quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Curtos comentários ao Isa Upanisad

Há dez anos ou mais, traduzi por conta própria alguns Upanisads hindus de forma bastante despretensiosa. Utilizei as traduções em inglês da editora indiana Advaita Ashrama e as traduções do indólogo britânico R.C. Zaehner. Acrescentei comentários que compilei a partir dos comentários de autoridades hindus tradicionais como Sankaracarya, Gaudapadacarya, entre outros, e de indólogos e estudiosos do pensamento indiano. 

Relutei bastante em publicar essas traduções por receio de deturpar de algum modo a maravilhosa mensagem dessa tradição milenar. Se agora as publico aqui, é no espírito humilde de contribuir o mínimo que seja para o conhecimento desse tesouro espiritual e metafísico, e, principalmente, como testemunho de meu profundo amor pelos Upanisads. Peço desculpas de antemão por qualquer erro que tenha cometido nesse texto, na tradução ou nos comentários.

1. Om. Todo este universo é penetrado pelo Senhor. Abandona o que quer que se mova neste mundo móvel. Não cobiceis os bens de quem quer que seja.

2. Realizando [sacrifícios] rituais (karma)um homem pode desejar viver cem anos. Para um homem como vós (que deseja viver assim), não há outra via. O homem não é corrompido pelo karma.

3Os mundos dos demônios são cobertos pela escuridão que cega. Aqueles que matam o Si, após terem deixado este corpo, para eles se dirigem.

4. Ele é imóvel, uno, mais rápido que a mente (manas). Os sentidos não O podem ultrapasssar, pois escapa a eles. Em repouso, ultrapassa a todos os que correm. Nele, Matarisva aloca todas as atividades.

5. Ele se move e não se move; está longe, embora esteja perto; está dentro deste grande universo, embora esteja fora dele.

6. Aqueles que vêem todas as coisas no Si e o Si em todas as coisas, jamais duvidarão d'Ele.

7. Quando todas as coisas se tornam o Si para o homem sábio, quais ilusões e quais sofrimentos podem haver para este que testemunha a unicidade?

8. Ele é todo-penetrante, puro, incorporal, sem mágoa, sem tendões, imaculado, intocado pelo mal, onisciente, governante da mente, transcendente e subsistente por si mesmo. A todas as coisas Ele ordenou segundo suas naturezas por anos infindos.

9. Na escuridão cega entram aqueles que veneram a ignorância (avidya/ritos); contudo, em maior escuridão ainda entram aqueles que que estão engajados no conhecimento (vidya/meditação).

10. Um resultado diferente é alcançado através de vidya e outro resultado se dá por meio da avidya, dizem aqueles sábios que nos ensinaram.

Comentário de Sankara Acarya: "Um resultado realmente diferente é alcançado por vidya (veneração ou meditação), pois o texto védico diz: 'O mundo dos deuses é alcançado através da meditação' (Br. I, 16); por avidya, karma (ritos), um outro resultado é obtido, pois assim diz o texto védico: 'O mundo de Manes é alcançado por meio de karma.' (Br. I, 16)."

11. Aquele que conhece os dois, avidya e vidya juntos, alcança a imortalidade através de vidya, ultrapassando a morte pela avidya.

Comentário de Sankara Acarya: "Sendo assim, aquele que conhece os dois juntos, vidya avidya - isto é, meditação sobre as divindades e os ritos, respectivamente - conhece-os como coisas a serem realizadas pela mesma pessoa; somente para esse homem - que combina os dois - ocorre a aquisição sucessiva dos (dois) objetivos num mesmo indivíduo. Através de avidya, por meio de ritos como o Agnihotra (sacrifício ao deus do fogo), é ultrapassada a morte. Através de vidya, a meditação nas divindades, obtêm-se a imortalidade, a identificação com as deidades."

12. Aqueles que veneram o não-nascido* (Prakrti) entram na escuridão cega; mas aqueles que são devotados ao nascido (Hiranyagarbha) adentram em uma escuridão ainda maior.

13. Daqueles que recebemos o ensinamento, ouvimos que um resultado é obtido na veneração do nascido e um fruto diferente resulta da veneração do não-nascido.

14. Aquele que conhece esses dois, o não-nascido e o nascido juntos, alcança a imortalidade através do não-nascido, ultrapassando a morte por meio do nascido.

15. A face da Verdade está oculta pelo barco dourado. Revela-O, ó Sol, para que eu - que sou fiel a meus deveres - possa vê-Lo.

16. Ó tu que és o nutriente, o viajante solitário, o controlador, o obtentor, o filho de Prajapati, remove teus raios, retrai teu brilho ofuscante. Contemplarei, por tua graça, a tua forma mais benigna. Eu sou aquela Pessoa que ali se encontra.

17. Deixa minha força vital alcançar o ar imortal; agora, deixa este corpo ser reduzido a cinzas. Om, ó mente, relembra tudo o que foi feito! Tudo o que foi feito, relembra!

18. Ó deus do fogo, tu que conheces nossos feitos, conduze-nos pelo bom caminho até o gozo dos frutos; remove todos os nossos erros. Nós oferecemos a ti muitas homenagens.
Fim do Isa Upanisad
...
*O termo usado é asambuthi que é a negação de sambuthi. Este, segundo Sankara, significa "o nascido", "o que nasceu". A tradução de R. C. Zaehner utiliza o termo "uncompound", que é a negação simples de "compound", que pode ser traduzido como "composto". A tradução de Swami Gambhirananda utiliza o termo "unmanifested", negação de "manifested" (imanifestado e manifestado). Como Sankara indica que esse "imanifestado" é Prakrti e não Brahman Nirguna, optei pela tradução de "não-nascido" para que não haja confusões. Prakrti é entendida aí como "matéria primordial" das coisas que, por estar em todas as coisas manifestadas, não se manifesta, pois não é algo determinado. Creio que se deva entender aí Prakrti como o aspecto passivo da manifestação, mais ou menos como a hylê grega. Esta nunca se encontra no mundo sem uma forma determinada, isto é, jamais há matéria sem forma. De certa maneira, ela é imanifestada, mas manifesta-se nas coisas. Deve-se distingui-la de Brahman Nirguna, pois este, embora seja imanifestado e substrato de todas as coisas, o é de forma mais "abrangente", pois inclui o que não se manifestou ainda e o que nunca se manifestará, ao contrário de Prakrti que está intimamente ligada à manifestação efetiva. Obs: Se alguém tiver alguma correção a fazer nessa interpretação, por favor, não se furte a fazê-la nos comentários.

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