"Bem não é a mesma coisa que prazer. O bem depende universalmente de 'ordem, retidão e arte, e mostra a si mesmo em uma condição de 'regulação e de ordem'. Isso significa que a alma temperada ou 'disciplinada' é a boa alma, e que a alma 'impunida' e 'indisciplinada' é má. A primeiro age 'adequadamente à situação' em todas as situações da vida, e consequentemente age bem, faz bem e é 'feliz'. A outra, não agindo apropriadamente nas situações da vida, não é meramente má, mas infeliz, especialmente se não é mantida sob controle pelo 'castigo'. Tais são os princípios sob os quais tanto a conduta pública quanto a conduta privada devem ser organizadas." (A.E.TAYLOR, Plato: the Man and his Work, p.123)
Sócrates prossegue afirmando que a alma intemperada é má, e não é amiga dos deuses e nem dos homens. Os sábios ensinaram que a comunhão, a amizade, a ordem e a temperança unem o céu e a terra, os homens e os deuses, e é por isso que este mundo é chamado de cosmos. Cálicles, diz o filósofo, apesar de pensador, não observa a igualdade geométrica e propugna a desigualdade do excesso.
Em seguida, Sócrates reafirma a verdade de que desses dois males, sofrer injustiça ou cometer injustiça, o segundo é o maior. Como o homem pode se defender de ambos? No caso de não cometer injustiça, será necessário algum poder e alguma arte, dado que já foi acordado nessa discussão que alguém comete injustiça por ignorância.
No segundo caso, o de não sofrer injustiça, mister é ter o poder de um tirano ou ser amigo e imitador do tirano, pois desse modo estará livre de qualquer injustiça. Se a amizade é louvar e desprezar as mesmas coisas, como dizem os sábios, então o imitador do tirano deverá assemelhar-se o mais possível de seu modelo/amigo a fim de cair em suas graças. Mas o imitador do tirano, sendo este intrinsecamente injusto, não furtar-se-á a cometer ele mesmo injustiças, caindo então no maior dos males.
Cálicles intervém dizendo que Sócrates não entende que o imitador matará quem porventura se recusar a imitá-lo por sua vez. O filósofo responde que sabe que isso acontecerá, porém o imitador será um homem mau que condenará um homem bom. Não será isso, pergunta Cálicles, motivo de indignação? Não, se se reflete sobre o que até aqui foi dito. A Cálicles Sócrates pergunta se o homem deve preservar a vida a todo custo, praticando aquelas artes que possam mantê-lo vivo ou salvá-lo. O seu interlocutor afirma que sim.
Sócrates, em sua argumentação, tenta fazer Cálicles perceber que, se o maior mal é sofrer injustiça, o homem será obrigado, se quiser ser poupado desse mal, a acumular poder tirânico ou compactuar com o poder tirânico. E isso o conduzirá, pela dinâmica intrinsecamente injusta dessa relação, a cometer injustiças, este sim o maior dos males. Salvar ou preservar a própria vida a todo custo tem como preço o cometimento de injustiças. O homem não pode jamais estar completamente a salvo de sofrer injustiças, sob pena de tornar-se um homem mau.
Ora, se salvar a própria pele é a prioridade de Cálicles, então por qual razão ele despreza a natação e outras artes como a navegação, a medicina e a engenharia de guerra que asseguram e salvam a vida dos homens da mesma forma que faz a retórica? Ademais, viver muito ou pouco, apegar-se à vida, não é próprio do sábio. Este entrega-se à divindade, e reflete como deve viver a sua vida da forma mais perfeita possível, seja assimilando-se à constituição sob a qual ele vive, como Cálicles deve fazer-se semelhante à democracia de Atenas se quiser obter poder. E só será aceito pelo demos aquele que for da mesma natureza que o povo, e não mero imitador.
Cálicles não se convence ainda, e Sócrates tenta um novo caminho. Há duas maneiras de treinar seja o corpo ou seja a alma, uma com vistas ao prazer e a outra com vistas a um bem maior. A primeira é lisonja vulgar, mas a segunda objetiva o maior aperfeiçoamento. É mister agir da mesma forma com relação à cidade. Cálicles concorda.
Todavia, é preciso considerar se ambos, Cálicles e Sócrates, já construíram uma edificação, se ela foi de boa qualidade, se tiveram bons mestres e se já construíram sem a ajuda destes. Se a resposta for negativa, seria prudente não se meter a construir prédios públicos. Mutatis mutandis, o mesmo se daria se o caso fosse a medicina. Não poderiam ousar ser médicos do Estado se não houvessem curado pessoas, não possuíssem boa saúde, etc.
Essa breve indução servirá a Sócrates como ponte para a pergunta realmente importante: alguém já se tornou melhor, deixou de ser mau, por influência de Cálicles? Ele percebe aonde o raciocínio de Sócrates quer chegar, e, irritado, reclama que o filósofo é contencioso. Não é por amor à contenda que Sócrates pergunta o que pergunta, mas para saber a opinião de Cálicles sobre como dirigir os assuntos de Estado.
O filósofo afirma que se o objetivo do administrador do Estado é tornar o cidadão melhor, então Péricles, Cimon, Temístocles e Miltíades (todos elogiados por Cálicles como exemplos de homens públicos) não foram bons homens públicos, pois eles mesmos sofreram depois injustiças por parte do mesmo povo que outrora lideraram. O argumento aqui é um condicional segundo o qual "se X,Y,Z são bons, então farão P também bom. Como P não é bom, então X, Y e Z não podem ser bons."
Contrariado, Cálicles afirma que certamente nenhum homem chegou próximo de seus desempenhos. Sócrates responde que tais homens fizeram bom serviço ao Estado, mas nada fizeram para instilar no cidadão as virtudes. Cálicles os elogia sem perceber que eles foram a causa remota da degradação atual de Atenas, servindo os cidadãos com bens e obras, mas sem preocupação com a temperança e a justiça. O mesmo se dá com os homens de Estado contemporâneos.
Comenta Werner Jaeger, em seu clássico Paideia:
"Os estadistas famosos de Atenas foram meros servidores do Estado, em vez de serem educadores do povo. Converteram-se no instrumento das fraquezas da natureza humana, que procuraram explorar, em vez de as superarem por meio da persuasão e da coação. Não eram médicos e ginastas, mas antes confeiteiros, que à força de gordura incharam o corpo do povo, embotando-lhe os músculos outrora rijos. Claro está que as consequências desse empanturramento só mais tarde se manifestarão." (p. 637)
Lamenta-se amiúde que tais homens tenham sido traídos depois de tantos bens feitos à cidade. Porém, a lamentação é falsa por causa do fato de que foram eles mesmos que fizeram o povo do jeito que ele é. Como os sofistas, que se dizem professores de virtude e reclamam que seus alunos os traíram. Não seria possível que os alunos, se transformados em bons cidadãos pelo ensino dos sofistas, pudessem trair e agir mal com seus antigos mestres. Se fossem confiantes em sua arte, os sofistas não pediriam sequer pagamento, pois saberiam que os alunos não deixariam de recompensá-los.
(O comentário será encerrado na parte 5)
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