"Aquele que Me vê e sabe que Me vê, não Me vê."
IBN ARABI, Futûhât Makkyya, IV
O místico, filósofo e poeta sufi andaluz Abū ʻAbd Allāh Muḥammad ibn al-ʻArabī al-Ṭāʼī al-Ḥātimī, conhecido como Muḥyīddīn ("o vivificador da religião") e como Shaykh Al-Akbar ("o maior dos mestres"), é o autor de centenas obras espirituais que são veneradas e estudadas até os dias de hoje no mundo islâmico. Amado por uns e combatido por outros, a sua ortodoxia foi posta em questão durante os séculos posteriores à sua morte por autoridades religiosas que desconfiavam do conteúdo esotérico de seus escritos.
Nascido em Murcia, no Al-Andalus, no ano 1165 D.C., em uma família de comerciantes de origem árabe, Ibn Arabi abandonou muito cedo a azáfama do mundo e ingressou na via espiritual buscando exclusivamente a contemplação do Eterno. Havendo peregrinado por vinte e cinco anos pelo mundo islâmico, o homem santo instalou-se por fim em Damasco, onde faleceu em 1204. Entre as suas obras mais famosas está As Iluminações de Meca, fruto de sua peregrinação à cidade santa onde o Islã nasceu em 622 D.C..
Ibn Arabi é conhecido pelo seu ensinamento da servidão ou indigência ontológica dos seres, a completa e total dependência dos entes com relação ao Ser Supremo. Ancorado na doutrina sufi da wahdat al-wujûd (a unidade do Ser), ele afirma que só Allah tem o Ser de Si mesmo, isto é, tudo o que há que não seja a Divindade não tem em si mesmo o poder de existir. Daí que o único que há, no sentido pleno de Ser, é Deus. Todo o resto tem seu ser dado pelo Ser Supremo.
Claude Addas, em seu livro Ibn Arabî et le Voyage sans Retour, ensina que o termo árabe wujûd, traduzido comumente como "ser", tem sua raiz em wjd, cujo sentido original é "encontrar". Então, wujûd significaria algo como "encontrado", "estar lá". O termo faz todo o sentido, pois só se pode encontrar aquilo que há. Se não há algo a ser encontrado, nada há.
A doutrina da unicidade do Ser está magnificamente exposta na sua Risâlatul-Ahadiyah ("Epístola da Unidade"). O texto de Ibn Arabi foi traduzido para o francês no início do século XX pelo Sheykh 'Abd al-Hadi Aqhili, que iniciou no sufismo o venerável Sheykh Abd al-Wāḥid Yaḥyá. O ponto central desse pequeno tratado é que há somente um ser que é real, sendo todos os outros absolutamente dependentes do Ser Supremo.
Como Addas explica, wujûd significa sobretudo "ato de ser", isto é, tudo o que há existe pelo seu ato de ser. Esse simples ato de ser é univocamente o mesmo em Deus e nas criaturas. Quando digo que um lápis existe, digo que ele existe no mesmo sentido que Deus existe. Ambos têm o ato de ser, ou seja, ambos são igualmente existentes. Tudo o que existe exerce o simples ato de ser, de existir, não importando o que a coisa seja.
O que diferencia uma coisa da outra é a sua quididade, o tipo de ser que cada coisa é. Ser um cavalo é diferente de ser um lápis. Essa diferença está somente no tipo de ser que cada um é. Não obstante, um cavalo existente e um lápis existente são iguais do ponto de vista da sua existência. Então, só há um ato de ser em todas as coisas que existem, a diferença estando somente no tipo de ser que cada coisa é. O fundamento único, absoluto e último de todas as coisas é, portanto, o ato de ser (wujûd).
Ibn Arabi ensina que Allah é o ato de ser absoluto. Por conseguinte, a doutrina da unidade do Ser afirma sem peias que somente Allah existe. Ele é o Único sem nenhum outro que seja o Seu segundo, sem antes ou depois, o fundamento último de tudo, nada havendo ou podendo haver fora d'Ele. Não se encontra em qualquer outra coisa e nenhuma outra coisa pode Nele penetrar por alguma entrada ou alguma saída.
"Ninguém O vê, salvo Ele mesmo. Ninguém O compreende, salvo Ele mesmo. Ninguém O conhece, salvo Ele mesmo. Ele se vê por meio de Si mesmo. Ele se conhece por meio de Si mesmo. Outro que Ele não pode vê-Lo. Outro que Ele não pode compreendê-Lo. Seu véu impenetrável é Sua própria Unicidade. Outro que Ele não O dissimula. Seu véu é Sua própria existência. Ele é velado por Sua Unicidade de modo inexplicável."
Sendo a fonte última de todas as coisas, Deus não pode ser compreendido pela razão humana ou enquadrado em nenhuma categoria da realidade mundana. Ibn Arabi chega a afirmar que as coisas não existem e nem podem cessar de existir, pois, rigorosamente não existiram jamais. As coisas são nada, e é só reconhecendo essa nulidade é possível conhecer a Deus. A Gnose, ou o conhecimento de Allah, não exige, como alguns disseram, a extinção da existência, pois as coisas não possuem nenhuma existência.
É mister entender que nesse ponto Ibn Arabi não está negando absolutamente a existência das coisas. Ele está enfatizando o fato de que nenhuma das coisas que existem têm elas mesmas o poder de existir. Não se trata também de dizer que elas possam ser algo diferente do Ser Absoluto, pois nada há além da Unicidade do Ser. Deus não é um ser entre outros seres que Ele criou. Dizer que há algo além de Allah seria o mesmo que negar a Unicidade.
Em outros termos, não existimos por conta de nossa própria capacidade de existir. Não há nada que exista que exista fora de Deus. Mas não estamos em Deus como algo está em outro. Não somos algo e não há outro. Somos só e tão somente Ele, modalidades de ser. O Ser, contudo, é um e não pode haver outro.
Claude Addas explica que "encarado como uma entidade autônoma distinta do Ser Absoluto, o universo é uma quimera, posto que não possui o ser em seu próprio direito." Nesse sentido, Ibn Arabi pode afirmar que o universo é uma ilusão, pois não é algo subsistente por si mesmo. Por outro lado, continua Addas, "se o consideramos sob o ângulo de sua relação ao Ser Absoluto, do qual ele é uma cadeia de autodeterminações, o universo é totalmente real." (p. 87)
Deus não tem um Outro. O Outro de Deus teria que existir por si mesmo e não por Deus. Isso é absurdo, pois não há dois Absolutos. Daí se vê que a Unicidade do Ser exige que tudo o que há, houve ou pode haver não seja nada de diferente ou de independente do próprio Ser. "Aquele que conhece sua alma conhece o seu Senhor", diz o texto corânico. Conhecer-se a si mesmo é reconhecer que nada há além de Allah. É não atribuir subsistência a nada que não seja Allah.
Em outra passagem, Ibn Arabi afirma:
"Pois aquilo que tu crês que seja algo outro que Allah, não é outro que Allah. Mas tu nã o sabes. Tu O vês, e tu não sabes que tu O vês. No momento em que esse mistério for revelado a teus olhos, que tu não és outro que Allah, tu saberás que tu és o fim de tu mesmo, que não há necessidade de te aniquilar, que tu jamais cessou de existir, e que tu não cessarás jamais de existir."
É por isso que o wâçil, aquele que chegou à Realidade, pode dizer "eu sou o Verdadeiro Divino". Ele vê que não há sua alma e nem existência senão a de Allah. Aquele que "mata" a sua alma, aquele que conhece a si mesmo, vê que toda a existência é Sua existência. Conhecer a si mesmo consiste em saber com absoluta certeza que a sua existência não é nem uma realidade e nem um nada, e que nunca foi, é ou será.
O conhecimento de si mesmo é a Gnose, o conhecimento de Allah. Significa saber que só há uma única realidade que é propriamente existência: Allah. Todo o resto é como se não fosse, pois não existe por si mesmo, e só existe na medida em que manifesta o Imanifestado. Por nosso próprio poder, não somos nada. Pela Existência Suprema é que podemos dizer que existimos. Estamos nus, sem nada de próprio, indigentes diante do Eterno (que Ele seja glorificado). Somente o Senhor é verdadeiramente.
E quanto aqueles que dizem se unir a Deus? Como pode a Unicidade unir-se a Si mesma, dado que não é duas? Ibn Arabi responde que nunca houve separação ou união, distância ou aproximação. Só pode haver união de coisas que sejam distintas e análogas. Nada há de análogo ou semelhante ao Eterno. Há união sem unificação, aproximação sem proximidade. Só há Aquele que há.
"Quando se descobre o enigma de um só átomo, pode-se ver o mistério de toda a criação, interna e externa."