"Qualquer coisa que é haurida da evidência dos sentidos é superior àquilo que é oposto à observação; uma conclusão que é inconsistente com a evidência dos sentidos não deve ser sustentada; e um princípio que não concorda com o conhecimento experimental dos sentidos não é um princípio, mas o oposto disso. (...) O raciocínio deriva e garante uma conclusão, mas não a torna certa e nem remove a dúvida de tal forma que a mente possa descansar sobre a intuição da verdade, a menos que a descubra por via da experiência."
ALBERTO MAGNO, Comentário à Física de Aristóteles
O estudo dos fenômenos naturais, a Filosofia Natural, teve seus acanhados inícios na Idade Média antes ainda das traduções das obras físicas de Aristóteles no século XII e XIII. Adelard de Bath, como mostramos em um post anterior, já havia definido uma clara distinção entre o projeto teórico de estudo do mundo natural e as exigências da teologia no século XII.
Presos a um conhecimento parcial das obras peripatéticas, praticamente restrito ao corpo lógico dessa tradição, os filósofos naturais medievais encararam seu campo de estudo a partir de um ponto de vista eminentemente lógico-formal. Com as traduções das outras obras deAristóteles, chega a tradição de um pensamento firmemente fincado no mundo empírico.
Em sua Física, o filósofo grego declara que o filósofo natural lida com um mundo formado de seres móveis, ou seja, seres que atualizam potencialidades que estão inscritas em suas naturezas. Todas as operações desses seres derivam-se dessas potencialidades definidas por suas naturezas, e conhecê-las é conhecer realmente suas causas.
As naturezas - ou Formas, Eidos -são conhecidas por um processo que, necessariamente, inicia-se pelos sentidos. Os sentidos nos fornecem seres singulares e pela sua observação, a imaginação gera fantasmas e, através destes, a abstração separa o essencial daquilo que é material e alcança a natureza, que é geral e se encontra instanciada inteiramente em cada um dos seres concretos que os sentidos nos fornecem.
O que nos é mais acessível - os diversos exemplares concretos que nos vêm pelos sentidos - não é o primeiro na ordem do ser. Em outros termos, a causa das coisas é sua natureza, compartilhada por todos os exemplares concretos, que só é alcançada por um processo mediado pelos sentidos, mas que não pára neles.
A natureza será traduzida numa definição formal que, em conjunto com outras premissas, servirá como premissa numa demonstração que será verdadeiro conhecimento. Assim, o ideal do conhecimento aristotélico é empírico e indutivo em suas premissas hauridas diretamente pela experiência comum dos sentidos e demonstrativo por sua estruturação lógica.
Ora, esse conhecimento preenche plenamente o ideal de epistemé ou scientia, ou seja, conhecimento certo e infalível. Uma vez que as premissas são indubtávelmente verdadeiras, nenhum erro poderá ser deduzido delas. Em outros termos, o que sustenta o conhecimento é a verdade das premissas, hauridas pela indução e abstração a partir de exemplares concretos dados aos sentidos.
Tudo o que a coisa é - sua essência -, tudo o que a coisa pode fazer ou sofrer - suas operações e potencialidades - segue-se de sua natureza, sua causa real. Dessa forma, não é difícil entender que os filósofos naturais medievais, enquanto verdadeiros aristotélicos, enfatizavam o uso da experiência empírica comum, mas não se dedicassem a testar em experimentos suas teorias.
Ora, se algum filósofo natural que saber se uma teoria é verdadeira, basta perguntar-se sobre suas premissas. Se elas são hauridas diretamente da experiência ou puderem ser logicamente deduzidas de princípios ou premissas sabidamente verdadeiras, então sua verdade está demonstrada.
O método (da ciência moderna) de derivar logicamente de teorias algumas consequências ou predições e de testá-las num ambiente controlado - e por definição, "não-natural" - não poderia atrair um aristotélico medieval. E isso por motivos estritamente lógicos e metodológicos. Em primeiro lugar, são as premissas que sustentam o argumento ou a teoria e não o contrário. Tentar provar a teoria por suas consequências ou predições é esquecer-se que de premissas falsas podem ser derivadas conclusões verdadeiras. Por conseguinte, nada pode ser provado sobre a verdade da teoria.
Em segundo lugar, por esse método, qualquer conjunto de dados pode ser harmonizado com um conjunto indefinido de teorias. Consequentemente, jamais poder-se-ia provar definitivamente uma teoria, uma vez que é impossível afirmar que não há uma alternativa igualmente adequada aos fatos.
O filósofo natural medieval não queria um conhecimento meramente provável ou probabilístico, mas um conhecimento certo que se derivasse diretamente da natureza das coisas. Longe de ser um desprezo da experiência, sua postura era antes uma confiança insuperável na verdade da mesma e na racionalidade do mundo.
O mundo é um cosmos, um ente dotado de seres que se relacionam ordenadamente uns com os outros segundo suas naturezas intrínsecas e imutáveis. É a natureza - Forma ou Eidos - que garante a inteligibilidade e a ordem do mundo. Se este se apresenta ao homem de forma ordenada, é porque as coisas têm naturezas intrínsecas e suas operações e movimentos - suas atualizações de potencialidades - são determinadas por aquelas. A experiência nos dá testemunho dessa ordem racional. O mundo é inteligível e pode ser estudado racionalmente. Por isso, o conhecimento é certo e demonstrável.
Esse pressuposto básico será duramente criticado já no final do século XIII e desse questionamento surgirá uma nova forma de filosofia natural, restrita ao âmbito do mero provável e ancorada em experimentos dados somente na imaginação.
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