner utiliza o termo "uncompound", que é a negação simples de "compound", que pode ser traduzido como "composto". A tradução de Swami Gambhirananda utiliza o termo "unmanifested", negação de "manifested" (imanifestado e manifestado). Como Sankara indica que esse "imanifestado" é Prakrti e não Brahman Nirguna, optei pela tradução de "não-nascido" para que não haja confusões. Prakrti é entendida aí como "matéria primordial" das coisas que, por estar em todas as coisas manifestadas, não se manifesta, pois não é algo determinado. Creio que se deva entender aí Prakrti como o aspecto passivo da manifestação, mais ou menos como a hylê grega. Esta nunca se encontra no mundo sem uma forma determinada, isto é, jamais há matéria sem forma. De certa maneira, ela é imanifestada, mas manifesta-se nas coisas. Deve-se distingui-la de Brahman Nirguna, pois este, embora seja imanifestado e substrato de todas as coisas, o é de forma mais "abrangente", pois inclui o que não se manifestou ainda e o que nunca se manifestará, ao contrário de Prakrti que está intimamente ligada à manifestação efetiva. Obs: Se alguém tiver alguma correção a fazer nessa interpretação, por favor, não se furte a fazê-la nos comentários.

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