sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

O argumento cosmológico Kalam



Há um conjunto variado de argumentos que visam provar a existência de Deus que a história da filosofia usou denominar de argumentos cosmológicos. Os mais famosos, sem dúvida, são as "cinco vias" de São Tomás de Aquino e o argumento da complexidade de William Paley.

O que caracteriza esse gênero de argumento é seu modo de provar a existência de Deus a partir do cosmo. O mundo é um todo ordenado e a consideração de seus aspectos mais importantes e essenciais conduz à afirmação de sua dependência de um princípio superior, eterno e autosubsistente. Isto é, o exame do mundo exige a existência de uma entidade da qual o próprio mundo depende de forma fundamental, necessária e inexorável.

Os argumentos cosmológicos não são argumentos religiosos no sentido estrito do termo. Eles meramente afirmam a existência de Deus e apontam um determinado conjunto de atributos divinos que podem ser deduzidos daquilo que se conhece do mundo. Em outros termos, tudo o que se sabe sobre Deus a partir desses raciocínios é somente aquilo que é necessário ao Ser Supremo para ser causa necessária e suficiente do mundo tal como o conhecemos.

Embora os argumentos cosmológicos não sejam religiosos necessariamente, muitos religiosos ocidentais e orientais propuseram e ainda propõem argumentos desse tipo para provar a existência de Deus. Mesmo que suas respectivas doutrinas ensinem e afirmem muito mais atributos divinos do que as premissas dos argumentos cosmológicos permitem inferir, considera-se que estes, ao menos, são capazes de determinar inequivocamente a existência de Deus assim como um conjunto mínimo de atributos divinos compatíveis com suas próprias concepções da divindade.

Ora, não é de se espantar que o mundo islâmico tenha também produzido exemplares desse gênero de argumentos. O argumento cosmológico Kalam é o mais famoso deles. Kalam significa originalmente “palavra” ou “discurso”. Com o tempo, passou a ser sinônimo de “teologia”. E teologia aí significa a dialética racional pura operando sobre conceitos teológicos com funções eminentemente apologéticas. Seus propugnadores foram os mo'tazilites, grupo formado em Basra no segundo século da Hégira.

Abu Hamid Muhammed Ibn Muhammed Al Ghazali, o teólogo islâmico medieval, propôs uma versão do argumento segundo a qual:

1) Todo ser que vem a ser, tem uma causa de seu vir a ser;
2) O mundo é um ser que veio a ser;
3) Logo, o mundo teve uma causa de seu vir a ser."

O filósofo americano Edward Feser sumariza o argumento da seguinte forma*:

1) Não pode haver uma coleção infinitamente grande atual;
2) Mas um universo sem início constituiria uma coleção infinitamente grande atual (de momentos de tempo);
3) Logo, o universo tem que ter tido um início;
4) Mas tudo o que começa a existir tem uma causa;
5) Então, o universo tem uma causa.

Na formulação que ora será apresentada, o argumento possui três econômicas premissas básicas:

1) Tudo o que começou a existir tem uma causa para a sua existência;
2) O universo começou a existir;
3) O universo tem uma causa para a sua existência.

Tomado dessa forma, o argumento não parece ter força, pois tudo repousa em duas premissas aparentemente injustificadas, principalmente a premissa (2). Como afirmar com certeza que o universo começou a existir? Não poderia ele ser eterno no tempo, isto é, não possuir nenhum tempo anterior ao qual ele não existisse, como Aristóteles afirmava?

A premissa (1) também parece necessitar de algum esclarecimento. Não poderia algo simplesmente surgir, vir à existência, sem nenhuma causa que a antecedesse?

Ex nihilo nihil fit. Do nada, nada vem. Se X não existia e passou a existir, ou bem X veio de alguma coisa já existente ou do nada. Como do nada nada vem, então a única resposta possível é que se algo veio em algum momento a existir, veio a existir com agência de uma causa ontologicamente anterior a ela.

Com relação à premissa (2), há que se postular um segundo conjunto de premissas com as quais ela - a premissa (2) - será demonstrada:

I) Um infinito atual não pode existir;
II) Um regresso temporal infinito de eventos é um infinito atual;
III) Logo, um regresso temporal infinito não pode existir.

O argumento sustenta que o universo começou a existir porque um infinito atual não pode existir e um regresso temporal infinito é um infinito atual.

Quanto à premissa (I), imagine-se, para efeito de ilustração, alguém que conte o número de peças de dominó enfileiradas em uma sala. Imagine-se também que o número das peças seja finito - 400 peças, por exemplo - e que o contador efetue sua averiguação iniciando pela última peça e proceda recuando até a primeira.

Por mais tempo que ele leve para ir da última peça à primeira, ele consegue contar todas porque são limitadas e estão todas presentes simultaneamente. Em um conjunto limitado de peças, o contador chega seguramente a um fim em sua contagem. Há uma peça além da qual não há nenhuma outra peça, isto é, há uma primeira peça.

Mas, e se as peças forem infinitas? Elas serão, por lógica, ilimitadas. Nesse caso, por mais que o contador as enumere, sempre haverá uma anterior. Não há nenhuma peça anterior à qual não há nenhuma peça. Nunca chegará ao fim a enumeração do contador.

Ora, segundo o argumento do Kalam, afirmar que há um infinito atual seria como afirmar que há realmente um número infinito de peças de dominó a contar e que alguém pode realmente contá-las, pois estão todas presentes simultaneamente. É como dizer que se pode atravessar uma extensão infinita em um tempo finito.

Se as peças são realmente infinitas, elas jamais poderão ser contadas. No fundo, a idéia de um infinito atual seria como a idéia contraditória de que as peças são infinitas em número e ainda assim enumeráveis até o fim.

Note-se que não se trata aqui de negar que uma quantidade infinita seja contável. Em certo sentido, ela é. Pode-se muito bem contar a partir de qualquer número e ir adiante sem limites até onde se queira. O busílis, no entanto, não é esse. O problema situa-se em afirmar que essa quantidade infinita seja enumerável até o fim. 

O infinito atual significa que uma quantidade infinita é real, atualizada, por assim dizer, terminada. Uma quantidade limitada de peças de dominó pode ser contada justamente porque todas as peças estão presentes simultaneamente, realmente, atualmente. É uma quantidade com um termo, um fim.

Uma quantidade infinita de peças de dominó não poderia ser contada justamente porque jamais estaria totalmente presente, atualizada, dada e terminada. Em outros termos, o infinito quantitativo é sempre potencial, sempre sendo adicionado e nunca alcançando qualquer termo, qualquer fim. Donde segue-se que somente quantidades limitadas podem ser realmente contadas até o fim porque todos os seus elementos são atuais, presentes, não potenciais.

A contradição reside no fato de que uma série quantitativa infinita atual implica que todos os seus membros estejam atualizados, que nada reste a ser adicionado. Mas o próprio conceito de infinito quantitativo implica que sempre mais uma unidade pode ser adicionada à última. O infinito quantitativo é justamente aquilo que nunca é completo, que nunca pode exibir todos os seus membros justamente porque sempre há um membro ou unidade posterior a ser adicionada.

O ponto da premissa (II) é que se o regresso temporal for infinito, ao recuarmos no tempo sempre e sempre, nunca chegaremos a um tempo T para além do qual o mundo não existia. Para qualquer tempo T no passado, sempre será possível conceber um tempo anterior a T.

Em tese, a conclusão seria a de que o regresso no tempo é infinito. E se ele é infinito, ele é realmente infinito, ou seja, todos os momentos passados estão como em uma adição sucessiva. Há uma quantidade infinita real de momentos antecedentes ao tempo presente. Para qualquer momento que se queira no passado, haveria sempre um anterior.

Ora, se:

a) Uma coleção formada por adição sucessiva não pode ser atualmente infinita;

E se:

b) A série temporal de eventos passados é uma coleção formada por adição sucessiva;

Então,

c) a série temporal de eventos passados não pode ser atualmente infinita.

Isto é, afirmar que o regresso infinito temporal é um infinito atual é o mesmo que afirmar que o passado é realmente infinito. Por conseguinte, a tese de que o regresso temporal é infinito sofre das mesmas contradições que a afirmação da existência de um infinito atual.

O que significa afirmar que necessariamente não há um regresso infinito de eventos e, por conseguinte, há um tempo T anterior ao qual não havia mundo. Em outros termos, o mundo necessariamente teve um início, como afirma a premissa (2) do argumento principal.

A verdade da premissa (2) repousa sobre a verdade de (a), que não pode existir um infinito quantitativo atual, e a verdade de (b), que a série temporal de eventos passados é uma coleção formada por adição sucessiva. Pois se a série temporal de eventos passados não for uma adição sucessiva, ela não será um infinito quantitativo atual e, por essa razão, sua inexistência necessária não estará demonstrada.

Em defesa de (b), os defensores do argumento asseveram que o recuo que fazemos no passado, do tempo T° em que estamos para os momentos anteriores, assume o aspecto de uma adição sucessiva. Tomamos o tempo T° atual e recuamos ao momento imediatamente anterior T¹ e de T¹ recuamos a T², de T² recuamos a T³ e assim sucessivamente, sempre adicionando mais um membro à coleção.

Garantida a verdade de (2), garante-se a conclusão (3), pois nesse caso, o mundo necessariamente teve um início. Se teve um início, começou a existir. Como o que começou a existir só pode ter começado a existir por agência de uma causa já existente, então o mundo precisou ser conduzido à existência por algo necessariamente fora dele.

Há causa para o mundo. Causa única ou múltipla? Se uma série infinita atual é impossível, então a causa do mundo não pode ser um conjunto infinito de causas. Por outro lado, se cada uma das causas veio a existir por agência de outras causas e o conceito de mundo compreende todos os entes que vieram a ser em algum momento, então todas as causas causadas por outras causas sucessivas fariam, por conseguinte, parte desse mundo e seriam, elas mesmas, causadas pela causa do mundo.

Como ela é causa do mundo, deve necessariamente ser externa ao mundo, deve ser onipotente, pois é causa de tudo, deve ser imaterial, pois não possui as limitações do mundo, etc. Sendo assim, a causa do mundo seria o que se concebe usualmente como Deus.

...

Para uma moderna e mais detalhada exposição do argumento Kalam:

http://www.reasonablefaith.org/popular-articles-the-kalam-cosmological-argument

* "The New Atheists and the Cosmological Argument", Midwest Studies in Philosophy, XXXVII (2013)

6 comentários:

Yuri S. disse...

Achei muito interessante o argumento. Só tenho dúvidas quanto a afirmar que um regresso temporal infinito não pode existir, pois o mesmo repousa na premissa de que o tempo é quantizável do mesmo modo que "peças de um dominó", quando na realidade a contagem do tempo é mera analogia. Além disso, me parece estranha a idéia de que um infinito atual, para eventos do passado. De fato, se o tempo não tivesse tido início, ele não poderia ser atual (não seria possível existir todos os tempos ao mesmo tempo), mas isso nunca foi o caso realmente.

O argumento me parece muito bom quando utilizado "no presente", mas não sei se poderia justificar um início para o tempo.

R. Oleniski disse...

Olá Yuri.

Em termos gerais, tenho a mesma opinião que a sua. Acho que o ponto fraco do argumento reside na afirmação de que o retorno no passado se constitui em um infinito quantitativo atual.

Creio que seja uma confusão entre a natureza do tempo e a natureza do espaço. Este sim pode ser atravessado justamente porque todos os seus "pontos" estão atualizados simultaneamente. Portanto posso ir do ponto A ao ponto Z passando pelos "pontos" B,C,D.E, etc, e retornar de Z para A sem problemas, já que cada um dos "pontos" permanece lá tanto na ida quanto na vinda.

Já no tempo isso não acontece. Cada instante sucede ao anterior e este não está mais "lá" para ser revivido. Se um evento inicia no momento A e se desenrola até encerramento no momento Z, quando chegamos a Z não podemos retornar a A a não ser como lembrança.

Abraços!

Yuri S. disse...

Uma aplicação interessante seria no caso da coexistência dos tempos (como os eternalistas que consideram que o passado, o presente e o futuro são igualmente reais, ou que os três coexistem em Deus etc). Nesse caso me parece que iria implicar necessariamente um começo dos entes e um fim dos entes, ou ao menos a total imutabilidade dos mesmos (este último não estou tão seguro). A princípio não parece tão controverso, já que a maioria dos teístas acreditam num início e fim dos tempos, mas iria implicar que seria impossível uma existência humana perene, como no caso da crença da ressurreição dos mortos e da vida "eterna" (coloquei entre aspas porque muitos querem implicar numa vida perene com este termo), e a coexistência dos tempos.

Guilherme disse...

Olá. Nem neste nem noutros textos que li sobre filosofia islâmica no blog encontrei fonte ou recomendação bibliográfica. Sou inteiramente novo no assunto, queria uma visão geral da história dessa filosofia. Pode dizer se alguma obra de introdução ao tema é particularmente boa? E trabalhos monográficos sobre as diferentes etapas do desenvolvimento dessa filosofia, pode sugerir alguns? Imagino o quanto este tipo de consulta seja inconveniente, eu mesmo não gosto de recomendar livros — mas agradeço a atenção.

R. Oleniski disse...

Olá, Guilherme.

Eis uma pequena bibliografia:

Em francês:

CARRA DE VAUX, Les penseurs de l'islam. 5 vols. Paris: Geuthner, 1921
FAKHRY, M. Histoire de la philosophie islamique. Paris: Les Editions du Cerf, 1989

HENRY CORBIN:

Histoire de la philosophie islamique, coll.« Idées », Gallimard, 1964.
En islam iranien: aspects spirituels et philosophiques, 2e éd., Gallimard, 1978, 4 vol
Avicenne et le récit visionnaire, rééd. Verdier, 1999.
L'Imam caché, L'Herne, 2003.
Le Paradoxe du monothéisme, l'Herne, 1981.

Temps cyclique et gnose ismaélienne, Berg International, 1982.

Face de Dieu, face de l'homme, Flammarion, 1983.

L'Alchimie comme art hiératique, L'Herne, 1986.

Philosophie iranienne et philosophie comparée, Buchet/Chastel, 1979.

Corps spirituel et Terre céleste: de l'Iran mazdéen à l'Iran shî'ite, 2e éd. entièrement révisée, Buchet/Chastel, 1979, 303p.

L'Imagination créatrice dans le soufisme d'Ibn'Arabî, 2e éd., Flammarion, 1977.

Temple et Contemplation, Flammarion, 1981.

L'Homme de lumière dans le soufisme iranien, 2e éd., Éditions « Présence », 1971.

Le Jasmin des fidèles d'amour, par Rûzbehân, traduit du persan par Henry Corbin, éd. Verdier, lagrasse 1991.

L'Homme et son ange. Initiation et chevalerie spirituelle, rééd. Fayard, 2003.


Em espanhol:

HERNÁNDEZ, M. C., Historia del pensamiento en el mundo islámico. Madrid: Alianza Editorial: 2000


Em português:

AVERRÓIS. O Discurso Decisivo. São Paulo: Martins Fontes

AVICENA. A Origem e o Retorno. São Paulo: Martins Fontes

AVICENA. O Livro da Alma. São Paulo: Editora Globo

ATTIE FILHO, M. Os sentidos internos em Ibn Sina (Avicena) P. Alegre: Edipucrs, 2000.

ATTIE FILHO, M. O intelecto em Ibn Sina (Avicena). São Paulo: Ateliê, 2007.

ATTIE FILHO, M. Falsafa, a filosofia entre os árabes. São Paulo: Palas Athena, 2002.

CAMPANINI, M. Introdução à Filosofia Islâmica. São Paulo: Estação Liberdade

ISKANDAR, Jamil Ibrahim. Compreender Al Farabi e Avicena. São Paulo: Vozes

Guilherme disse...

Maravilha. Muito obrigado!