8. Verdadeiramente o Si, considerando-o do ponto de vista da sílaba, é Om. Considerado a partir das letras [que constituem Om], os quartos [do Si] são as letras [do Om] e estas são aqueles. A, U, M. *
terça-feira, 24 de janeiro de 2023
Comentários curtos ao Mandukya Upanisad
terça-feira, 3 de janeiro de 2023
Tomás de Aquino, Deus e o conhecimento dos futuros contingentes
AGOSTINHO DE HIPONA, De Trinitate, XV
Ainda tratando da questão do conhecimento divino na Suma Teológica, Tomás passa a considerar se o conhecimento de Deus é a causa das coisas. Como foi determinado anteriormente, o conhecimento divino não é adventício e temporal. Diferentemente dos entes cognoscentes temporais nos quais o conhecimento é antecedido pela ignorância e limitado pela presença dos objetos à percepção, Deus não conhece de modo imediato e atemporalmente.
Se não há intervalo entre a existência da coisa e o seu conhecimento por Deus, então o conhecimento coincide com a existência da coisa. Deus conhece as coisas justamente porque é o seu Autor. O artífice tem no intelecto a forma daquilo que quer produzir. Ele produz o artefato e é, portanto, a sua causa. A forma da coisa no intelecto do artífice não torna nada existente por si mesma, mas depende da inclinação real do artista para produzir aquilo que tem em mente. O mesmo se dando com Deus.
Ora, se as coisas são reais porque Deus as conhece, então o que não é real não é conhecido por Deus, alguém poderia argumentar. Tomás responde que as coisas existem em níveis diferentes. Há as que existem de modo atual e há as que existem como possibilidades no poder de Deus ou das criaturas.
Do mesmo modo, as coisas que já não existem e aquelas que existirão, não existem no momento presente. Como o conhecimento divino é eterno, sem sucessão, compreendendo todo o tempo, nada do que foi ou do que será Lhe é desconhecido. Há também as coisas que nunca foram e nunca serão mesmo estando no poder de Deus ou das criaturas. Dessas igualmente há pleno conhecimento divino.
O que Tomás está afirmando é que o conhecimento de Deus é a causa da existência de qualquer coisa, seja qual for a modalidade dessa existência. O conhecimento divino torna a coisa real, como potência ou como atualidade. Se a coisa passará de potência a ato, é algo que depende da vontade divina ou da vontade das criaturas. Por exemplo, João é casado e pode ter filhos. Se ele os terá ou não, depende de sua vontade. A possibilidade, entretanto, existia anteriormente ao ato de ter filhos.
A pergunta seguinte é se Deus conhece o mal. Dado que, como ensinava Agostinho (e, na verdade, os neoplatônicos) que o mal é a privação do bem, pareceria que Deus não pode conhecer o mal. Aqui devemos esclarecer o sentido da afirmação de Agostinho. O mal é uma privação e não um ente substancial e independente dos outros entes. O que quer dizer que o mal não é uma coisa realmente existente, mas tão somente a falta de alguma perfeição em algum ente, em alguma coisa.
Tomemos o exemplo do gato, um quadrúpede. Sabemos por experiência que gatos têm quatro patas, e quando nasce um gato com três patas, percebemos claramente que lhe falta uma pata. Essa falta, essa privação de uma pata, é um mal. É a ausência de uma propriedade de um ente. A ausência não é um ente substancial, uma coisa. O gato é um ente substancial, a falta da pata não. A ausência de uma pata só é conhecida por causa da presença usual das quatro patas e não o contrário. Por isso, o mal não é uma coisa, mas somente uma ausência de algo que deveria estar presente.
Se o mal não é algo, uma coisa, a questão é saber como Deus poderia conhecer aquilo que é uma falta, aquilo que não existe. Tomás responde que quem conhece perfeitamente algo também conhece tudo o que pode acontecer à coisa conhecida. Se o mal é a privação, e se conheço a coisa perfeitamente, então sei o que pode acontecer a ela. Sabendo que gatos são quadrúpedes, sei também que a ausência de uma pata seria um mal para qualquer gato.
O infinito é aquilo à cuja medida sempre pode ser somada mais uma medida. Aristóteles, na Física, mostrou que é impossível conhecer algo infinito, uma vez que seria impossível percorrer totalmente algo infinito. Porém, Deus também conhece o que é infinito, assevera Tomás de Aquino, pois Ele conhece (na eternidade, não no tempo) não somente tudo aquilo que é, mas tudo o que foi e que será. Deus conhece a infinitude daquilo que está em Seu poder e no poder das criaturas.
A pergunta mais interessante é se Deus conhece os futuros contingentes. Pareceria que uma resposta positiva teria como consequência a negação da liberdade humana. Contingente é tudo aquilo que pode ser ou pode não ser. João pode decidir se viaja ou não. Nada o obriga ou o constrange para que ele decida por uma ou por outra alternativa. Sua decisão vai determinar a existência de alguma das duas possibilidades de futuro contingente que João tem diante de si.
Talvez nem João saiba ainda o que vai escolher. Quem sabe ainda está deliberando, avaliando e pensando a respeito. Não obstante, qualquer que seja a sua decisão, Deus já a conhece. Sempre conheceu e sempre conhecerá. Alguns afirmam que o conhecimento divino dos futuros contingentes contradiz a liberdade humana. Seria impossível dizer que João é livre para escolher se Deus sabe qual será sua decisão.
Tomás responde que sim, Deus conhece todos os futuros contingentes. Como afirmado acima, Deus conhece o atualizado tanto quanto o que está em Seu poder ou no poder das criaturas. Então é fácil perceber que Ele conhece todos os futuros contingentes. O que é contingente pode ser considerado de duas formas. Em primeiro lugar, pode ser considerado em si mesmo, quando já está efetivado na realidade.
Na outra forma, o contingente é considerado como algo ainda no poder de sua causa, isto é, como algo futuro, que pode ou não se realizar. Viajar é um efeito em poder de João. Obviamente, enquanto João não decidir, esses dois futuros contingentes, viajar ou não viajar, não podem ser objeto de conhecimento certo. Só podemos conjecturar se João vai viajar ou não. Nosso conhecimento é conjectural, contingente. Deus, porém, sabe de modo certo que João decidiu viajar.
Ora, as coisas contingentes se dão sucessivamente, isto é, temporalmente. O conhecimento que Deus tem das coisas não é temporal, é eterno, sem sucessão. Não havendo sucessão em Deus, tudo é visto como que simultaneamente. Os futuros contingentes são desconhecidos por nós pelo fato de que estamos no tempo. Não podemos ver quem virá depois de nós em uma estrada. No entanto, se estivermos no topo de uma montanha, veremos todos os que estão na estrada simultaneamente.
Tomás salienta um ponto que é, cremos, central para o entendimento dessa questão. Dizemos usualmente que Deus sabe das coisas antes que elas aconteçam. Isso pode ter pelo menos dois sentidos bem diferentes. Deus sabe de tudo porque ele está na eternidade. Ou Deus sabe porque prevê o futuro como alguém que, no tempo, sabe o que vai acontecer adiante. É um erro muito comum confundir esses dois sentidos.
A razão pela qual Deus sabe de tudo antes que aconteça não é porque ele consegue prever o futuro como um cientista consegue prever o estado futuro de um corpo. O cientista está no tempo e só pode prever o futuro estado de um corpo graças ao conhecimento da regularidade natural que ele aprendeu observando outros corpos nas mesmas condições. Ele sabe o futuro no sentido de que sabe como vai se desenrolar o comportamento daquele corpo por causa de um padrão fixo e natural que ele já conhece por experiências passadas.
Sendo assim, o homem só pode prever aquilo que possui um comportamento regular. A previsibilidade científica está calcada na uniformidade natural. Onde não há regularidade, não há previsão. Por isso, se um cientista conseguisse sempre prever com precisão a escolha de João, antes que ele decidisse viajar ou não, utilizando para isso o seu comportamento passado, João estaria em tese inconscientemente obedecendo a alguma regularidade natural inevitável, e não teria liberdade.
Prever cientificamente algum acontecimento futuro requer o conhecimento de uma regularidade natural descoberta por meio da experiência. Esse ponto é crucial. Deus não prevê o futuro como um cientista que sabe de antemão como um corpo vai se comportar em determinadas condições porque já observou o mesmo comportamento inúmeras vezes no passado. Prever no tempo é saber alguma regularidade que vai se manter no futuro. Nesse caso, não há mesmo liberdade. Há uma regularidade natural que ordena os acontecimentos futuros.
Deus não está no tempo e prevê que João vai optar por viajar. Deus, na eternidade, vê tudo como simultaneamente. Não há tempo, portanto não há sucessão de acontecimentos. Se Deus estivesse no tempo, obviamente Ele só poderia conhecer os acontecimentos na medida em que se sucedessem. O que equivale dizer que Deus seria ignorante daquilo que ainda não tenha acontecido. Estando fora do tempo, Ele não está submetido à limitação do conhecimento adquirido.
Deus vê tudo como um grande "agora". Nós estamos no tempo, nós temos essas limitações do conhecimento adquirido. Dizer que Deus prevê o futuro como um ser humano pode às vezes prever o que acontecerá é atribuir a Deus o modo de conhecimento humano. Os futuros são contingentes porque eles podem se dar de um jeito ou de outro. João decide livremente, no tempo, se vai ou não viajar. Seus amigos não sabem o que ele vai decidir. Podem somente conjecturar, não têm certeza do que acontecerá.
João não é meramente um corpo cujo comportamento possa ser previsto com exatidão dadas as mesmas condições de seu comportamento no passado. Não há uma necessidade natural que o impila a tomar esta decisão e não aquela. O que não significa que o conhecimento que Deus possui de João sofra das mesmas limitações do conhecimento temporal.
O modo de conhecimento do conhecedor determina o modo como será conhecido o objeto. Os amigos de João só podem saber qual foi sua decisão no momento em que ele a tomar, pois são seres humanos e seres humanos conhecem as coisas temporalmente. Deus conhece a mesmíssima decisão de João, não no tempo e sim na eternidade, pois Ele é eterno. João fica obrigado a decidir como Deus "previu"? Não, pois o modo de conhecimento divino não afeta a natureza da coisa conhecida.
Deus conhece tudo eternamente. Esse é Seu modo de conhecimento. Isso não significa que pelo fato de Deus saber eternamente os acontecimentos estejam decididos no tempo. No tempo, há futuros realmente contingentes. João decide livremente se viaja ou não. A natureza contingente da decisão de João não é afetada pelo modo como Deus conhece essa decisão.
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