quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Curta introdução ao externalismo epistemológico



A despeito de algumas obscuridades óbvias, como as que cercam a relação entre a justificação e o acesso do sujeito conhecedor àquilo que justifica suas crenças, pode-se afirmar com segurança que o internalismo tem na deontologia sua característica mais expressiva. O que importa em termos de conhecimento é quanto o agente se esforçou para atingir a excelência epistêmica. 

Se ele cumpriu todos os seus deveres, então nada o impedirá suas crenças verdadeiras de receber a chancela de conhecimento. É justamente contra esse ponto central da tradição internalista que alguns filósofos, conhecidos como externalistas, irão se posicionar a fim de formular uma alternativa teórica que dê conta satisfatoriamente da questão do conhecimento. 

“Externalismo” é a designação dada a um conjunto bastante diversificado de teorias sobre o conhecimento que têm em comum a negação do deontologismo internalista. O sujeito S não está justificado em suas crenças verdadeiras, ou seja, não tem conhecimento legítimo graças ao cumprimento diligente e voluntário de certos deveres epistêmicos aos quais tem pleno acesso e consciência. O que confere o caráter de conhecimento às suas crenças está fora do seu alcance imediato. 

Segundo Laurence Bonjour, o confiabilismo é a versão mais discutida e defendida do externalismo e se baseia na ideia de que 

"o que torna uma crença epistemicamente justificada é a confiabilidade cognitiva do processo causal por meio do qual a crença é produzida, ou seja, o fato de que o processo em questão leva a uma alta proporção de crenças verdadeiras, com o grau de justificação dependendo do grau de confiabilidade. Se o processo que cria a crença é confiável dessa forma, então (todas as condições sendo iguais) será objetivamente razoável ou provável no mesmo grau que a crença particular em questão, tendo sido produzida dessa forma, seja ela mesma verdadeira."


O que torna o confiabilismo uma forma de externalismo, salienta Bonjour, é que o sujeito conhecedor não necessita ter qualquer acesso privilegiado à própria confiabilidade dos processos cognitivos que fornecem suas crenças para que esteja plenamente justificado. 

Se suas faculdades cognitivas ou métodos de conhecimento forem real e objetivamente confiáveis, ainda que o agente nada saiba acerca desse caráter de confiabilidade, então as crenças hauridas por meio desses processos e métodos terão um status epistêmico positivo, isto é, serão conhecimento legítimo.

O exemplo mais óbvio para ilustrar essa tese externalista é o da percepção sensível. Quando o sujeito S percebe através de seus órgãos visuais que há um cachorro à sua frente, se seus órgãos são confiáveis, nada o impede de estar justificado em sua crença de que há um cachorro à sua frente. 

Ainda que o sujeito S jamais tenha se questionado acerca da confiabilidade de seus olhos e de seu aparelho cognitivo visual e ainda que ele nunca venha um dia a conhecer o grau de confiabilidade dos mesmos, ele ainda estará plenamente justificado em suas crenças.

Nenhum dever epistêmico é aqui exigido para que haja conhecimento. Nenhuma norma indispensável sem a qual não há justificação é especificada. Do sujeito S não é exigido que ele tente obter excelência epistêmica e nem sequer que se esforce para cumprir suas responsabilidades enquanto ser racional. 

O que confere o caráter de justificação e, por conseguinte, de conhecimento às suas crenças é o grau de confiabilidade dos processos cognitivos que as criaram. Mesmo um agente relapso e leviano em suas investigações e atividades epistêmicas pode estar plenamente justificado em suas crenças desde que estas sejam produto de faculdades ou métodos confiáveis.

A partir dessa perspectiva, métodos lógicos e probabilísticos de inferência também são julgados de acordo com sua confiabilidade. Se tais métodos (cumpridos seus requerimentos específicos) têm a tendência de produzir mais asserções verdadeiras do que falsas, então o sujeito S que os utiliza em seus raciocínios e argumentos estará justificado em crer naquilo que é produzido por esses processos, mesmo que não tenha conhecimento do grau de confiabilidade deles. 

Dessa forma, mesmo crianças pequenas e animais podem estar justificados uma vez que o que importa é a confiabilidade dos processos cognitivos e não a consciência ou a iniciativa em se conformar com pretensos deveres epistêmicos.

Na concepção do filósofo externalista as condições descritas até aqui, juntamente com a crença e a verdade da crença, seriam necessárias e suficientes para se atribuir conhecimento a um sujeito conhecedor qualquer. Evidentemente, essa tese apresenta problemas teóricos que são explorados por seus adversários, internalistas ou não. Laurence Bonjour aponta para três objeções as quais considera como as mais importantes e que questionam a confiabilidade como critério para o conhecimento. 

A primeira dessas objeções faz uso, novamente, de um demônio cartesiano enganador.  Suponha-se um grupo de pessoas submetido aos desígnios malévolos de um demônio que controla todas as suas faculdades. Sob o poder dessa criatura, o grupo crê se encontrar num mundo muito parecido com o nosso, com seres atuando uns sobre os outros causalmente no tempo e no espaço. 

Os componentes do grupo criam teorias sobre esse mundo e chegam a determinadas conclusões ditadas por princípios epistemológicos válidos. Apesar de tanta diligência, as suas conclusões são falsas, pois o mundo que experimentam não existe.

O filósofo externalista diria que o grupo não tem conhecimento porque suas crenças são fruto de processos cognitivos que estão longe de serem confiáveis. Bonjour, entretanto, afirma que seria intutivamente inválido afirmar que seres que tomaram todas as providências para conhecer corretamente seu mundo não estejam justificados em suas crenças. 

Uma resposta possível a essa objeção é afirmar que estão justificadas as crenças produzidas por faculdades e processos que teriam confiabilidade em um mundo “normal” (naquele em que realmente existem os seres e situações que são percebidos), ainda que os mesmos estejam funcionando em um mundo bizarro criado por um demônio. Por esse motivo, as pessoas do grupo estariam totalmente justificadas.

A segunda objeção é de certa forma óbvia, pois se o que importa para a justificação é que a crença seja produzida por faculdades confiáveis, então nada impede haja processos confiáveis fornecendo crenças verdadeiras a despeito da descrença do sujeito com relação à eficiência dos mesmos. Um exemplo fácil desse tipo de situação seria a clarividência. 

O sujeito S pode ser um clarividente e receber crenças verdadeiras dessa faculdade extranormal o tempo todo, mesmo que não tenha nenhum motivo para acreditar na confiabilidade da clarividência ou mesmo duvide dela decididamente. Num caso assim, a questão é se realmente se pode dizer que S está justificado.

Bonjour, novamente, usa um exemplo para ilustrar sua objeção. Suponha-se que exista um homem cujo nome é Norman e que ele possui o dom da clarividência. Através dessa faculdade Norman tem crenças sobre o paradeiro do presidente dos Estados Unidos. Essas crenças surgem espontaneamente em sua mente e ele crê nelas sem jamais ter tido o trabalho de verificar se elas são verdadeiras ou não e nem mesmo tem uma concepção acerca do que é ou do alcance do fenômeno da clarividência. 

Acontece que suas crenças sobre o paradeiro do presidente estão sempre certas.  De acordo com o confiabilismo, Norman está totalmente justificado e tem conhecimento legítimo. O problema é que intuitivamente parece irracional acreditar, como faz Norman, em coisas das quais não se tem nenhuma evidência ou cujas evidências são contrárias.

Robert Fogelin, comentando essa objeção de Bonjour ao externalismo, assevera que ela não é conclusiva e que tira sua força aparente da desconfiança comum contra alegações de clarividência e do fato que a caracterização de Bonjour faz com Norman acredite em coisas que parecem surgir em sua mente do nada. Se a clarividência for colocada em situações mais cotidianas e normais, a objeção perderá força. 

Fogelin fornece um exemplo engenhoso no qual S tem clarividência e esta se manifesta cotidianamente de uma forma muito simples. Embora não tenha consciência desse fato, S tem o poder de saber o que está escrito na primeira linha da página seguinte à que está lendo. Ato contínuo, S começa a leitura da página seguinte já na segunda linha e não se dá conta disso. Fogelin afirma então que, da forma como a história é contada, dificilmente se diria que S não tem conhecimento, ainda que S tivesse evidências contra a crença em clarividência.

Outro exemplo, não mais hipotético e sim real, é dado pela propercepção, a faculdade humana de perceber a posição de partes do corpo não por meio dos sentidos externos e sim pelo sentido interno. Poucas pessoas já ouviram falar dessa faculdade e muitas crêem na ideia da existência de somente cinco sentidos, o que excluiria a possibilidade da propercepção. 

Todo e cada ser humano sabe a orientação do seu corpo ou a disposição de seus lábios por meio dessa faculdade. A certeza das crenças assim obtidas não é em tempo algum submetida ao escrutínio crítico ou a uma avaliação segundo evidências sensoriais externas. Entretanto, seria absurdo dizer que uma crença desse gênero é irracional porque não possui “base em evidências”. Desse modo, a tese confiabilista do externalismo perderia o caráter irracionalista que Bonjour almeja imputar-lhe.

O terceiro e último argumento de Bonjour contra o confiabilismo se baseia no que ele denomina de problema da generalidade. Se o que importa para a justificação de uma crença qualquer é o grau de confiabilidade em geral do tipo do processo cognitivo do qual ela é o resultado, impõe-se a pergunta acerca da caracterização do nível de generalidade desse processo. Tome-se como exemplo a percepção visual de uma caneca sobre uma mesa. É possível descrever o processo de geração da crença de que há uma caneca sobre a mesa de diversas formas: 

Como a percepção visual de uma caneca de perto e sob uma boa luz; como a percepção visual de uma caneca (sob condições e distância não especificadas); como a percepção visual de um “objeto físico de tamanho médio” (com mais ou menos especificações sobre as condições e a distância); como percepção visual em geral (incluindo as percepções de objetos bem maiores ou bem menores, com várias especificações das condições e da distância); ou simplesmente como percepção sensível em geral. (...) Qual dessas descrições do processo cognitivo em questão, deve-se perguntar, é a relevante para aplicar o simples princípio confiabilista de justificação?

Para Bonjour, essa objeção é importante porque ela mostraria que o externalista terá de admitir que há múltiplas formas de descrição de processos cognitivos e que a confiabilidade destes varia de acordo com as descrições dadas. Seria possível então descrever um processo cognitivo de tal maneira que o tornasse virtualmente infalível ou totalmente inútil. 

Sem uma resposta adequada a essa questão, segundo o autor, o confiabilismo perde muito de sua força de persuasão, mesmo admitindo-se que algumas descrições são mais naturais que outras. De qualquer forma, dentro dessa naturalidade, há possibilidades diversas de descrição, o que mostraria que o problema é incontornável.

O confiabilismo tem no filósofo americano Alvin Goldman seu mais tradicional defensor. É impossível tratar do externalismo sem citar as principais teses postuladas por esse influente pensador contemporâneo da tradição anglossaxã de filosofia. A posição goldmaniana é claramente confiabilista e sua formulação das exigências dessa corrente é considerada como paradigmática.

Para Goldman, a justificação de uma crença é uma “função da confiabilidade do processo ou dos processos que a causam, onde (como primeira aproximação) a confiabilidade consiste na tendência de um processo de produzir mais crenças verdadeiras do que crenças falsas.”

Em outras palavras, importa para que o sujeito S esteja justificado em suas crenças que estas, além de verdadeiras, tenham sido produzidas por processos cognitivos que se caracterizem pelo caráter disposicional de confiabilidade. Nenhuma exigência é feita quanto à responsabilidade epistêmica do agente conhecedor e nem valores cognitivos deontologicamente entendidos são postulados.

A formulação de Goldman, em que pese sua clareza e honestidade, abre espaço para críticas e objeções importantes. Alvin Plantinga, fazendo coro com Richard Feldman e Laurence Bonjour, aponta para o fato de que a ideia goldmaniana de confiabilismo não pode se desembaraçar do problema da generalidade. 

Como a confiabilidade de um processo é determinada por seu tipo, fica em aberto o grau de confiança de suas diversas instâncias. Tomando-se como exemplo o processo cognitivo da visão, ainda que este seja confiável em geral, as suas instâncias apresentarão diferentes graus de confiabilidade. 

Certamente a visão de um corpo médio a curta distância durante o dia tem mais confiabilidade do que a visão de um objeto médio à longa distância à noite ou em meio à neblina. A generalidade do tipo de processo cognitivo dificilmente poderá garantir a confiabilidade dessas instâncias particulares. Tomar o caráter confiável do tipo como garantia para todas as crenças produzidas por suas instâncias seria ignorar deliberadamente essas diferenças e lançar sobre casos menos confiáveis o manto da confiabilidade do tipo.

Não obstante, o confiabilismo lança luz sobre o fato de que a justificação das crenças é variada e que nem toda crença pode e deve obter sua justificação por meio de argumentos. Como Robert Fogelin salienta, é um preconceito intelectualista exigir que o sujeito conhecedor sempre justifique aquilo em que crê por meio de uma complexa cadeia de raciocínios. 

Em muitos casos, como o da propercepção, nenhuma outra evidência ou explicação é necessária ou deve ser exigida além da afirmação daquilo que se apresenta para o sujeito como sendo o caso. Alguém sentado, vendado e instado a responder perguntas acerca da posição de seus lábios, de suas mãos ou de suas pernas não é culpado de irresponsabilidade epistêmica se baseia suas respostas (e confia) naquilo que seu sentido interno lhe informa. 

Evidentemente, se a pessoa em questão está sob efeito de uma droga que a faz pensar que seu corpo está em determinada posição quando na verdade está em outra, então sua crença nada tem de justificada. Neste caso, está claro que a confiabilidade natural do sentido interno se encontra drasticamente enfraquecida. 

Em circunstâncias normais, contudo, nada impedirá que essa pessoa esteja plena e satisfatoriamente justificada quando, sem recorrer à visão, crê que seus lábios ou suas pernas estão em tal e tal posição. Fogelin afirma que este é o caso inclusive do clarividente Norman apresentado como exemplo por Bonjour.

Ao contrário do que este pretende provar, o exemplo mostraria que afinal não há nada de errado com a “intuição central do externalismo – que conhecimento pode surgir através do uso não-refletivo de uma capacidade perceptual.”

A discussão acerca da justificação das crenças hauridas por meio do funcionamento da percepção interna ou externa conduz também a considerações sobre o controle do sujeito conhecedor sobre suas crenças. Para o internalista o sujeito conhecedor tem deveres epistêmicos e um deles é exercer um controle rígido sobre aquilo em que acredita. 

O externalismo aponta para o fato de que essa exigência é impossível de ser cumprida, pois não se pode controlar tudo aquilo em que se crê. O erro estaria na ideia de que a crença é algo temporalmente posterior à percepção da coisa. Primeiramente aconteceria a percepção e, então, por meio de uma consideração crítica da mesma, se daria ou não assentimento a seu conteúdo.

Em muitos casos de percepção sensível, a crença não é resultado de uma avaliação posterior das evidências daquilo que se apresenta perceptualmente. A relação entre apresentação e crença não é temporalmente distinta, mas simultânea. Quando se percebe, se crê. Na maior parte do dia qualquer sujeito conhecedor age baseado em percepções internas e externas sem quaisquer considerações acerca de evidências. 

E isso não porque seja irresponsável epistemicamente, mas porque ele não é livre para crer no que quer ou somente naquilo que submete a rigoroso escrutínio ou ainda porque, como querem os externalistas, essas considerações são totalmente descabidas e dispensáveis.

As observações acima sobre a liberdade limitada do sujeito conhecedor em seu desempenho epistêmico são parte importante da argumentação utilizada em defesa do externalismo por parte de outro influente filósofo americano contemporâneo, Alvin Plantinga. Sua posição está centrada no questionamento da tradição internalista e justificacionista e na defesa de um externalismo que toma o conhecimento como função daquilo que ele chama de garantia (warrant). 

"Da forma como vejo a questão, uma crença tem garantia se ela é produzida por faculdades cognitivas funcionando apropriadamente (não sujeitas a qualquer mau funcionamento) em um ambiente adequado para tais faculdades, de acordo com um desenho exitosamente planejado objetivando a verdade."


O sujeito conhecedor não precisa saber que suas crenças são produzidas por faculdades que têm garantia para ter conhecimento legítimo. Basta que elas o sejam de facto. Plantinga admite que seu conceito de conhecimento seja complexo e que só pode ser compreendido plenamente a partir do estudo de casos paradigmáticos e aplicações analógicas e que existem muitas situações nebulosas e de difícil interpretação que ainda permanecem como casos não esclarecidos. 

A ideia que subjaz à teoria e que se realiza plenamente nos casos paradigmáticos é que a garantia se ancora no bom funcionamento das faculdades e num projeto específico destas. Em Plantinga, o desempenho epistêmico que garante o conhecimento é transferido para as faculdades cognitivas. As exigências não são mais deontológicas, mas teleológicas. 

São as faculdades cognitivas que deverão ter um funcionamento apropriado, livre de qualquer falha, dentro de um meio condizente com seu plano orientado para a obtenção da verdade. Tudo ocorrendo comme il faut, de acordo com as predeterminações do seu “projeto”, o aparelho cognitivo fornecerá ao sujeito que dele faz uso crenças com um status epistêmico positivo.

Diversas críticas foram dirigidas contra as concepções epistemológicas de Plantinga, em especial no tange às suas implicações teleológicas e teístas.* Laurence Bonjour, por exemplo, tentou demonstrar a inadequação do conceito de funcionamento apropriado através de um experimento de pensamento. 

Suponha-se um ser chamado Frank cujas faculdades cognitivas tenham sido formadas rigorosamente a partir do acaso. Em seguida suponha-se também que essas mesmas faculdades são tão acuradas e confiáveis quanto as de um ser humano normal, que Frank tenha sido submetido a uma educação ordinária e que ele realizou importantes descobertas no campo das ciências. A pergunta é se Frank tem ou não conhecimento, pois suas faculdades não são o produto de um desenho ou projeto. 

No caso de uma resposta negativa, parece estranho que alguém que consiga realizar descobertas reconhecidamente importantes e ainda assim não estar justificado em suas crenças porque suas faculdades não são fruto de um desenho e sim de um mero acaso. 

Por outro lado, o exemplo de Bonjour peca por supor demais. Supõe que realmente algo tão complexo quanto um ser humano e suas faculdades cognitivas possam ser construções da aleatoriedade. O problema é saber que força tem um experimento mental cujas premissas implicam a ideia de acaso puro. 

Bonjour afirma que o seu exemplo hipotético reflete a situação real se não houver realmente nenhum Deus criador e formador. Essa afirmação é controversa, pois nem mesmo darwinistas ateus pressupõem esse grau de aleatoriedade postulado por Bonjour.

Um segundo exemplo fornecido por Bonjour tem o objetivo de mostrar que as teses de Plantinga não escapam às críticas dirigidas ao confiabilismo no que tange aos casos de suposta clarividência. Admita-se a existência de um homem comum chamado Boris que esteja com suas faculdades totalmente saudáveis e trabalhando de acordo com seu desenho num ambiente adequado. 

A única coisa diferente em Boris é que Deus implantou um módulo cognitivo em seu cérebro que o habilita a saber com o máximo de certeza possível, com poucos dias de antecedência, o dia do Juízo Final. Suponha-se que realmente o Juízo Final esteja próximo e Boris reage da maneira correta, ou seja, ele tem certeza absoluta, tanto quanto de que 2+2=4, que o fim dos dias está próximo. 

Ora, se Boris tomasse qualquer atitude baseado nessa crença, alguém porventura poderia afirmar que ele está justificado racionalmente? A questão é que, de certa forma, nenhuma evidência há que suporte tal crença. Ao fim e ao cabo, Boris não estaria agindo de uma forma racional. 

Plantinga responderia à essa objeção apontando para o fato de que, como externalista, ele não concebe a evidência como necessariamente disponível à consciência do agente. No entanto, a evidência existe na qualidade de uma crença básica fornecida por uma faculdade cognitiva funcionando apropriadamente em um ambiente adequado a seu desenho e que impele por uma força impulsional à sua aceitação.

Apesar das diversas divergências internas, as correntes do externalismo e do internalismo possuem certa unidade doutrinária que permite que seus aspectos essenciais possam ser apresentados sem a necessidade de uma exposição minuciosa de todas as filigranas das teorias particulares de cada pensador. 

Há outras teorias que pretendem se afastar dessa dicotomia internalismo-externalismo que domina o debate epistemológico anglossaxão, principalmente no que tange à busca de soluções para o problema de Gettier. Eventualmente trataremos delas em postagens futuras.

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segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Breve introdução ao internalismo epistemológico


                                                   Roderick Chisholm

No debate acerca das condições necessárias e suficientes para o conhecimento duas correntes dominam o cenário filosófico analítico anglossaxão: o internalismo e o externalismo. Embora existam ainda muitas obscuridades, incompreensões e controvérsias na própria classificação e entendimento dessas correntes, existe certa concordância na questão de suas características gerais. 

Laurence Bonjour, em artigo publicado na coletânea que integra o Oxford Handbook of Epistemology, afirma que ambas as correntes pretendem estabelecer a terceira condição do conhecimento, aquela que junto à crença e à verdade da crença, torna o conhecimento legítimo. A partir disso, segundo o autor, a definição dessas correntes se daria nos seguintes termos:


"Uma teoria epistemológica conta como internalista se e somente se ela exige que todos os elementos necessários para que uma crença satisfaça essa condição deve ser cognitivamente acessível à pessoa em questão; e como externalista, se ela permite que pelo menos alguns desses elementos não sejam acessíveis, permitindo-os ser externos à perspectiva cognitiva daquele que crê."


Evidentemente, há controvérsias acerca do significado de termos como “cognitivamente acessível” e “perspectiva cognitiva”, permanecendo sua compreensão ainda numa esfera bastante intuitiva. Não obstante, Alvin Plantinga define o internalismo em termos semelhantes aos usados por Bonjour. Ele assim afirma:


"A ideia básica do internalismo é, obviamente, aquela segundo a qual o que determina se uma crença é garantida para uma pessoa são fatores ou estados em algum sentido internos a ela; as propriedades que conferem garantia são de alguma forma internas ao sujeito ou ao conhecedor."


Tanto Plantinga quanto Bonjour assinalam a origem cartesiana do internalismo, na medida em que mantém como seu objetivo a construção do conhecimento a partir de bases consideradas indubitáveis. Segundo Plantinga, a origem do internalismo pode ser rastreada até as posições epistemológicas de Descartes e de Locke e delas ainda conserva muitos traços distintivos. O aspecto central dessa perspectiva epistemológica é o caráter deontológico da justificação das crenças. 

O internalista clássico pensa que nós precisamos não dar chance ao acaso quando se trata de justificação; aqui nosso destino está inteiramente em nossas mãos. O destino pode conspirar para enganar-me; eu poderia estar enganado a respeito da existência do mundo externo, ou do passado, ou de outras pessoas. 

Por mais que eu possa estar convencido, ainda assim eu posso ser um cérebro numa cuba ou a vítima de um maléfico demônio cartesiano que se delicia na enganação. Eu posso estar total e desesperançadamente enganado. Mesmo assim, eu posso ainda cumprir meu dever epistêmico; fazer o meu melhor e estar acima da reprovação. 

Justificação (diferente de uma constituição forte, por exemplo) não é algo que acontece com uma pessoa; é, ao contrário, o resultado de seus próprios esforços. Talvez eu não possa levar o crédito pela minha boa digestão ou minha bela disposição. Eu posso levar crédito por estar justificado. Da forma que o deontologista clássico vê as coisas a justificação não se dá por fé, mas por obras, e depende de nós se somos justificados em nossas crenças.

O internalismo concebe a justificação das crenças em termos de cumprimento de certos deveres epistêmicos, os quais serão condições necessárias e suficientes para que haja conhecimento legítimo. A partir dessa constatação, Plantinga aponta para o que ele denomina o primeiro tema internalista, segundo o qual “a justificação epistêmica (isto é, a justificação epistêmica subjetiva, tal que não sou sujeito à crítica) está inteiramente sob minha responsabilidade e dentro de meus poderes.” 

O que é exigido do sujeito conhecedor S é que ele cumpra diligentemente seu dever, ou seja, que tenha um desempenho epistêmico impecável e sem sombra de leviandade. O segundo tema internalista, de acordo com Plantinga, afirma que: 

"Para uma classe extensa, importante e básica de deveres epistêmicos objetivos, os deveres objetivos e subjetivos coincidem; aquilo que você deve fazer objetivamente se encaixa com aquilo que é tal que, se você não o fizer, será culpado e criticável.” 

O tema acima, que une o dever subjetivo do sujeito conhecedor com aquilo que é objetivo, tem como corolários que para uma série extensa e importante de casos, um ser humano funcionando propriamente simplesmente pode perceber (ou seja, não pode cometer um erro involuntariamente) o que dever epistêmico exige e se a proposição tem a propriedade por meio da qual ele reconhece uma proposição como justificada para ele.

Há um terceiro tema internalista que Plantinga cuidadosamente apenas sugere esteja ligado precipuamente aos estados internos do sujeito. Segundo sua interpretação, o caráter deontológico do internalismo implica que as únicas proposições que se coadunam com as suas exigências sejam aquelas em que o sujeito não pode cometer erros. 

Ao contrário de proposições acerca, por exemplo, do bom funcionamento do pâncreas, proposições do tipo “creio que Albuquerque fica no Novo México” ou “isto me parece vermelho” são indubitáveis toda vez que nela um sujeito crê. Pode-se certamente ignorar e errar num julgamento sobre a saúde de um órgão interno, porém não se pode, sob nenhum aspecto, se enganar sobre se algo, num determinado momento, aparece como vermelho.

Apesar de sua caracterização do internalismo se basear principalmente nas fontes dessa tradição, Descartes e Locke, Plantinga pretende que ela encontra-se em grande parte confirmada pelas obras de filósofos internalistas contemporâneos. Estes, embora com algumas divergências, endossariam em geral as ideias de que a justificação (junto com a verdade) seria condição necessária e suficiente para o conhecimento, a de que há uma forte conexão entre a justificação e a evidência e que a justificação envolve o internalismo epistêmico.

Em primeiro lugar, Plantinga aponta que para esses autores contemporâneos a justificação é sempre vista sob a ótica deontológica. Estar justificado em crer numa proposição ou tese significa ter cumprido seus deveres epistêmicos adequadamente. Por outro lado, a justificação significa possuir bases aceitáveis, ou seja, é necessário ter evidências para se crer em algo. 

Se o sujeito conhecedor buscou diligentemente basear suas crenças em evidências adequadas, ainda que ele esteja (sem o saber) sob a influência de um gênio maligno ou seja um cérebro numa cuba, nada impede que se atribua a ele conhecimento legítimo. Em terceiro lugar, as evidências requeridas para a justificação das crenças devem ser internamente acessíveis ao sujeito que conhece.

Laurence Bonjour afirma, em sua análise do internalismo, que este tem seu rationale em duas ideias fundamentais. A primeira delas é a concepção segundo a qual a justificação epistêmica se dá no cumprimento dos deveres e responsabilidades de uma criatura racional, de modo que uma pessoa só está justificada em suas crenças na medida em que ela tenha cumprido diligentemente tais obrigações (concepção deontológica da justificação). A segunda é a ideia de que o papel central da justificação epistêmica é guiar o sujeito na decisão do que crer.

No tocante à primeira concepção que forma o centro do rationale internalista, a de que o cumprimento de deveres e responsabilidades epistêmicos é condição necessária e suficiente para a justificação de crenças, Bonjour aponta para os casos onde o sujeito se encontra numa situação de “pobreza epistêmica”. A situação em que uma pessoa se encontra pode ser tão epistemicamente empobrecida que lhe será impossível obter boas evidências e bases adequadas para suas crenças. 

E tal pode se dar por uma ampla diversidade de fatores como falta de evidências seguras, métodos disponíveis inadequados ou mesmo falhas e deficiências no aparelho cognitivo. Nessas situações, ainda que o sujeito em questão dê o melhor de si nos seus empreendimentos cognitivos, ele não terá condições de alcançar e preencher as exigências para um conhecimento legítimo. Não obstante, em nenhum momento será possível criticá-lo ou condená-lo por negligência ou leviandade. O sujeito conhecedor cumpriu seus deveres, mas ainda assim não está epistemicamente justificado em suas crenças.

Com respeito à segunda ideia que compõe o rationale internalista, a de que a justificação funciona como um guia para o sujeito na aceitação ou na rejeição de suas crenças, Bonjour aponta para o fato cotidiano da impossibilidade de um controle efetivo sobre as crenças.

Em boa parte dos casos o assentimento dado está longe de corresponder a um controle voluntário. Esse fato, por sua vez, não invalida a tese de que algumas vezes a justificação possa realmente funcionar como guia para a aceitação ou rejeição das crenças.

Mattias Steup, em artigo para a Stanford Encyclopedia of Philosophy, aponta para algumas concepções características do internalismo. A primeira delas, seria a ideia da existência de deveres epistêmicos que, por sua vez, não podem ser confundidos com normas éticas ou prudenciais. Segundo ele, a justificação deontológica pode ser formulada como se segue: 

“S está justificado em crer em P se e somente se no ato de crer em P, S não esteja violando qualquer de seus deveres epistêmicos.”

O conteúdo desses deveres epistêmicos são objeto de controvérsia, mas o que pode ser dito com segurança é que eles nascem da busca pela verdade. Daí a possibilidade de formular a justificação em termos de tudo aquilo que não se opõe à persecução do que é verdadeiro.

Em segundo lugar, se há uma deontologia epistêmica, então uma de suas exigências deve ser a de somente dar assentimento àquilo que tem bases evidenciais, e desde que essas bases são diretamente reconhecíveis pelo sujeito conhecedor, a justificação é igualmente reconhecível internamente. 

A terceira característica do internalismo se apresenta em contraste com uma das exigências do confiabilismo externalista. Este concebe que a justificação de uma crença é uma função da confiabilidade dos processos ou faculdades cognitivas. 

Contra isso, o internalista aponta para a possibilidade lógica de um demônio cartesiano estar deturpando essas faculdades de tal forma que nenhum resultado positivo em termos de conhecimento real possa ser obtido. Todas as crenças, memórias e evidências estão sob o domínio maléfico do gênio cartesiano que engana sistematicamente aquele que crê possuir conhecimento. 

Para o internalista nenhum efeito negativo é produzido por essa hipótese uma vez que o sujeito conhecedor apoiou-se nas evidências disponíveis e corretas e baseou suas crenças sobre elas. Ele cumpriu seu dever diligentemente e seu desempenho é inatacável, ainda que tenha sido enganado pelo gênio malévolo.
   
Para ilustrar as características do internalismo até aqui elencadas, não será ocioso deter-se momentaneamente e apresentar de modo sucinto e resumido algumas das concepções epistemológicas do filósofo americano Roderick Chisholm, considerado como um dos mais destacados e influentes representantes do internalismo no século XX. 

Alvin Plantinga afirma que existe um “internalismo chisholmiano clássico”, que é compreendido pelo período que vai da publicação de seus primeiros escritos até a publicação de Foundations of Knowledge. Nessa fase, o filósofo americano vê a justificação das crenças ou o caráter epistêmico positivo em função do cumprimento de deveres ou obrigações epistêmicas:

"Pode-se dizer que essa é a responsabilidade ou dever de uma pessoa qua ser racional (...) Uma forma de recolocar a  locução “P é mais razoável que Q para S em t” é dizer  isso: “S está de tal forma situado em t que seu dever intelectual, seu dever como ser racional, é melhor satisfeito pela crença em P do que em Q.” 


Para Chisholm, crer ou se abster de uma crença é parte essencial da realização dos deveres epistêmicos de um agente racional. E este só pode dar assentimento a uma proposição se ela apresenta-se como mais razoável que sua negação ou outra proposição qualquer. De acordo com sua razoabilidade as crenças serão classificadas através de termos epistêmicos como “certo”, “além da dúvida razoável”, “evidente” e “aceitável”. 

A razoabilidade, entendida em um sentido normativo e deontológico, tem semelhanças com conceitos éticos ou morais, embora com eles não se confunda. Se o sujeito cumpre seu dever epistêmico com responsabilidade somente aceitando crenças que possuam razoabilidade, e se essas mesmas crenças são verdadeiras, então ele estará justificado em suas pretensões de conhecimento.

Plantinga, comentando as teses de Chisholm, afirma que este, ao subscrever o deontologismo epistêmico, acaba por também subscrever o primeiro lema internalista, segundo o qual a obtenção de um status epistêmico positivo para as crenças está sob o alcance do sujeito conhecedor e depende só dele. 

Ou seja, para que haja conhecimento é preciso somente que o investigador cumpra o dever que está, ampla e irrestritamente, em suas mãos e à sua disposição.18 Essa obrigação não é do mesmo gênero daquelas as quais o cumprimento se dá de uma só vez, como a restituição de um objeto furtado, mas exige um constante empenho em manter a acuidade epistêmica em todas as atividades cognitivas.

O compromisso, para todo ser racional, é sempre buscar a realização da excelência no âmbito epistêmico. Isso não significa que seja necessário, a fim de cumprir a contento os deveres acima citados, que as crenças que o sujeito conhecedor sustenta sejam de fato todas verdadeiras. 

Não é preciso nem mesmo que a maioria delas seja. O que é exigido é que haja um esforço continuado e constante por parte do sujeito para cumprir os deveres impostos pelo fato de pertencer à classe dos seres racionais. Na qualidade de um ser intelectual, seu dever é esforçar-se por alcançar a excelência. 

É evidente que essa tese de Chisholm contém um forte elemento decisional. O sujeito decide esforçar-se para obter o status epistêmico positivo para suas crenças. Está sob seu inteiro poder acolher algumas e rechaçar outras. 

A racionalidade do ser intelectual se desvela aí como uma decisão consciente de submeter suas crenças a certos exames calcados em parâmetros determinados, de forma análoga à metáfora cartesiana do homem que examina as maçãs de sua cesta uma a uma, preservando as que estão em boas condições e jogando fora as que estão podres. 

Como foi dito, não é necessário para o cumprimento do dever epistêmico que todas as crenças sustentadas pelo sujeito sejam efetivamente verdadeiras, bastando-lhe a constância no esforço de alcançar a excelência no conhecimento. Infere-se daí que esse empreendimento é tentativo, ou seja, o que se pode exigir do agente conhecedor é que ele tente sempre cumprir diligentemente seus deveres como ser racional.

Se suas faculdades estão sob efeito de uma ilusão criada por um demônio maligno ou se ele mesmo não é mais do que um cérebro numa cuba no laboratório de um cientista excêntrico, nada disso tem importância no tocante à justificação de suas crenças. Tendo feito tudo aquilo que estava ao seu alcance para cumprir com suas obrigações como um ser racional, o sujeito conhecedor está plenamente justificado em crer naquilo que crê.

A fim de ilustrar o ponto acima, será citado aqui um dos seis princípios epistêmicos que Chisholm apresenta para guiar o sujeito nas suas atividades de conhecimento. Segundo esse princípio, 

(1) se o sujeito toma perceptualmente algo como um F e se (2) sua percepção é epistemicamente clara para ele, então está além da dúvida para o sujeito que ele está percebendo algo que é F. E, se além de (1) e (2) a percepção de que algo é F for membro de um conjunto de proposições as quais se apoiam mutuamente e cada uma delas está além da dúvida razoável para o sujeito, então é evidente para o sujeito que ele percebe algo que é F.

De acordo com a tese internalista defendida por Chisholm, o agente conhecedor tem a obrigação de cumprir seus deveres enquanto ser racional, os quais se resumem a permanentemente tentar alcançar a excelência epistêmica em suas atividades cognitivas cotidianas. Se esse agente se encontra numa situação na qual os critérios acima dispostos são realizados convenientemente, então é seu dever assentir com a crença segundo a qual algo é F. 

E, cumprindo dessa maneira sua obrigação enquanto um ser consciente e racional, o agente está totalmente justificado em sua crença e esta detém um status epistêmico positivo, ou seja, é conhecimento legítimo.

Suponha-se, entretanto, que um agente conhecedor esteja sob efeito da ilusão criada por um demônio malévolo ou que tenha sofrido um acidente que lesionou seu cérebro. Em seguida acrescente-se que o efeito desse feitiço ou dessa lesão é fazer com que quando o agente ouve distintamente algo que lhe parece um sino de igreja tenha a irresistível tendência ou impulso para acreditar que algo dessa natureza lhe apareceu e que esse algo é laranja. 

O sujeito em questão não sabe de sua condição de enfeitiçado por um demônio ou de lesionado cerebral e é um investigador consciente e responsável que tenta permanentemente realizar com acuidade seus deveres epistêmicos. Além disso, suponha-se que todos ao seu redor sofram da mesma condição. A pergunta que se impõe obviamente é se realmente o sujeito conhecedor tem conhecimento.

O exemplo descrito, em suas linhas gerais, é da autoria de Alvin Plantinga e intenta mostrar dois fatores importantes. O primeiro deles é que, consoante com a tradição internalista, Chisholm diria que o sujeito em questão tem sim conhecimento legítimo. 

As condições adversas às quais o agente está submetido são por ele totalmente desconhecidas e, por isso, não influenciam em seu desempenho como conhecedor. Nada no comportamento do sujeito indica leviandade ou displicência com relação a seus deveres enquanto ser racional. Ele fez tudo corretamente e em concordância com aquilo que lhe era disponível no momento. 

O segundo fator aponta para o que Plantinga supõe ser a fragilidade dessa perspectiva teórica. Embora não se possa dizer que, em termos internalistas, o sujeito não esteja plenamente justificado a crer naquilo em que crê, intuitivamente parece que algo não se encaixa nesse quadro. Afinal, sabemos que ele sofre de uma condição que, apesar de ignorada, faz com que suas faculdades funcionem de uma forma não ordinária e que isso leva a conclusões falsas. 

Ou seja, efetivamente aquilo a que ele chega não tem relação com o real. Sob essa ótica privilegiada, a do leitor que sabe da ilusão a que o sujeito está submetido, pode-se dizer que não há conhecimento efetivo. Para Plantinga, isso seria um indício forte da insuficiência das teorias internalistas.

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sábado, 25 de janeiro de 2014

Alvin Plantinga, conhecimento e normatividade epistemológica





Um dos problemas centrais da epistemologia contemporânea tem sido aquele de determinar em que condições há conhecimento. Segundo alguns intérpretes hodiernos, Platão teria formulado o problema no Teeteto e no Simpósio perguntando-se como se poderia passar de crenças verdadeiras (o meio-termo entre ignorância e sabedoria) ao legítimo conhecimento. 

Para esses intérpretes, a resposta estaria na crença verdadeira justificada. Desde então assumiu-se que para o conhecimento três condições eram suficientes e necessárias: a crença, a verdade da crença e a justificação dessa crença.

Entretanto, como visto em posts anteriores, um artigo de Edmund Gettier, nos anos 60 do século passado, lançou sérias dúvidas sobre a idéia de que a justificação fosse uma condição suficiente para o conhecimento. Inaugurou-se a partir daí, um debate acirrado no mundo analítico anglo-saxão em busca de uma solução para o problema levantado por Gettier.

Se, de fato, o justificacionismo não era suficiente para o conhecimento, como então se poderia resolver o principal problema da epistemologia? E, se possuir crenças verdadeiras justificadas não garante conhecimento, em quê então poderemos crer? 

Evidentemente a questão afeta também a teoria da racionalidade. Se nos perguntamos em quê é racional crer, temos classicamente como resposta que é racional crer naquilo que podemos justificar. Se a justificação não é suficiente, então aquilo que considerávamos racional crer talvez não seja exatamente racional. Ou ainda, se não há meios de justificação de nossas crenças, então também não haveria meios de determinar a racionalidade de qualquer de nossas crenças.

Uma das tentativas de resolver esse problema seria a idéia de que a garantia do conhecimento não passa pela justificação das crenças e sim pela confiabilidade dos processos e das faculdades que as produzem. Nessa perspectiva naturalista, questões descritivas acerca da forma como adquirimos nossas crenças teriam então importância para questões de normatividade epistemológica. Seria necessário saber, entre outras coisas, quais faculdades produzem quais crenças, qual seu funcionamento próprio e quais seus limites e ambientes ideais de funcionamento. 

O filósofo americano Alvin Goldman, por exemplo, desvia a discussão do plano do justificacionismo e defende a idéia de que a condição suficiente para o conhecimento está na confiabilidade do processos que causam as crenças. Segundo Goldman,

"O status justificacional de uma crença é uma função da confiabilidade do processo ou dos processos que a causam, onde (como primeira aproximação) confiabilidade consiste na tendência de um processo produzir mais crenças verdadeiras que falsas."

Entretanto, para o filósofo analítico americano Alvin Plantinga, essa resposta não é suficientemente acurada, embora aponte para o lado certo. A condição suficiente do conhecimento não está no justificacionismo e sim na confiabilidade da fonte de nossas crenças. O que falta à definição de Goldman é uma investigação acerca da função própria das faculdades cognitivas. 

Os processos que Goldman chama de confiáveis podem ser somente acidentalmente confiáveis e não necessariamente confiáveis. Não basta sabermos que um determinado processo tem a tendência de causar mais crenças verdadeiras que falsas; não basta sabermos que essa tendência é expressa em termos do que freqüentemente acontece ou do que normalmente acontece.

Para Plantinga, é necessário sabermos a função própria desses processos. Sabermos que eles são necessariamente confiáveis. É necessário sabermos que faculdades têm como função própria a produção de crenças verdadeiras e quais não têm, qual seu alcance e seus limites, quais são seus ambientes adequados de funcionamento. Se todas essas condições forem cumpridas, então teremos a garantia que o justificacionismo não fornece. 

É possível pensar, por exemplo, em faculdades que geram crenças e que não têm como objetivo a verdade. É possível pensar, por exemplo, que o cérebro de alguém acometido de uma doença incurável e fatal pode, através de neurotransmissores ou coisa parecida, criar nele um sentimento de euforia e vivacidade que gera a crença de uma cura próxima. Essa faculdade pode ter o simples objetivo e função de criar bem-estar e não exatamente de fornecer um retrato fiel da situação real em que a pessoa se encontra.

Por outro lado, uma faculdade pode ter como objetivo um retrato fiel da situação real, mas que por algum problema, esteja funcionando mal. Um exemplo próximo é o de alguém embriagado ou sob efeito de entorpecentes. 

Um outro exemplo mais radical é o de alguém sofrendo de uma moléstia que o faça ver e formar a crença de que as pessoas não possuem rosto. Nestes casos, há uma faculdade envolvida, a visão, que é precipuamente cognitiva, cujo funcionamento próprio tem como objetivo um retrato fiel da situação e que, por efeito de uma moléstia, não funciona como devia.

Poderíamos também citar a possibilidade, de longe a mais radical, de que nenhuma de nossas faculdades tidas como cognitivas realmente nos dão conhecimento fidedigno do mundo. Com isto nos aproximamos da idéia do demônio cartesiano que nos faria crer, em cada momento, ser verdade aquilo que, na realidade, não é. Numa possibilidade menos dramática, podemos pensar, como os darwinistas, que nossas faculdades só podem nos dar um retrato do mundo externo cujo último objetivo é a sobrevivência e não a verdade.

Ao longo de suas obras, Plantinga desenvolve e amplia essa intuição inicial, discutindo seus aspectos gerais, seus problemas e sua aplicação e chega à formulação segundo a qual a condição suficiente do conhecimento será dada por uma crença básica produzida por faculdades designadas para a verdade funcionando propriamente (de acordo com seu desenho) num ambiente adequado à seu funcionamento.

Para Plantinga são essas “crenças básicas”, ou seja, crenças nas quais confiamos não por sua derivação de outras crenças por meio de raciocínios ou inferências dedutivas ou indutivas, que estarão no fundamento do edifício do conhecimento. Confiamos nelas porque são produzidas por faculdades cognitivas cujo objetivo é a verdade e que estejam funcionando propriamente (segundo seu “desenho”) e em um ambiente adequado para suas funções. Plantinga dá como exemplo de crenças geralmente tomadas como básicas: 


1.Crenças perceptivas do tipo “Eu vejo uma flor”.
2.Crenças de memória do tipo “Eu tomei café da manhã hoje”. 
3.Crenças acerca dos estados mentais de outrem do tipo “Aquela pessoa está com fome”


Todas as crenças acima elencadas são caracterizadas pelo fato de que nada as fundamenta senão elas mesmas. Não cremos nelas por ação de algum raciocínio seja dedutivo, indutivo ou abdutivo. Ao contrário, sua confiabilidade se impõe a nós como uma tendência a acreditar nelas, ou seja, nos sentimos compelidos a crer. 

Plantinga alega que sua visão tem antecessores ilustres na tradição filosófica ocidental tais como Aristóteles, Tomás de Aquino e Thomas Reid. E, como esses dois últimos, Plantinga admite que a idéia de Deus tenha um papel preponderante no processo do conhecimento. 

E isso se vê facilmente, pois se a idéia de função própria envolve intimamente a noção de desenho (ou projeto num sentido teleológico), então deve haver um desenhista inteligente para essas faculdades. É exatamente pelo motivo de haver um Deus bom que criou-nos à sua imagem, capazes como Ele de conhecer verdadeiramente, que podemos então confiar em nossas crenças básicas produzidas por nossas faculdades.

É assim que a questionamento da justificação feito por Gettier se torna um problema sobre a confiabilidade de nossas faculdades cognitivas. O que está em jogo é o problema principal da teoria da racionalidade, a saber, o problema de identificar o que um agente racional está justificado a crer. E este só se resolve, em Plantinga, a partir do conhecimento da existência de Deus e de sua veracidade. Qualquer outra tentativa de resposta que ignore a ação de Deus na produção de nossa estrutura cognitiva está fadado à impossibilidade de garantir um status epistêmico positivo às nossas crenças.

Para Plantinga, o naturalismo só pode dar uma resposta satisfatória para a questão da origem, do funcionamento próprio e da confiabilidade de nossas faculdades cognitivas se ele estiver inserido numa metafísica teísta. 

Segundo ele, o naturalismo darwiniano de fundo ateu, por exemplo, não pode solucionar coerentemente essa questão uma vez que para o darwinista estrito as faculdades cognitivas humanas são fruto de um processo cego que não tem como objetivo fornecer um retrato verdadeiro do que há, mas somente a sobrevivência do indivíduo e da espécie.

Contudo, os opositores de Plantinga afirmam que a idéia de que um Deus bom projetou nossas faculdades visando à verdade é impossível de ser provada, uma vez que apela para o conhecimento de um ser que é infinitamente superior às nossas mais altas especulações. Como se pode conhecer as intenções de um ser que ultrapassa toda e qualquer perspectiva de cognição humana? 

Plantinga pretende resolver essa questão apelando para o que Calvino chamou de sensus divinitatis, uma crença em Deus que é tão evidente e tão básica quanto a evidência dos sentidos, da memória ou do “eu”. Desse modo, a crença em Deus é também uma crença básica produzida por uma faculdade cognitiva, o sensus divinitatis, operando segundo seu projeto em condições que sejam adequadas a seu desenho. 

Nem todos concordarão com essa crença básica, mas isso não contará como um argumento contra ela, da mesma forma que uma pessoa que sustente a crença de que tomou café pela manhã não se perturbará se encontrar alguém que não concorde com ela acerca da validade dessa crença básica.

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Leia também:



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Sugestões de leitura:

Alvin Goldman: 

What is Justified Belief” in Justification and Knowledge: New Studies in Epistemology, ed. George Pappas, Dordrecht: D. Reidel, 1979

Alvin Plantinga: 

The Nature of Necessity. New York: Oxford University Press, 1982 
Warrant: The Current Debate. New York: Oxford University Press, 1993
Warrant and Proper Function. New York: Oxford University Press, 1993
Warranted Christian Belief. New York & Oxford: Oxford University Press, 2000


quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Carl Gustav Hempel, ciência, verificação e leis naturais




"Não se chega ao conhecimento científico pela aplicação de algum procedimento de inferência indutiva a dados coligidos anteriormente, mas, antes, pelo que é frequentemente chamado 'método da hipótese', isto é, pela invenção de hipóteses como tentativas de de resposta ao problema em estudo e submissão dessas hipóteses à verificação empírica. (...) Como já notamos anteriormente, uma verificação numerosa, com resultados inteiramente favoráveis não estabelece a hipótese conclusivamente; fornece apenas um suporte mais ou menos sólido para ela."

CARL GUSTAV HEMPEL, Filosofia da Ciência Natural, p.30/31*

O filósofo alemão Carl Gustav Hempel escreveu uma excelente introdução à filosofia da ciência intitulada Philosophy of Natural Science, publicada em 1966. Na obra, o autor, um dos expoentes do empirismo lógico, dialoga com diversos filósofos, lógicos, cientistas  e epistemólogos importantes do século XX, como Pierre Duhem, Karl Popper, Nelson Goodman, Arthur Eddington, entre outros. 

A partir da análise de um caso real de descoberta científica, a do médico húngaro Iguaz Semmelweis, Hempel constrói sua teoria sobre as teorias científicas e suas pretensões epistêmicas. Um dos temas importantes de sua obra é a inconclusividade da verificação indutiva.

Ora, geralmente se afirma que uma hipótese é verificada quando suas predições são coroadas de êxito. Hempel, no entanto, mostra que seja qual for o número de instâncias observacionais indutivas confirmadoras de uma teoria, esta jamais poderá ser estabelecida conclusivamente.

Tomemos a hipótese H. Ela é um conjunto de afirmações sobre um determinado conjunto de fenômenos observáveis. Se essas afirmações que compõem H são verdadeiras, então é possível deduzir logicamente a implicação/predição I.

Se H é verdadeiro, então I.

Contudo, a implicação/predição I se mostrou falsa. Então temos:

Se H é verdadeiro, então I.
I não é verdadeiro.
_______________________
Então, H não é verdadeiro.

Tal forma inferencial é chamada em lógica de Modus Tollens. Ela afirma o condicional  no qual se H é verdadeira, ou seja, se o conjunto de afirmações que compõe H for verdadeiro, então necessariamente a implicação I, deduzida de H, deverá também ser verdadeira. Como a implicação I se mostra falsa, então H é falsa.

Contudo, tomemos a possibilidade inversa. 

Se H é verdadeiro, então I.
I é verdadeiro
___________________________
Então H é verdadeiro.

Apesar de parecer correto, esse raciocínio é inválido logicamente e é conhecido como falácia da afirmação do consequente. O caso é que, ainda que a implicação I seja verdadeira, H ainda pode ser falsa, pois de premissas falsas é possível deduzir conclusões verdadeiras.

Por exemplo:

Sócrates é gato.
Gatos são bípedes.
________________
Logo, Sócrates é bípede.


Vejamos o exemplo seguinte:

Se choveu à noite, então a rua amanhecerá molhada.
A rua amanheceu molhada.
________________________
Então, choveu à noite.

Ora, certamente é verdadeiro que se choveu à noite a rua amanhecerá molhada. Mas a chuva é somente uma das hipóteses possíveis para explicar a rua molhada. Se não sabemos se choveu ou não à noite (como indica o condicional se P, então Q), o fato de a rua amanhecer molhada não prova que choveu à noite.

Fica claro, então, que a confirmação ou verificação das implicações/predições de uma hipótese não podem garantir sua verdade. Hempel complementa:

"Assim, o resultado favorável de uma verificação, isto é, o fato de ser achada verdadeira a implicação inferida de uma hipótese, não prova que a hipótese é verdadeira. Mesmo que muitas implicações de uma hipótese tenham sido sustentadas por verificações cuidadosas, ainda assim e hipótese pode ser falsa." (p.19)

Da mesma forma, o seguinte raciocínio também será falacioso:

Se H é verdadeiro, então também o são I 1, I 2, I 3,...I n.
I 1, I 2, I3, ..., I n são verdadeiros
_______________________________________

Então, H é verdadeiro.


No entanto, segundo Hempel, isso não significa que não se procedeu à nenhuma confirmação. A teoria foi confirmada com respeito à suas implicações particulares, dando ao cientista um certo suporte, alguma corroboração, cujo peso dependerá de vários aspectos da hipótese e dos dados colhidos. 

A discussão apresentada até aqui está intimamente ligada à questão do método indutivo, o qual geralmente é apresentado como o método par excellence da ciência. Hempel critica o que ele chama de “Concepção Indutiva Estreita” acerca da investigação científica. 

O alvo de sua crítica não é senão a concepção usual do método científico: 

1) Observação e registro de todos os fatos; 
2) Análise e classificação desses fatos; 
3) Derivação indutiva de generalizações a partir do observado;
4)  Verificação das generalizações.

O filósofo assevera que a primeira etapa é impossível de ser realizada, já que não podemos reunir todos os fatos seja de forma absoluta (teria-se de aguardar o fim do mundo), ainda que nos circunscrevêssemos aos fatos dados até agora (a coleção dos fatos até agora seria ainda infinita em número e em seus aspectos).

Há quem possa opor-se à tese de Hempel dizendo que devem ser recolhidos todos os fatos relevantes. Mas Hempel responde: "relevantes para quê?". Concordando com Popper, Hempel declara que somente sob a luz de uma teoria prévia é possível observar os fatos. A hipótese guia a observação. Da mesma forma a classificação dos fatos só se daria através de uma teoria.

"'Fatos' ou dados empíricos só podem ser qualificados como logicamente  relevantes ou irrelevantes relativamente a uma dada hipótese, e não relativamente a um dado problema." (p.24)

Quais dados são relevantes ou irrelevantes para uma determinada hipótese H que se pretende um explicação de um conjunto de fenômenos? Serão aqueles cuja ocorrência ou não-ocorrência puderem ser inferidos de H.

Além disso, segundo Hempel, não há forma de derivar mecanicamente teorias de dados indutivamente colhidos. Não há derivação de teorias a partir dos dados, mas invenção de teorias para a explicação desses dados. As hipóteses não nascem naturalmente da observação dos dados, mas são concebidas para explicá-los. São palpites sobre os nexos que existem entre os fenômenos em estudo, sobre as estruturas que os fundam. 

Ademais, os caminhos que conduzem a uma hipótese estão longe de uma derivação sistemática a partir dos dados. É o que sugere o exemplo do químico Kekulé que, depois de muitas tentativas de um esboço da fórmula estrutural da molécula de benzeno, sonhou com átomos formando um anel girando vertiginosamente. Desse sonho ele tirou a idéia de conceber  a estrutura molecular do benzeno como um anel hexagonal.

Não importando a origem de tais hipóteses, elas são depois expostas ao crivo crítico intersubjetivo que garante sua objetividade.  Nessas reflexões de Hempel aparecem muitas concordâncias com as teses de Karl Popper. Entretanto, contrariamente a Popper, Hempel afirma que as teorias científicas são indutivas num sentido mais amplo, ou seja, embora não sejam estabelecidas conclusivamente, os dados conferem-lhe pelo menos um suporte indutivo e uma confirmação mais ou menos forte.

Outro tema correlato é o do chamado experimentum crucis (experimento crucial)Diante de duas teorias rivais que explicam os mesmos fatos satisfatoriamente, deveríamos conceber, para decidir entre elas, uma verificação crucial. Nesse experimento, concebe-se uma situação onde as teorias predigam resultados incompatíveis. A teoria que tivesse sua predição confirmada, refutaria a outra.

Entretanto, como assinala Hempel, uma verificação crucial é impossível, pois a confirmação indutiva não dá certeza conclusiva e a refutação de uma predição pode indicar somente que algum elemento da teoria - suas hipóteses auxiliares por exemplo - pode estar errado. O que sabemos é que a teoria deve ser modificada em algum ponto, mas não sabemos necessariamente em qual deles. Aqui Hempel segue a demonstração de Pierre Duhem no seu Théorie Physique.

Tomemos o seguinte caso:

A teoria H é composta das afirmações A, B, e C. E de seu conjunto, ou seja, do conjunto das informações de A, B e C, deriva-se a implicação/predição I.

H = A,B,C;
De H infere-se I

Se H é verdadeiro, então I é verdadeiro.
I não é verdadeiro
__________________________
Então, H não é verdadeiro.

A hipótese H foi refutada. Mas como H é composta de A, B e C, não é possível dizer que cada uma das afirmações A, B e C seja falsa, mas sim que o conjunto de A, B e C é falso. Sendo assim, um cientista que defenda H e veja sua hipótese ser refutada, pode muito bem manter H simplesmente modificando algum elemento - mais ou menos importante - de H. Ele pode trocar B por G, por exemplo. Nesse caso, a mesma operação pode ser repetida quantas vezes for necessário, até que H forneça as implicações Is corretas experimentalmente. A refutação, por conseguinte, não é definitiva.

Ora, se uma hipótese jamais pode ser verificada ou refutada definitivamente e se as teorias pretendem descortinar leis naturais, como distinguir legítimas leis de meras generalizações ou fantasias? Se leis da natureza são generalizações o que as diferencia de generalizações acidentais? 

Se eu digo “todas as bolas nessa caixa são pretas”, estou somente fazendo uma generalização de fato que dá conta de um caso acidental. Não há aí nenhuma inferência indutiva que cubra casos futuros de bolas em caixas. Entretanto, quando digo, à guisa de explanar uma lei natural, “ Todos os P são Q ”, não pretendo estar apontando para um aspecto acidental, mas para um aspecto essencial da realidade.

Quando um repórter afirma que todos os deputados votaram contra o projeto, essa afirmação pode ser facilmente verificada simplesmente averiguando-se os votos de todos os trezentos deputados. Sabendo-se do número limitado de deputados, por maior que ele seja, é possível verificar a afirmação de que todos os deputados votaram contra o projeto. Nesse caso, há uma generalização acidental, já que tudo o que se quer afirmar é que "acontece ser esse o caso".

No caso das leis naturais, como foi explicado acima, nenhum conjunto limitado de confirmações pode verificar uma afirmação universal do tipo "todos os gatos miam". Isso se dá justamente porque "todos" aí se refere não a um conjunto limitado e fechado passível de verificação, mas a uma infinidade de instâncias no passado, no presente e no futuro.

Além disso, Hempel, seguindo a argumentação de Nelson Goodman, indica que leis sustentam condicionais contrafatuais, enunciados da forma "Se A tivesse sido o caso, então B teria sido o caso", e também condicionais subjuntivos, do tipo “Se A vier a acontecer, B também acontecerá”. 

Se eu afirmo: "a substância X é inflamável", o que estou dizendo é que todo e qualquer X, quando em contato com o fogo, inflama-se. Mas não digo isso somente do X que de fato inflamou-se, mas, principalmente, do X que não se inflamou, mas se inflamaria caso fosse colocado em contato com o fogo.

"Se X fosse colocado em contato com fogo, ele se inflamaria" ou "se X for colocado em contato com o fogo, X irá se inflamar".

Em outros termos, as leis naturais falam de disposições, propensões e poderes das coisas. E estes pertencem necessariamente às coisas, independentemente de existirem ou não as condições para a sua manifestação. Ainda que nunca seja exposta ao fogo, a substância X ainda será inflamável. As leis naturais não afirmam somente o que aconteceu, mas do que aconteceu inferem disposições e propriedades que pertencem às coisas e que se manifestarão se determinadas condições apresentarem-se.

Generalizações de fato, por seu turno, não podem sustentar tais condicionais porque seu valor explanativo se esgota no fato que descreve, uma vez que todas as instâncias possíveis já foram verificadas.

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* Edição brasileira, traduzida por Plinio Sussekind Rocha, 1974, Zahar Editora

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Alvin Plantinga, conhecimento e o argumento contra o naturalismo




"Em mim sempre nasce a horrível dúvida se as convicções da mente humana, a qual desenvolveu-se a partir da mente dos animais inferiores, têm qualquer valor ou são confiáveis. Confiaria alguém nas convicções da mente de um macaco, se houvesse alguma naquela mente?" CHARLES DARWIN *

O prestigiado filósofo analítico americano Alvin Plantinga (hoje aposentado) lecionou e trabalhou durante anos nas áreas da epistemologia, metafísica, lógica, filosofia da religião e filosofia da ciência. Ele foi um dos expoentes da chamada "epistemologia reformada", movimento de inspiração calvinista nos EUA, e deu contribuições originais à discussão epistemológica contemporânea. 

Plantinga ficou conhecido no mundo acadêmico por suas tentativas de discutir as possíveis relações entre religião, ciência e epistemologia. A sua tese mais popularmente conhecida talvez seja aquela na qual pretende lançar dúvidas sobre um darwinismo exclusivamente naturalista através de suas consequências filosóficas. 

De início, Plantinga admite que, sozinho, o darwinismo é inofensivo para as bases da fé cristã. Uma vez que sua formulação básica moderna diz somente que a evolução é um processo de mutação genética aleatória somada à seleção ambiental cumulativa não-aleatória, nada impede que aí haja intervenção divina.

Para ele, a aleatoriedade da mutação genética significa somente que ela não pode ser prevista, controlada ou mesmo orientada pelos meios científicos conhecidos. Nada impede, porém que Deus a esteja guiando como um designer para criar os seres vivos que vemos.

Entretanto, assevera Plantinga, o darwinismo moderno somado ao naturalismo metafísico está em franca oposição ao cristianismo. O naturalismo afirma que não há nenhuma espécie de ação divina no mundo. Ou seja, tudo não passa de processos naturais que se bastam a si mesmos e que não têm em sua origem ou em seu desenvolvimento e manutenção qualquer interferência divina. Assim, o homem e todos os seres vivos seriam o produto de um processo não-teleológico que visa somente à sobrevivência das espécies.

Michael Ruse, conhecido filósofo naturalista britânico, defende que essas sejam as bases da reflexão filosófica hodierna e que antigas questões filosóficas sejam respondidas a partir do que sabemos através da biologia. Em tom emblemático, ele assevera que é necessário “levar Darwin a sério” (Taking Darwin Seriously é o título de uma de suas obras).

Para Alvin Plantinga, contudo, “levar Darwin a sério” pode resultar em descobertas bem diferentes daquelas defendidas por Ruse. É o que ele pretende mostrar em um artigo onde apresenta o seu "argumento evolucionário contra o naturalismo". 

Se imaginarmos uma espécie qualquer de seres inteligentes que tenham suas faculdades cognitivas formadas ao longo de um processo evolutivo darwiniano não-guiado por ação divina, poderemos dizer com respeito às suas crenças que elas serão de alguma forma confiáveis? Tudo dependerá da relação entre crença e comportamento.

1) Se pensarmos como o epifenomenalismo, então as crenças em nada influirão no comportamento, sejam verdadeiras ou falsas; assim, a confiabilidade das crenças seria baixa;

2) O epifenomenalismo semântico afirma que as crenças têm papel causal no comportamento somente por sua estrutura sintática e não por sua semântica. A crença teria então um padrão de atividade neural, sua sintaxe. O conteúdo da crença, sua semântica (como verdade ou falsidade), porém, não influenciam causalmente o comportamento. De novo, a confiabilidade das crenças se mostra baixa.

3) Pode-se pensar que as crenças realmente influem causalmente no comportamento, mas são desfavoráveis, mal-adaptativas. Nesse caso, como nos anteriores, a confiabilidade seria baixa.

4) O quarto caso seria aquele em que as crenças influem no comportamento e são, em acréscimo, adaptativas. Neste caso, qual seria o nível de confiabilidade dessas crenças? Eis o cerne do problema. Para ele, Plantinga tem a mesma resposta das alternativas anteriores: a confiabilidade é baixa.

Por que essas crenças seriam tão pouco confiáveis? Pelo simples fato de que a adaptação não precisa necessariamente de crenças verdadeiras. Há uma infinidade de crenças que poderiam causar o mesmo comportamento adequado em uma dada situação. Como a de um hominídio que acreditasse que se afastar e fugir de um tigre era respeitar um preceito de alguma divindade segundo a qual aproximar-se de um tigre seria grande blasfêmia.

Nesse caso, o comportamento perfeitamente adaptativo seria causado por uma crença eminentemente falsa. E para mesma ação, para o mesmo comportamento, uma infinidade de crenças falsas poderiam produzi-la. Então, a par desses fatos, a probabilidade de que as crenças sejam confiáveis é baixa, talvez inescrutável.

Assim, o naturalismo encontra aí um defeater. Um defeater é uma razão para abandonar, duvidar de uma crença. Se eu sou um cartesiano extremado e creio que um gênio maligno deturpou todas as minhas faculdades impedindo-me de ter crenças verdadeiras, então tenho um defeater contra a confiabilidade de minhas faculdades cognitivas e serei obrigado a desconfiar delas.

De modo análogo, se o naturalista darwiniano crê que nossas faculdades cognitivas são o fruto não-guiado de um processo não-teleológico que visa somente à sobrevivência do ser vivo, então ele tem contra si mesmo um defeater, pois tudo o que sabe sobre o mundo, e mesmo suas teorias, ele hauriu a partir de suas faculdades cognitivas que, afinal, só se importam com a sobrevivência e não com a verdade. Como pode ele então sustentar a verdade de sua teoria se ela mesma afirma que nossas crenças, para serem adaptativas, não necessitam dar um conhecimento verdadeiro do mundo?

Por outro lado, segundo Plantinga, o teísta sabe que Deus criou o homem e suas faculdades cognitivas para conhecer a verdade, então não tem motivos para duvidar de sua confiabilidade e sua eficiência nas condições em que foram criadas para funcionar. Plantinga aponta aqui para o fato de que se não há designer, não há garantia de que o homem possa conhecer verdadeiramente.

A objeção mais natural ao argumento de Plantinga - e, de fato, a mais recorrente - é apontar para a conhecida falibilidade de nossas faculdades. A falibilidade já é amplamente conhecida, reconhecida e não implica que as faculdades sempre falham. Entretanto, primeiramente, Plantinga não parece estar querendo dizer algo novo acerca da falibilidade das faculdades, mas sim querendo apontar para um traço fundamental do combo darwinismo/naturalismo.

Sempre se reconheceu que o homem podia se enganar no processo do conhecimento. Isso é plenamente verdadeiro. Embora as faculdades possam reconhecidamente falhar, em nenhum momento isso significou que elas falham todo o tempo ou na maioria das vezes.

O que sempre se afirmou, pelo menos desde Aristóteles, é que havia a possibilidade da falha, do engano, em determinadas circunstâncias. Tais circunstâncias seriam aquelas nas quais um aparelho destinado a acertar se via em condições não aptas para seu uso. 

Dito de outro modo, em ocasiões não apropriadas, o aparelho cognitivo forneceria respostas errôneas. Mas essas respostas errôneas poderiam ser corrigidas à luz de novas respostas alcançadas dentro das condições normais para o funcionamento dos meios de conhecimento. Por conseguinte, a confiabilidade destes estava garantida desde que se conhecessem as condições ideais de seu uso.

Para Plantinga, a novidade do darwinismo/naturalismo não é afirmar que a evolução natural, como um gênio maligno, produziu nossas faculdades cognitivas para sempre fornecer respostas errôneas, pois neste caso o darwinismo seria um caso claro de auto-refutação. A novidade, ainda segundo Plantinga, vem do fato de se afirmar que as faculdades cognitivas têm a tendência fundamental de fornecer somente um retrato útil do mundo. Ou seja, em tese, elas têm a tendência de dar respostas falsas se isso for necessário para a sobrevivência do ser vivo.

Aqui não se trata mais de faculdades que falham em circunstâncias bem determinadas, mantendo sua confiabilidade geral, mas de faculdades que darão respostas falsas se isso beneficiar a sobrevivência. Essa é uma racionalidade cuja astúcia está em mentir se isso for necessário. E determinar qual o alcance dessas crenças falsas (boas para a sobrevivência, no entanto) é impossível, pois todo nosso aparelho cognitivo está envolvido nisso. A possibilidade vai desde uma ou poucas crenças até a totalidade delas.

Eis porque Plantinga defende que o naturalismo/darwinismo é eminentemente self-defeating. Muitos naturalistas defendem abertamente que algumas dessas crenças falsas com vantagem adaptativa podem ser conhecidas e apontam para certos costumes, para certos padrões de moralidade e, sobretudo, para as crenças religiosas. Estas seriam um exemplo clássico. São falsas, mas têm sua origem em sua vantagem adaptativa.

A questão é: "Por que a ciência deveria ser de uma constituição diferente das outras atividades humanas?" Ou seja, por qual razão a ciência não poderia estar entre essas crenças falsas, porém vantajosas do ponto de vista da mera adaptabilidade e sobrevivência?

O que Plantinga faz em seu argumento é voltar a carga contra os naturalistas e levar até eles algumas conseqüências não-pretendidas de seus próprios argumentos. E aí existem importantes problemas conceituais a serem resolvidos.

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Carta a William Graham, Down, July 3rd, 1881. In The Life and Letters of Charles Darwin Including an Autobiographical Chapter, ed. Francis Darwin (London: John Murray, Albermarle Street, 1887), Volume 1, pp. 315-316.

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