"Mas esta é a vossa hora e o poder das trevas." (Lucas 22:53)
O casal homem-mulher é símbolo do homem tomado como unidade substancial, como inteireza que unifica e dá sentido às potências distintas, mas não separadas, da alma. A mulher representa a parte nutritivo-apetitiva e o homem representa a parte intelectiva. A ordenação homem-mulher reflete a ordenação sadia das potências humanas: o intelecto governando a escolha dos bens apetecíveis.
No Éden, Adão é tentado não pela serpente, mas por Eva. Esta, ao receber a fruta da serpente, representa simbolicamente o apetite humano que se inclina àquilo que considera um bem. A fruta é símbolo de um bem correspondente àquela porção mais básica e menos humana da alma. Não à toa é uma serpente a tentadora. É o animal, o apetite, que dita a dinâmica dos atos. A mulher, a parte apetitiva, abaixa-se ao nível do animal ao conceber em si o desejo por bens tão pedestres.
Contudo, em si mesmos, os bens mais pedestres não são maus. Tornam-se maus quando usurpam o lugar dos superiores. É o que acontece quando Eva apresenta a fruta a Adão. O princípio intelectivo não mantém a ordenação sadia das potências, mas abaixa-se para provar o bem imediato e pedestre, esquecendo o summum bonum.
A proibição divina manifesta a hierarquia das coisas. A árvore no centro do mundo ascende simbolicamente como uma escada aos céus. Ao escolher seus frutos e não seu Criador, o homem escolhe os bens pedestres ao invés do único bem verdadeiro. Por isso o homem passa a conhecer o bem e o mal. Não porque um dependa do outro, mas porque o mal só aparece no recuo do bem. O homem perfeitamente ordenado não conhece o mal pois tudo nele é bom. O mal só se apresenta como ausência da perfeição. O mal é perda.
O equilíbrio perdido é dificilmente recuperável e o destino dos homens é viver fora do Éden, fora da perfeição harmoniosa de sua natureza, contudo sempre anelando pelo dia do retorno. Cada homem, então, é um Éden desfeito, tendo em si um Adão e uma Eva desterrados, ansiosos pela conjugação perfeita de suas potências.
O horizonte simbólico de Kumonosu-jo (Trono Manchado de Sangue), filme clássico do grande diretor japonês Akira Kurosawa, é também formado pelo casal - Washizu (Macbeth) e Lady Asaji (Lady Macbeth) - , pelo desejo proibido, pela usurpação e pela desgraça que dele se segue. Baseado em Macbeth, de William Shakespeare, a trama sombria do filme segue as linhas gerais da peça trágica do bardo inglês.
Taketoki Washizu (interpretado pelo fantástico Toshiro Mifune) é um nobre guerreiro corajoso e leal que conduz os exércitos de seu senhor Kuniharu Tsuzuki (rei Duncan) à vitória sobre seus inimigos, revertendo uma derrota quase certa. Ao final da batalha, ele parte com seu fiel amigo Yoshiteru Miki para apresentar-se a seu senhor.
No caminho, ambos são surpreendidos por uma tempestade e, perdidos, acabam por encontrar uma choupana onde uma velha fiandeira os recebe com saudações as mais surpreendentes. A Washizu ela diz que ele será o senhor do castelo do Norte e, por fim, senhor do Castelo da Teia de Aranha, onde agora reina seu senhor, Tsuzuki. A Miki a anciã declara que ele será senhor do primeiro castelo e que seu filho será senhor do Castelo da Teia de Aranha.
Ao ser ameaçada por Washizu, a velha desaparece tal qual um espírito. Os guerreiros retomam seu caminho pensativos e, chegados ao castelo de seu senhor, por ele são calorosamente recebidos. Como recompensa, Tsuzuki nomeia Washizu senhor do castelo do norte e Miki senhor do primeiro castelo. Ambos dão-se conta que a velha misteriosa havia dito a verdade.
A velha fiandeira que prediz o futuro traz em si algo das três Moirae - Lachesis, Athropos e Clotho -, deusas que fiavam, mediam e cortavam o fio da vida humana na mitologia grega. Elas sabem o destino dos homens, por isso podem proclamá-lo. Na fala da velha, ver-se-á ao final, há a ambiguidade tradicional das profecias: o que é predito realiza-se de uma forma inesperada, frustrando as expectativas e as interpretações daqueles sobre os quais elas versam.
O que a velha espectral profetiza põe em movimento a roda dos acontecimentos funestos apresentados na trama. É ela, no entanto, a causa das desgraças de Washizu? Este não estaria condenado a buscar a realização daquela profecia simplesmente pelo fato de a haver dela tomado conhecimento?
Washizu já tivera antes em seu íntimo o desejo de tornar-se rei, sem dúvida. Não poderia ser diferente em se tratando de um guerreiro nobre. Mesmo assim, do desejo ao crime há um grande abismo. Ainda mais se o caminho que leva ao trono implica na quebra de leis sagradas como as da lealdade e da hospitalidade.
Humanamente, nada o obriga a cometer tão horrendo crime. Ele foi plenamente honrado por Tsuzuki com bens largamente condizentes com sua bravura na guerra. Nada lhe foi tirado. Não há uma Bríseis e nenhum Agamemnon para a fúria de Aquiles. Nenhum motivo justificaria um assassínio covarde como o que Washizu irá cometer.
A velha etérea dá voz ao desejo íntimo do coração de Washizu. Ela, de certa forma, age como a serpente a formular claramente o que o casal edênico já desejava. Toda tentação é tentação porque corresponde a alguma disposição apetitiva já presente no tentado. Washizu quer ser o senhor do Castelo da Teia de Aranha.
Mas nada disso implica que Tsuzuki deva ser assassinato. Esse é o ponto crucial da tragédia. É aqui que Washizu mostra seu verdadeiro caráter. Sua reação a dois componentes novos na situação determina os rumos da trama e o destino de sua alma.
Em primeiro lugar, uma oportunidade apresenta-se como que fortuitamente. Tsuzuki, em viagem, irá hospedar-se no castelo de Washizu. O guerreiro compreende facilmente que pode chegar ao trono simplesmente matando seu senhor durante a noite. Ele tem consciência clara da gravidade de tal ato. Hesita.
Então entra o segundo componente, as palavras de sua esposa, Lady Asaji. A mulher cobra-lhe a atitude de "verdadeiro homem", insinua que ele é covarde, apresenta-lhe todo o esquema do assassinato, humilha-o com seu desprezo, instila a desconfiança contra Tsuzuki em seu íntimo, alimenta a sua ambição.
Washizu, fraco, cede. Lady Asaji já usurpara o seu lugar e Washizu capitulara ante as palavras da esposa. O crime se dá como o planejado. Asaji embebeda as sentinelas e Washizu penetra livremente nos aposentos de Tsuzuki e o mata. O alarme é soado por Asaji e Washizu, fingindo comoção diante dos outros hóspedes, mata as sentinelas adormecidas antes que pudessem dizer qualquer coisa.
A trama da usurpação do trono por Washizu reflete exteriormente a usurpação do mal sobre a virtude no interior das almas de Washizu e de Lady Asaji. Se tomados como uma unidade, o guerreiro e sua esposa simbolizam o homem cuja ordenação das potências da alma desfez-se. Tragado pelo desejo, pela ambição, todas as regras mais fundamentais são quebradas pelo homem desordenado.
O castelo é a árvore do bem e do mal. É o eixo do mundo. A usurpação é exatamente a tentativa de conquistar o bem supremo identificando-o com os bens pedestres. Washizu toma o trono que não lhe pertence e assim instala simbolicamente no centro do mundo seus próprios desejos. É ele agora que define o bem e o mal. Washizu não se submete à hierarquia das coisas, mas, ao contrário, revolta-se contra ela e a subverte.
Visto por esse prisma, Washizu não é menos que demoníaco. Que é o demônio senão um anjo que desviou seu rosto da contemplação divina para a contemplação de seus próprios desejos? Tsuzuki, seu senhor, representa a virtude e o direito. Ele é justo e recompensa generosamente aqueles que lhe são leais. Washizu provou dessa generosidade. Porém, isso não é suficiente. Ele quer o lugar de Tsuzuki, mesmo não possuindo a envergadura moral para sentar-se no trono. "Better to reign in Hell, than to serve in Heaven", diz o Lúcifer de Milton.
Washizu reina e o horror instala-se. A profecia sobre o filho de Miki tornar-se um dia rei atormenta-o e Washizu ordena secretamente a morte de seu antigo amigo, sem contudo conseguir assassinar o filho. Este foge para junto do filho de Tsuzuki e seus homens no exílio.
O mal que Washizu realizou começa a exigir vingança. O fantasma de Miki atormenta-o durante um banquete. A consciência dá sinais de impor-se pelo remorso. A tragédia abate-se sobre ele: Lady Asaji engravida logo em seguida, mas a criança nasce morta. Não haverá herdeiro do Grande Senhor Washizu.
Unidos em torno do filho de Tsuzuki, seus inimigos iniciam uma guerra de reconquista e tomam os castelos de Washizu, restando-lhe somente o Castelo da Teia de Aranha. Onde buscar auxílio senão nas forças que profetizaram sua chegada ao poder? Washizu consulta a velha etérea e esta promete-lhe que nada deverá temer enquanto a floresta da Teia de Aranha não atacar o castelo de Washizu.
Os inimigos de Washizu acampam na floresta para atacar sua fortaleza. Ele nada teme. Confiante que está na profecia, revela-a a seus homens reunidos para o combate. Não obstante, sinais de desgraça acontecem. Pássaros entram na fortaleza em debandada. Lady Asaji sucumbe ao remorso e à dor pela perda de seu filho e enlouquece. O desfecho está próximo.
Por fim, ao alvorecer, uma sentinela apavorada lhe diz que a floresta avança contra a fortaleza. Washizu, desesperado, contempla pela torre o movimento das árvores. Seus inimigos cortaram-nas e usaram-nas como cobertura para seu avanço. Mais uma vez o sentido da profecia era ambíguo e obscuro. A profecia cumpriu-se exatamente como fora profetizada. Washizu ouviu o que queria ouvir.
Os soldados de Washizu, sabendo da profecia de sua derrocada, alvejam seu senhor com inúmeras flechas e o matam. O ciclo da violência e do crime encerra-se. Washizu, o assassino de seu senhor, é morto por seus homens. O destino do ambicioso e criminoso é a morte pelas mãos das próprias forças que ele conjurara.
Ao ser ameaçada por Washizu, a velha desaparece tal qual um espírito. Os guerreiros retomam seu caminho pensativos e, chegados ao castelo de seu senhor, por ele são calorosamente recebidos. Como recompensa, Tsuzuki nomeia Washizu senhor do castelo do norte e Miki senhor do primeiro castelo. Ambos dão-se conta que a velha misteriosa havia dito a verdade.
A velha fiandeira que prediz o futuro traz em si algo das três Moirae - Lachesis, Athropos e Clotho -, deusas que fiavam, mediam e cortavam o fio da vida humana na mitologia grega. Elas sabem o destino dos homens, por isso podem proclamá-lo. Na fala da velha, ver-se-á ao final, há a ambiguidade tradicional das profecias: o que é predito realiza-se de uma forma inesperada, frustrando as expectativas e as interpretações daqueles sobre os quais elas versam.
O que a velha espectral profetiza põe em movimento a roda dos acontecimentos funestos apresentados na trama. É ela, no entanto, a causa das desgraças de Washizu? Este não estaria condenado a buscar a realização daquela profecia simplesmente pelo fato de a haver dela tomado conhecimento?
Washizu já tivera antes em seu íntimo o desejo de tornar-se rei, sem dúvida. Não poderia ser diferente em se tratando de um guerreiro nobre. Mesmo assim, do desejo ao crime há um grande abismo. Ainda mais se o caminho que leva ao trono implica na quebra de leis sagradas como as da lealdade e da hospitalidade.
Humanamente, nada o obriga a cometer tão horrendo crime. Ele foi plenamente honrado por Tsuzuki com bens largamente condizentes com sua bravura na guerra. Nada lhe foi tirado. Não há uma Bríseis e nenhum Agamemnon para a fúria de Aquiles. Nenhum motivo justificaria um assassínio covarde como o que Washizu irá cometer.
A velha etérea dá voz ao desejo íntimo do coração de Washizu. Ela, de certa forma, age como a serpente a formular claramente o que o casal edênico já desejava. Toda tentação é tentação porque corresponde a alguma disposição apetitiva já presente no tentado. Washizu quer ser o senhor do Castelo da Teia de Aranha.
Mas nada disso implica que Tsuzuki deva ser assassinato. Esse é o ponto crucial da tragédia. É aqui que Washizu mostra seu verdadeiro caráter. Sua reação a dois componentes novos na situação determina os rumos da trama e o destino de sua alma.
Em primeiro lugar, uma oportunidade apresenta-se como que fortuitamente. Tsuzuki, em viagem, irá hospedar-se no castelo de Washizu. O guerreiro compreende facilmente que pode chegar ao trono simplesmente matando seu senhor durante a noite. Ele tem consciência clara da gravidade de tal ato. Hesita.
Então entra o segundo componente, as palavras de sua esposa, Lady Asaji. A mulher cobra-lhe a atitude de "verdadeiro homem", insinua que ele é covarde, apresenta-lhe todo o esquema do assassinato, humilha-o com seu desprezo, instila a desconfiança contra Tsuzuki em seu íntimo, alimenta a sua ambição.
Washizu, fraco, cede. Lady Asaji já usurpara o seu lugar e Washizu capitulara ante as palavras da esposa. O crime se dá como o planejado. Asaji embebeda as sentinelas e Washizu penetra livremente nos aposentos de Tsuzuki e o mata. O alarme é soado por Asaji e Washizu, fingindo comoção diante dos outros hóspedes, mata as sentinelas adormecidas antes que pudessem dizer qualquer coisa.
A trama da usurpação do trono por Washizu reflete exteriormente a usurpação do mal sobre a virtude no interior das almas de Washizu e de Lady Asaji. Se tomados como uma unidade, o guerreiro e sua esposa simbolizam o homem cuja ordenação das potências da alma desfez-se. Tragado pelo desejo, pela ambição, todas as regras mais fundamentais são quebradas pelo homem desordenado.
O castelo é a árvore do bem e do mal. É o eixo do mundo. A usurpação é exatamente a tentativa de conquistar o bem supremo identificando-o com os bens pedestres. Washizu toma o trono que não lhe pertence e assim instala simbolicamente no centro do mundo seus próprios desejos. É ele agora que define o bem e o mal. Washizu não se submete à hierarquia das coisas, mas, ao contrário, revolta-se contra ela e a subverte.
Visto por esse prisma, Washizu não é menos que demoníaco. Que é o demônio senão um anjo que desviou seu rosto da contemplação divina para a contemplação de seus próprios desejos? Tsuzuki, seu senhor, representa a virtude e o direito. Ele é justo e recompensa generosamente aqueles que lhe são leais. Washizu provou dessa generosidade. Porém, isso não é suficiente. Ele quer o lugar de Tsuzuki, mesmo não possuindo a envergadura moral para sentar-se no trono. "Better to reign in Hell, than to serve in Heaven", diz o Lúcifer de Milton.
Washizu reina e o horror instala-se. A profecia sobre o filho de Miki tornar-se um dia rei atormenta-o e Washizu ordena secretamente a morte de seu antigo amigo, sem contudo conseguir assassinar o filho. Este foge para junto do filho de Tsuzuki e seus homens no exílio.
O mal que Washizu realizou começa a exigir vingança. O fantasma de Miki atormenta-o durante um banquete. A consciência dá sinais de impor-se pelo remorso. A tragédia abate-se sobre ele: Lady Asaji engravida logo em seguida, mas a criança nasce morta. Não haverá herdeiro do Grande Senhor Washizu.
Unidos em torno do filho de Tsuzuki, seus inimigos iniciam uma guerra de reconquista e tomam os castelos de Washizu, restando-lhe somente o Castelo da Teia de Aranha. Onde buscar auxílio senão nas forças que profetizaram sua chegada ao poder? Washizu consulta a velha etérea e esta promete-lhe que nada deverá temer enquanto a floresta da Teia de Aranha não atacar o castelo de Washizu.
Os inimigos de Washizu acampam na floresta para atacar sua fortaleza. Ele nada teme. Confiante que está na profecia, revela-a a seus homens reunidos para o combate. Não obstante, sinais de desgraça acontecem. Pássaros entram na fortaleza em debandada. Lady Asaji sucumbe ao remorso e à dor pela perda de seu filho e enlouquece. O desfecho está próximo.
Por fim, ao alvorecer, uma sentinela apavorada lhe diz que a floresta avança contra a fortaleza. Washizu, desesperado, contempla pela torre o movimento das árvores. Seus inimigos cortaram-nas e usaram-nas como cobertura para seu avanço. Mais uma vez o sentido da profecia era ambíguo e obscuro. A profecia cumpriu-se exatamente como fora profetizada. Washizu ouviu o que queria ouvir.
Os soldados de Washizu, sabendo da profecia de sua derrocada, alvejam seu senhor com inúmeras flechas e o matam. O ciclo da violência e do crime encerra-se. Washizu, o assassino de seu senhor, é morto por seus homens. O destino do ambicioso e criminoso é a morte pelas mãos das próprias forças que ele conjurara.
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