sábado, 10 de abril de 2021

Finalidade, Ontos e Meon na "Sabedoria dos Princípios" (capítulos XXIII a XXV) - Parte final

"Ora, se partimos da idéia de possível, esta implica o Meon, porque o possível é o que ainda não é, mas que pode vir a ser, fundado em alguma positividade. Não é cabível que o possível esteja fundado em o nada, pois seria impossível. O possível tem de estar fundado em algum ser. Portanto, a omnipotência do Ser Supremo implica, também, a totalidade dos possíveis, atualizáveis ou não, pouco importa, mas implica necessariamente, o não-ser: o Meon." (itálicos no original)

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, Sabedoria dos Princípios, p.176

No capítulo XXIII de sua obra Sabedoria dos Princípios, o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos trata do tema da finalidade ou teleologia. O fim, quando se trata de um ser consciente, está primeiro na intenção e depois na ação. Isto é, nos seres inteligentes, é preciso antes ter a intenção de realizar algo, e só depois realizá-lo. Na ação, portanto, há um ponto de partida e um ponto de chegada.

A finalidade, ou causa final, não é algo exclusivo dos seres inteligentes. Tudo quanto há, enquanto agente, tende para alguma coisa. A finalidade intrínseca de algo é aquilo para a qual ela tende naturalmente (a macieira produz maçãs), e a finalidade extrínseca é o uso que se faz da coisa fora de sua natureza intrínseca (por exemplo, uma torta de maçã). Tudo o que opera, opera em vista de um fim determinado. Obviamente, nos seres inteligentes, esse fim é consciente. Mas nos seres não inteligentes, o fim é aquilo para o qual a coisa tende naturalmente.

No capítulo XXIV, o filósofo passa a tratar novamente do fascinante tema do Ontos e do Meon. Entre o ser o o não-ser não há meio termo. Ou bem é ou bem não é. Não há um intermediário entre ser e não-ser. Mas há o Meon, que é o possível, embora ancorado no ser. A infinita potência ativa de Deus implica na infinita potência passiva que é o Meon. Nossa mente separa o fazer e o feito, mas quem faz algo, faz ao mesmo tempo o feito. 

Um oleiro faz um vaso e o vaso é, ao mesmo tempo, feito pelo oleiro. Causa e efeito são aí simultâneos e inseparáveis. São duas faces de uma só e mesma realidade. Para que haja o fazer, é mister haver o possível, aquilo que é potencial e que permite o fazer. O possível não é ainda efetivo, mas não é um nada, vazio completo de ser. É uma possibilidade que só se torna efetiva pela ação do fazedor. O conjunto dessas possibilidades, dessas potencialidades passivas que serão ou não efetivadas, é o Meon.

O Meon, afirma Mário Ferreira, não é ser, é um não-ser e, tomado mateticamente, é potencialmente infinito. Mas que não se pense que o Meon seja um deuteros theos, um segundo Deus, uma versão negativa da positividade divina. O Meon é outro, mas não como um outro diverso de Deus. É "o outro" do Ser Supremo, a infinita possibilidade passiva que acompanha necessariamente a infinita potência ativa de Deus. O que faz, implica a possibilidade do fazer e aquilo que é feito, indissoluvelmente.

Seria interessante tecer aqui alguns comentários. Mário Ferreira não está dizendo que exista uma matéria amorfa pre-existente que Deus amolda e à qual impõe forma a seu bel-prazer. Não há um Meon como uma entidade, um ser independente de Deus. O Meon não é um ente, mas a possibilidade infinita de entes. Se o ente, o Ontos, é aquilo que já se efetivou, o Meon é aquilo que é possível ser efetivado, mas que ainda (ou para sempre) não se efetivou.

A tese do filósofo brasileiro é justamente que nossa mente tende a separar e a substancializar tudo o que pensa. Então, é fácil cair no erro de se pensar no Meon como um ente separado e de existência independente de Deus, como um vácuo amorfo existente desde sempre. A potência subjetiva é aquela que já tem um supósito, um sujeito no qual está colocada (por exemplo, as capacidades do homem), e a potência objetiva é aquela que não tem ainda um supósito, um sujeito. O Meon é justamente a potência objetiva universal ancorada em Deus. 

O Meon só "existe" com referência a outro, ao Ser. Ele não se afirma como entidade, mas como possibilidade de entidades. Assevera Mário Ferreira que "o Meon não pode ser senão o infinitamente potencial, correspondente ao infinitamente potencial ativo; quer dizer, o Meon só pode ser o infinitamente potencial objetivo, que corresponde ao infinito potencial ativo" (pag. 178). Se Deus é a infinita possibilidade ativa que dá ser aos seres potenciais, estes seres devem antes ser possíveis, e no ato de realização desses seres está implicada essa possibilidade meontológica. 

Não há aqui dualismo, pois não há dois entes positivos, um infinito potencial ativo e outro infinito potencial passivo, diferentes e independentes um do outro. Estamos diante de uma só realidade, dois lados de uma mesma moeda. Como o oleiro não pode fazer um vaso na massa que manipula a não ser que ela já seja adequada àquele fim, o ato mesmo de criar implica na possibilidade daquilo que pode ser criado. Do nada, nada vem, e se a possibilidade fosse um nada, seria inexplicável racionalmente o surgimento de qualquer coisa.

Ainda no capítulo XXIV Mário Ferreira dos Santos afirma a evidência da semelhança e da diferença. Que as coisas assemelham-se e diferenciam-se é fato óbvio pela experiência. Ainda que tudo fosse ficção, ainda seria verdadeiro e evidente que as ficções assemelham-se e diferenciam-se entre si. 

O mesmo pode ser dito da identidade, pois mesmo que tudo seja ficção, as ficções têm identidade, dado que cada uma não é a outra. Todavia, é preciso notar que a identidade não é uma relação verdadeira da coisa com ela mesma. É nossa mente que separa um ente dele mesmo e o compara com ele mesmo (A=A). Daí que nem toda a distinção implica em negação da identidade. Há distinções que são reais na coisa e distinções que são feitas só na mente humana.

Posso distinguir em Pedro a sua animalidade de sua racionalidade, mas isso não significa que elas sejam distintas substancialmente. Isto é, nem toda a distinção implica em separação substancial de uma coisa da outra. É um erro muito comum pensar que aquilo que é distinto, é também separado substancialmente: se distingo animalidade e racionalidade, então a animalidade é um ente independente e a racionalidade é outro ente independente. 

Há distinções que são substanciais, como no caso de Pedro e de Carlos, pois Pedro é um ente independente e Carlos é outro ente independente. Contudo, animalidade e racionalidade não se distinguem como duas substâncias separadas, como dois entes independentes um do outro. Animalidade realmente não é racionalidade, mas isso não significa que há aqui dois entes separados. Na realidade, a animalidade de Pedro e a racionalidade de Pedro distinguem-se como acidentes diferentes que compõem Pedro enquanto uma unidade. substancial.

No capítulo XXV, Mário Ferreira trata da ordem. A ordem implica em uma distinção numérica entre termos que se correspondam segundo um logos. Embora a ordem implique relação, a relação não implica ordem. Há relações desordenadas e relações que se dão regradas por um logos. A ordem implica anterioridade posterioridade, e, portanto, hierarquia. Aquilo que será ordenado segundo um determinado logos poderá ser desordenado segundo um outro logos.

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Leia também as outras partes da série sobre a Sabedoria dos Princípios:

http://oleniski.blogspot.com/2021/03/principio-causalidade-e-razao.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/02/platao-possibilidade-e-intuicao.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/02/os-contextos-mateticos-na-sabedoria-dos.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/02/matese-suarez-e-ciencia-na-sabedoria.html

https://oleniski.blogspot.com/2021/02/matese-aristoteles-tomas-de-aquino-e.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/01/os-logoi-na-sabedoria-dos-principios.html

http://oleniski.blogspot.com/2020/12/mathesis-megisthe-na-sabedoria-dos.html

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