"O que entendo por historicismo será explicado em detalhe no presente estudo. Que seja suficiente aqui dizer que entendo por esse termo uma teoria, referindo-se a todas as ciências sociais, que faz da predição histórica seu principal objetivo e que ensina que semelhante objetivo pode ser atingido se são descobertos os 'ritmos' ou os "padrões", as 'leis' ou as 'tendências', que subjazem à evolução da história."
KARL POPPER, The Poverty of Historicism, Prefácio
The Poverty of Historicism (1944) é uma substanciosa crítica de Karl Popper ao que ele denominava historicismo, tese segundo a qual a história humana é regida por uma lei férrea e imutável de evolução que pode ser cientificamente apreendida, de tal mo que seria possível prever as etapas futuras dessa mesma evolução.
O livro é bastante detalhado, apresentando inicialmente, nos dois primeiros capítulos, as tendências pronaturalistas (afirmação da semelhança fundamental entre as ciências naturais e as ciências humanas) e antinaturalistas (negação dessa semelhança fundamental) presentes no historicismo.
Os dois últimos capítulos são dedicados à crítica dessas teses. O ponto mais interessante do livro é, sem dúvida, a crítica das tendências totalistas e utópicas do historicismo. Popper argumenta que a pretensão de um conhecimento total das relações sociais (totalismo) e a pretensão de reconstrução de cada aspecto dessas relações dentro da sociedade (utopismo) são objetivos não somente equivocados, já que toda ciência é sempre um recorte da realidade, mas uma impossibilidade lógica, pois não há como alguém (ou um grupo) possuir conhecimento de todos os aspectos da realidade.
Dizer que as sociedades e grupos humanos são "todos" e como tais devem ser entendidos não é, para Popper, a mesma coisa que dizer que é possível conhecer ou controlar todos os aspectos desses todos.
O "todo" pode ter duas acepções:
a) O todo considerado como a totalidade das propriedades ou dos aspectos de uma coisa;
b) Certas propriedades ou aspectos da coisa que a fazem aparecer como uma estrutura organizada e não como um mero amontoado.
Se é possível conhecer cientificamente os todos no sentido (b), não é possível conhecer os todos cientificamente no sentido (a). Conhecer as leis pelas quais um todo é um todo e não um amontoado é conhecer um regra geral, uma abstração que explica a natureza de todo do objeto, mas que não fornece conhecimento de toda e qualquer relação ou aspecto dentro desse todo.
A parte que se ambiciona estudar cientificamente em um objeto pode ser tomada como um todo a fim de que se possa abstrair a regra geral que explica esse todo. Disso não se segue, em absoluto, que seja possível entender cientificamente todo e qualquer aspecto ou relação dentro desse todo. O conhecimento científico é sempre seletivo, nunca totalista.
Em suma, os utopistas historicistas desconhecem o velho adágio escolástico segundo o qual todo conhecimento é totum sed non totaliter, isto é, o conhecimento de algo é o conhecimento de um todo tomado em sua generalidade e não da totalidade dos aspectos do objeto. É possível entender a regra que faz com que um time seja um time, mas isso não significa que se possa estudar cientificamente todos os aspectos e relações possíveis dentro desse todo.
Pouco adiantaria, como Popper assevera, argumentar que esse conhecimento totalista seria alcançado aos poucos, por meio de uma "integração" ou "síntese" gradual de todas as relações sociais estudadas em um todo, pois sempre será possível apontar um ou mais aspectos negligenciados na pesquisa. Não obstante, o fato de que uma idéia é falsa ou impossível de ser realizada concretamente não significa que ela não tenha efeitos concretos ou que a sua realização não seja tentada na realidade.
A engenharia social utópico-totalista pretende a remodelar a sociedade global segundo uma "maquete" determinada. Em termo práticos, contudo, esse método é irrealizável, assevera Popper. Quanto mais importantes forem as mudanças, maiores serão as repercussões involuntárias e inesperadas. Como ninguém tem controle de todos os processos, sempre haverá resultados imprevistos (e frequentemente desagradáveis) de medidas ou reformas tomadas, ainda mais se estas refletirem tentativas de mudanças globais.
O engenheiro social utópico-totalista será confrontado por situações imprevistas e será, por conseguinte, obrigado a tomar medidas improvisadas e pontuais. E como resultados imprevistos pululam, exigindo novas medidas pontuais e improvisadas, o resultado será uma "planificação não-planificada".
Por outro lado, a existência da incerteza do elemento pessoal (o fato de que os homens reagem diferentemente aos planejamentos) obrigam o engenheiro social utópico-totalista a controlar o elemento pessoal por meios institucionais. Em outros termos, é necessário controlar os impulsos humanos para que o plano de reforma totalista e utópico dê certo.
Essa necessidade, argumenta Popper, substitui a exigência original de construção da nova sociedade pela exigência de transformar o homem para fazê-lo adaptar-se à nova realidade. Ao invés de dar ao homem uma nova sociedade, um novo homem terá que ser criado para encaixar-se nessa sociedade. E isso suprime toda a possibilidade de crítica dos resultados dessa nova sociedade, pois o homem que não adapta-se a ela não será alguém com uma crítica racional de seus resultados concretos, mas somente alguém que ainda não é bom para ela.
Sendo necessário empreender a reconstrução da sociedade a partir das suas mais mínimas relações, como pensa o utopista, será necessário apelar para uma instância que possa realizar o controle daqueles recalcitrantes que não aceitam as reformas. Segue-se do fato de que a reconstrução levará tempo que a repressão deverá ser tão longa quanto o pretendido processo de reconstrução da sociedade. Resumindo, não há espaço para a crítica.
Há ainda, segundo o filósofo austríaco, uma causa mais fundamental para que não haja combinação possível entre o totalismo e o método científico. O engenheiro social utópico-totalista negligencia o fato de que, embora seja relativamente fácil centralizar o poder, é impossível centralizar o saber que está distribuídos pelas mentes individuais e que seria necessário para o sucesso do empreendimento planificador.
Como o controle total do saber distribuído nas mentes individuais é impossível de ser alcançado, a saída é a simplificação e eliminação das diferenças pessoais por meio da educação e da propaganda. O resultado, entretanto, é justamente a destruição do saber genuíno, do pensamento livre e da crítica racional.
A pretensa reconstrução social total, contudo, só tem sentido a partir da idéia de que se conhece o curso final da História e que, por isso, todo o trabalho feito para favorecer e/ou facilitar o fim inexorável da história humana é, na verdade, a mais perfeita expressão da racionalidade, do ativismo e da moralidade. É o que Popper denomina futurismo ético. Tudo o que é feito de acordo com as tendências que conduzem ao fim último é, por conseguinte, moral.
A pergunta é se realmente há tal lei de evolução histórica (ou biológica). Popper responde resolutamente: não. Isso por uma razão lógica simples. O processo, se há, da evolução humana no mundo não é uma lei universal justamente porque é um processo histórico singular. Isto é, a história humana é o desenrolar singular de um tipo de ser vivo, o homem, nesta terra. Só seria possível averiguar uma lei de evolução humana se fôssemos confrontados com outras instâncias dessa evolução em outros lugares.
Em outros termos, a ciência lida com leis universais. E para saber se uma hipótese ou "lei" é universal ou não, é necessário que ela seja verificada em mais de um caso. A pretendida evolução humana é uma asserção histórica singular. Portanto, não pode ser erigida como lei universal. Nem seria possível prever o futuro desenvolvimento de uma única instância. Por exemplo, como saber que a borboleta será o fim do desenvolvimento futuro da lagarta observando o comportamento de uma única lagarta?
Ora, do fato de que a história humana é singular não se segue, contudo, que não se possa determinar alguma tendência geral, uma direção que ela siga. Sim, Popper admite que uma coisa não se segue da outra. Mas o caso é que uma tendência geral, por saliente que seja, também não é uma lei natural.
Uma tendência geral é uma ocorrência histórica singular e, como tal, não tem a força preditiva de uma lei natural universal. Predições fundam-se em leis universais, mas não em tendências. As tendências, por longevas que sejam, podem muito bem desaparecer rapidamente por causas diversas, justamente porque são asserções históricas singulares.
Quando o cientista tenta explicar um fato singular qualquer, ele faz uso não somente de leis universais, mas também de condições iniciais. Por exemplo, se o cientista deseja saber as causas do rompimento de um fio determinado Y, de tipo X, ele explicará esse fato singular fazendo uso de:
1) Uma lei universal: "fios de tipo X, quando submetidos a uma tensão maior que tal e qual valor, arrebentam-se.";
2) Condição inicial: "este fio Y, de tipo X, foi submetido a uma tensão maior que tal e qual valor"
O rompimento do fio é explicado como uma dedução da lei universal e da condição inicial. Uma tendência geral, sendo um fato singular, não pode fazer o papel de uma lei universal em uma explicação. Ao contrário, por ser um fato singular, ela mesma deve ser explicada pela dedução de uma lei universal e de condições iniciais. Tendências, por conseguinte, permanecem enquanto permanecerem as condições iniciais.
O erro historicista central, afirma Popper, é justamente a confusão entre lei universal e tendência geral. Ao identificar a segunda à primeira, o historicista crê estar diante de uma lei natural quando percebe alguma tendência geral. Ou seja, o que seriam meras tendências que dependem de condições iniciais, o historicista toma como legítimas leis universais que, em conjunto com as condições iniciais, explicam fatos singulares.
Popper fornece um exemplo para ilustrar sua crítica. Segundo Marx, há uma tendência geral de acumulação dos meios de produção. Essa tendência, contudo, por forte que seja, não pode persistir se houver um rápido decréscimo de população, o que pode acontecer graças a fatores extra-econômicos como fatores biológicos. Há condições múltiplas necessárias para a permanência dessas tendências e o historicista não pode imaginá-las porque já tomou certas tendências como leis universais imutáveis.
Outro ponto da questão da lei universal de evolução é o problema dos termos teóricos utilizados pelos historicistas. Popper argumenta que todo o vocabulário de "movimento" social, "tendência", "vetor" "trajetória", "direção", etc., foi retirado da Física como um conjunto de metáforas meramente convenientes e não como conceitos científicos rigorosos.
No frigir dos ovos, contudo, não há nada parecido com um "movimento da história humana" no sentido do deslocamento de um corpo físico relativamente a um espaço estacionário. Não há movimento da sociedade em um sentido semelhante ou análogo ao movimento dos corpos físicos e, por conseguinte, não pode haver nenhuma lei desse gênero como as há na Física.
Naturalmente, Popper adverte, essas críticas não atingem a cientificidade que as ciências humanas compartilham com as ciências naturais. E essa cientificidade está justamente no processo de conjecturas e de refutações, a tese central da epistemologia popperiana. Científica é a teoria da qual se possa derivar logicamente predições empíricas testáveis intersubjetivamente.
Ora, se não há lei universal da evolução humana, não há utopia e, por conseguinte, não há experimentos sociais globais. Só são possíveis experimentos localizados e determinados. Consequentemente, tudo o que as ações políticas e sociais podem fazer, por exemplo, é pôr em prática uma engenharia social pontual, isto é, propor medidas localizadas como solução para problemas determinados que serão controladas por seus resultados.
The Poverty of Historicism é uma das obras principais de Popper onde as relações entre epistemologia, crítica social e política são claramente expostas. O utopismo e o historicismo não são para Popper somente ideologias políticas, são teses epistemológicas errôneas com consequências desastrosas para a sociedade e para a liberdade.
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