sexta-feira, 28 de junho de 2024
Arjuna, Mahābhārata e o simbolismo da flecha
quinta-feira, 27 de junho de 2024
Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo VI)
sábado, 15 de junho de 2024
Jakob Wassermann e o simbolismo de "O Ouro de Cajamalca"
"Compreendi que nenhum sonho até então, por mais aterrorizante que fosse, havia despertado em Atahualpa o pressentimento de que existiria sobre a terra seres como nós."
JAKOB WASSERMANN, "O Ouro de Cajamalca"
A novela "O Ouro de Cajamalca" (Das Gold von Caxamalca), publicada em 1923 pelo escritor alemão Jakob Wassermann (1873-1934)*, aparenta ser, à primeira vista, uma reflexão literária sobre os conflitos éticos e epistemológicos que se seguem ao encontro de duas culturas cujos valores são mutuamente incompreensíveis. De um lado, os peruanos, centrados na figura hierática do Inca, Atahualpa, de quem emanava toda a organização social, religiosa e política de seu povo. Do outro, os conquistadores espanhóis, liderados por Francisco Pizarro, cujos sentimentos confusos tentavam conciliar a sua fé cristã com a baixeza da obsessão pelo ouro.
O livro de Wassermann narra um episódio trágico acontecido durante a campanha militar do general Pizarro sob a forma do relato em primeira pessoa redigido pelo cavaleiro espanhol Domingo de Soria Luce quando este já havia se retirado do mundo e vivia como monge na cidade de Lima, treze anos após a conquista do Peru. Em novembro de 1532, trezentos soldados espanhóis, entre cavaleiros e infantes, após atravessarem com muitas dificuldades a Cordilheira dos Andes, alcançam Cajamalca, a "cidade gelada".
Cajamalca se encontrava vazia, aparentemente abandonada por seus habitantes pouco antes que os conquistadores ali chegassem. Nas encostas das montanhas à frente da cidade, contudo, estavam espalhadas as milhares de tendas brancas do exército do Inca, o imperador Atahualpa, acampado à espera dos invasores europeus. Dominado pela cobiça tanto quanto seus companheiros, Domingo não esconde que a busca da riqueza foi sua principal motivação para tomar parte naquela empreitada repleta de vicissitudes, perigos, privações e dissabores.
O ouro! Ah, o ouro! O metal nobre que corria na forma de rios, que cobria mesmo os tetos das habitações, dos palácios e dos templos! Entre aquela horda de almas sedentas vindas do outro lado do oceano e a cornucópia de dons infinitos estava Atahualpa, tal como a serpente que nunca dorme entre Jasão e a árvore do velocino de ouro. Qual feitiço adormeceria essa serpente? Quem seria a Medéia que conjuraria as forças da deusa do Hades a fim de franquear aos espanhóis o caminho do tesouro?
Pizarro decide atrair Atahualpa para uma emboscada. O general envia uma embaixada, e convence o imperador a visitá-lo em Cajamalca no dia seguinte. Seu plano é sequestrá-lo, e assim derrotar o monstro sem nenhuma luta. A nobreza do imperador o impede de vislumbrar o ardil. Ele desce da montanha, desarmado, sentado sobre um trono de ouro puro, carregado por um séquito de nobres. Incrédulo, porém resignado, Atahualpa vê seus súditos serem massacrados, e ele mesmo capturado pela súcia de seres incompreensíveis. Que tipo de entidades eram aquelas capazes de atos flagrantemente ardilosos e traiçoeiros?
Atahualpa descendia do Sol que, em benefício dos homens, enviou-lhes no início dos tempos o casal primordial, irmão e irmã, esposo e esposa, que lhes ensinaram os princípios da civilização. O Inca, é a presença concreta no mundo da ordem solar que se manifesta por meio da dualidade primária, o hieros gamos, da qual todas as coisas nascem. Sob sua influência, os peruanos viviam sem miséria e sem riqueza, trabalhavam nas suas terras, nas terras comunitárias e nas terras do Sol, o Pai de todos. Não havia mendicância, cupidez, insatisfação ou egoísmo.
Atahualpa vem da montanha como uma emanação do Axis Mundi para atender o chamado daquelas estranhas criaturas. Não pode compreender os motivos dos desarrazoados que o traíram e o aprisionaram. Encerrado por Pizarro em uma casa e vigiado por soldados, permanece mudo e pensativo. Um grupo de súditos e de algumas de suas esposas, obtém a permissão de acompanhar seu soberano em sua desdita. Espantado e horrorizado, aos poucos Atahualpa compreende que aqueles seres que o mantém cativo trocariam tudo, inclusive a honra e a vida, pelo ouro, o metal abundante e sem valor que decora as cidades peruanas.
Eles almejam a transmutação, mas do ouro só conhecem o seu significado material. Presos e afundados na azáfama deste mundo, o que demandariam ao Princípio senão o que pertence ao aspecto bruto da realidade? Não é espantoso que a comunicação dos conquistadores com o Inca se dê por meio de um intérprete peruano, Felipillo, que nutre ódio infindo por seu povo e por Atahualpa. Figura do caído, Felipillo é aquele que esteve um dia sob a influência do Princípio, e que agora, descido ao nível dos adoradores do metal, recorda o suficiente do idioma sagrado, mas o utiliza somente para formular os desejos mais baixos de seus novos mestres.
O intérprete explica a Atahualpa que sua liberdade poderia ser garantida se prometesse ouro aos espanhóis. Ele o faz, promete preencher aquela casa com tanto ouro quanto queiram seus captores. Os súditos do Inca trazem, dia após dia, mais e mais objetos feitos do metal ambicionado que se acumulam até alcançar a marca traçada por Pizarro no acordo. Ídolos, máscaras, pratos, braceletes, vasos, e até uma fonte esculpida, tudo foi derretido para ser transformado em barras a serem distribuídas aos membros da alcateia.
As formas se perdem, "retornam à matéria primeira", segundo a apta expressão de Domingo, o narrador. Tudo é reduzido ao indeterminado comum numa operação alquímica cujo resultado é a transmutação do ouro em vil metal. Por trás de cada barra se escondem fantasmagoricamente as inúmeras possibilidades de realização dos desejos baixos concebidos nos corações daqueles homens, símbolos das forças dissolventes que corrompem e por fim destroem a ordem.
Felipillo secretamente envenena a mente do general acusando Atahualpa de estar conspirando com seus súditos contra os conquistadores. Mesmo sem acreditar no pérfido intérprete, Pizarro enxerga a oportunidade de se ver livre de suas promessas. Um tribunal é rapidamente constituído, e, ouvidas as testemunhas, Felipillo incluso, o veredito inevitável não se deixa tardar: Atahualpa é condenado a ser queimado vivo em uma fogueira.
Alguns não concordam e protestam. Domingo, fraco, incapaz até mesmo de encontrar as palavras para expressar sua discordância e sua reticência, emudece, não aprova e nem protesta. Morno, igual aos que serão vomitados da boca do Senhor. Atahualpa apela a Pizarro, pede clemência, questiona a razão do general ser tão indigno e traiçoeiro com quem o recebeu com cordialidade e amizade em suas terras. Nenhuma das palavras aladas demove o comandante de seu intento funesto.
O Inca aceita seu destino, e solicita ser morto ao amanhecer, diante do Sol, seu pai. Ordena a seus súditos que tragam a ele seus ancestrais para uma última ceia. Nesse ínterim, Atahualpa pede a Domingo que escreva uma palavra em sua unha para que os soldados leiam e a sussurrem em seu ouvido a fim de confirmar ao Inca a arte da escrita que os espanhóis dominam. Domingo escreve a palavra "cruz".
Pizarro, contudo, não sabe ler e nem escrever. O simbolismo não poderia ser mais claro. O general não entende a mensagem de Domingo, fosse ela consciente ou não. Atahualpa percebe a inadvertida humilhação a que submeteu o seu captor, e tenta saná-la com suavidade e mansidão. Chama Pizarro de "deus entre seus homens", e, após a inflamada resposta do comandante contra o paganismo peruano e defesa da verdade da fé cristã, segue-se um amargo debate teológico em que o Inca questiona como seria possível a ele crer no deus de misericórdia e de amor que permite que seus fiéis assassinem inocentes.
À noite, um evento insólito, que marca indelevelmente o espírito de Domingo, acontece na casa onde Atahualpa é mantido prisioneiro. Em torno do Inca, sentado no centro, são postados por seus súditos vinte e quatro assentos de ouro, doze à sua esquerda e doze à sua direita. Atônitos, os espanhóis veem chegar doze múmias masculinas e doze femininas carregadas solenemente em tronos de ouro carregados por nobres peruanos ricamente trajados. Elas são respeitosamente postadas nos lugares em torno de Atahualpa.
São os veneráveis ancestrais do Inca que vieram tomar parte da cerimônia sagrada na qual o soberano se despede desse mundo. Sobre a mesa central, um imenso Sol de ouro foi depositado. À direita de Atahualpa estavam seus ancestrais masculinos, enquanto à esquerda postavam-se suas ancestrais. Doze representações simbólicas do casal original de irmãos, esposo e esposa, saídos diretamente da unidade omniabarcante do Sol em benefício dos homens.
Impassível e pleno de dignidade, de harmonia e de beleza, Atahualpa, em pé, era o Sol encarnado desse cosmos formado por seus ancestrais. Ele dirige a palavra aos seus captores e lhes pergunta como era viver nas trevas, sem a luz do Sol. Os espanhóis, indignados, respondem que possuem a verdadeira fé, e que não estão privados da luz. Mas, se é o mesmo Sol que os ilumina em suas terras, por qual razão eles movem-lhe guerra?
Atahualpa insiste que aqueles homens não podem acreditar nos valores que professam ao mesmo tempo em que não respeitam as leis, os lugares e os objetos sagrados, e creem-se no direito de tomar à força o que desejam sem recuar diante de nada. Ninguém que entende o que é o hagnos pode compurscar o temenos. O Inca assevera que, depois de muita meditação, conseguiu identificar o que tornava os seus captores tão fortes: o ouro.
É o ouro, e nada mais, que os motiva, que os enche de coragem para tudo contaminar e de tudo se apropriar sem peias. O metal é o seu Deus e o seu redentor, não o Cristo. Ao adquirir o ouro, contaminam e transmutam a própria alma. Aquele que o possui considera-se rico, posto que não conhece outro Sol. Seres de trevas, dignos de pena.
Nesse momento, os guardas e o resto da soldadesca, enfeitiçados pela luz dourada que refulgia dos tronos, das jóias, das vestimentas e dos acessórios dos ancestrais diante dos quais Atahualpa respeitosamente se inclinava, abandonaram suas posições, e avançaram a fim de tomar algo desse tesouro. Olhos vidrados, possuídos pela avidez, brigavam entre si pelo último butim. Atahualpa, serenamente, com um sorriso no rosto, parte para o seu holocausto, à luz dos primeiros raios do Sol.
O Inca provara seu ponto. À frente do Sol encarnado, rodeado por seus veneráveis ancestrais, em uma cerimônia sagrada, aqueles homens não viram nada além do mundo material imediato e dos desejos terrestres transubstanciados no ouro. A figura terrestre de Atahualpa é o corpo translúcido que deixa ver sem barreiras o Princípio. Na sua identificação com o Sol, ele é semelhante ao Cristo que é verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus.
"Quem me vê a mim vê o Pai; e como dizes tu: Mostra-nos o Pai?" (Jo 14,9). Nisso se resume a natureza do símbolo. Quem vê o Cristo, vê o Pai, pois o homem terreno Jesus de Nazaré não tem nele nada que obstaculize a visão do Princípio, pois este se manifesta plenamente naquele. Não há razão para que os discípulos peçam ao Cristo que ele mostre o Pai. Somente a visão apegada às coisas é incapaz de enxergar a luz do Princípio que flui sem obstáculos através daquela pessoa terrena.
O símbolo só pode comunicar o seu significado quando ele é vazio, quando a coisa que simboliza desaparece para dar lugar ao simbolizado. Todas as coisas podem ser símbolo porque todas as coisas são ontofania e teofania. Essa é uma lei ontológica. O Princípio só aparece no desaparecimento das coisas. Não a desaparição física, mas o esvaziamento no qual os entes não se impõem mais a nós enquanto entes cuja opacidade impede que se enxergue que não é esta coisa que é importante, e sim aquilo a que ela remete fundamentalmente.
O fundamento só é discernido quando o que ele fundamenta é abstraído, esquecido, ultrapassado. O ouro em si mesmo nada tem de mal. O que os espanhóis veem, no entanto, é só o metal opaco que tem o poder convencional de adquirir miríades de bens e objetos igualmente opacos. Atahualpa, numa última tentativa de fazê-los vislumbrar a transcendência, oficia um rito sagrado, assume a figura tradicional do rei-sacerdote, aquele que possui as duas chaves de Janus, o poder temporal e o poder espiritual.
À última ceia segue-se o juízo, confirma-se a indignidade daqueles homens cegos pela cupidez. Assediado por essas forças dissolventes, a Ordem, o Princípio, caminha na direção do holocausto. Sob o olhar do Sol, Atahualpa queima, dissolve seu corpo e, com ele, retira-se do mundo, pelo poder simbólico de purificação do fogo, uma das múltiplas possibilidades de manifestação da Realidade.
Domingo, o narrador, cansado de tanta morte e destruição, meditando amargamente sobre "a natureza humana e suas possibilidades inexploradas", abandona a vida mundana, e recolhe-se à contemplação monacal. Ali ele deseja a existência de uma estrela que irradiasse uma luz mais nobre que a do Sol sob o qual se deu o percurso de sua vida, e que parecia haver sido abandonado por Deus.
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* Jakob Wassermann é mais conhecido por sua trilogia "O Processo Maurizius", "Etzel Andergast" e "A terceira existência de Joseph Kerkhoven". A novela "O Ouro de Cajamalca" foi saudada por Thomas Mann como a mais bela narrativa em língua alemã do século XX. Escritor prolífico, seus livros foram queimados em praça pública pelo regime nacional-socialista alemão.
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quinta-feira, 13 de junho de 2024
Aristóteles, Física e a natureza do infinito
"O infinito, portanto, não existe de nenhuma outra forma a não ser potencialmente e por redução. (...) O infinito revela-se como o contrário do que é afirmado usualmente sobre a sua natureza. Não é infinito aquilo que não tem nada fora dele, mas aquilo que sempre tem algo fora dele."
ARISTÓTELES, Física, Livro III, 206b [15] (tradução minha)
Sendo fato que a ciência física lida com magnitudes, movimento e tempo, é necessário que seja discutida a possibilidade de haver ou não o infinito (ἄπειρον, ilimitado, indefinido, sem bordas*) e qual a sua natureza, afirma Aristóteles no Livro III da Física. Os pensadores antigos que se dedicaram aos temas físicos acharam por bem estudar o infinito, e alguns, como Platão, os Pitagóricos, Anaxágoras, Anaximandro e Demócrito, chegaram a postular a sua existência entre os princípios das coisas.
Não é à toa que o infinito seja considerado um princípio, uma vez que tudo o que há é uma fonte ou deriva de uma fonte. O infinito necessariamente é uma fonte, pois como poderia ser derivado de alguma outra coisa aquilo que não possui limite? Além disso, se fosse destrutível ou criado seria limitado por aquilo que o sucede ou por aquilo que o antecede. Desta feita, não pode ser acompanhado (portanto, limitado) por nada, sendo a fonte de tudo. Imortal e imperecível, dizia Anaximandro.
A afirmação da existência do infinito vem de cinco considerações: 1) a natureza do tempo. A cada instante qualquer, é possível pensar num instante anterior e num instante posterior, o que parece não ter início ou fim determinados; 2) a divisão das magnitudes, as quais podem ser continuamente divididas ad infinitum sem serem jamais esgotadas; 3) o vir a ser e o deixar de ser das coisas exige algum substrato que não se extinga, de onde as coisas vêm e para onde retornam; 4) tudo o que é limitado é limitado por algo que o ultrapassa, e assim sucessivamente sem que nenhum fim seja alcançado; e, principalmente, 5) o número, as magnitudes matemáticas e o que está para além do céu apresentam a mesma dificuldade, a saber, que o pensamento jamais os ultrapassa (não os esgota ou neles encontra limites).
A questão do infinito é reconhecidamente difícil, e, do ponto de vista físico, o problema específico a ser resolvido é saber se há ou não alguma magnitude sensível que seja infinita. Aristóteles restringe a discussão ao mundo sensível, e distingue os sentidos de infinito: aquilo que não pode ser percorrido porque não é da natureza das coisas que podem ser percorridas, aquilo que admite ser percorrido, mas cujo percurso não tem fim, aquilo que dificilmente admite ser percorrido, aquilo que admite ser percorrido, mas que efetivamente não é atravessado ou alcança um fim.
Aristóteles pensa que o infinito não pode ser uma coisa ela mesma infinita e separável dos objetos sensíveis. Se não for uma magnitude (que pode ser medida) ou um agregado (cujos elementos podem ser contados), então o infinito será indivisível. Uma magnitude sensível sempre pode ser dividida, mentalmente ou realmente. O infinito, entretanto, se não é uma magnitude, não pode ser dividido sequer em pensamento. Tomado desse modo, o infinito será indivisível tanto quanto a voz é invisível (um elemento que não lhe pertence substancialmente), o que difere das teses daqueles que defendem a sua existência e do modo como Aristóteles o investiga (enquanto aquilo que não pode ser atravessado).
O infinito é indivisível porque qualquer divisão implicaria haver dois ou mais infinitos, o que é absurdo. Mas a indivisibilidade não pode ser verdade daquilo que é totalmente acabado e completo (nada lhe faltando). A discussão envolve outras dificuldades e questões envolvendo a possível infinitude dos objetos matemáticos e das coisas que são inteligíveis, portanto inextensas. A investigação da Física, contudo, tem como objeto tão somente os objetos sensíveis, e, limitada a esse âmbito, a pergunta que deve e pode ser feita é se há ou não entre eles algum corpo que seja infinito em aumento.
Deve-se compreender que Aristóteles fala na qualidade de físico, e que essa posição epistemológica limita necessariamente a sua discussão ao campo dos entes sensíveis. A suposta infinitude dos números ou a infinitude metafísica não estão dentro do escopo da ciência física. A única modalidade de infinitude que pode ser contemplada nesse contexto é aquela que estaria presente nos corpos físicos. De cara, o caráter sensível desses entes parece excluir o infinito, uma vez que não parece haver nada que caia sob nossos sentidos que não possua algum tipo de limites.
Aristóteles argumenta dialeticamente (ou seja, a partir do que é comumente aceito) que o corpo não pode ser infinito, dado que, por definição, trata-se daquilo que é "limitado por uma superfície". Seria contraditório afirmar que algo que é definido justamente por uma limitação seja idêntico àquilo que é ilimitado. Nem o número, quando abstraído das coisas, pode ser infinito. O que caracteriza o número é ser numerável, e se o infinito fosse numerável, seria possível contar todos os seus elementos. Somente é contável até o fim aquilo que é limitado, sendo a enumeração da totalidade do infinito, portanto, uma evidente contradição.
O filósofo macedônio não nega, que fique claro, que a um número qualquer sempre uma nova unidade pode ser adicionada. O que ele nega é que o número seja propriamente infinito. O número é por natureza uma quantidade definida, e nenhuma soma de unidades consegue abolir esse caráter essencial de limitação. A cada unidade adicionada, o número resultante jamais é infinito. A adição, é claro, pode prosseguir indefinidamente, o que não significa que os números sejam infinitos.
Há que se distinguir entre a infinitude real, que não possui quaisquer limites, e a possibilidade de se prosseguir a adição de unidades até onde se queira. O número é composto de unidades, o que por si só demonstra a sua limitação intrínseca. A soma de unidades (n+1) corresponde somente à formação de um novo número, o qual é limitado não importando a sua grandeza. Se algo é numerável, então pode ser contado inteiramente. Nada que pode ser contado até o seu fim é infinito.
O corpo infinito será ou composto de elementos ou simples. Se for composto, os seus elementos constitutivos deverão ser finitos ou infinitos em número. Elementos finitos serão, por definição, insuficientes para compor algo infinito. E se algum tipo dos elementos estiver presente no composto em um número infinito, ele vai obliterar quaisquer outros tipos de elementos que sejam em número finito.
Tampouco adianta que os próprios elementos sejam per se corpos infinitos. O corpo é aquilo que se estende em todas as direções, e um corpo infinito deveria se estender infinitamente. É patentemente impossível que os vários elementos corporais que compusessem um outro corpo infinito pudessem ser eles mesmos infinitos sem que cada um deles impusesse limites aos outros. Se A é um corpo infinito estendendo-se no espaço ad infinitum e B é outro corpo infinito também estendendo-se ad infinitum, como eles poderiam partilhar o mesmo espaço sem um limitar o outro?
Caso queiramos que A permaneça sendo A e B permaneça sendo B, ambos necessariamente têm de ser limitados. Do contrário, ou A seria obliterado por B ilimitado, ou B seria obliterado por A ilimitado. Na hipótese de ambos serem ilimitados, a contradição é óbvia. A mesma impossibilidade resulta (na verdade, torna-se mais grave) se além de A e B houver outros elementos C, D, E, F, etc, tantos quantos se queira, que sejam per se corpos infinitos.
A impossibilidade também se segue da tese daqueles que afirmam que o corpo infinito é uno e simples, estando acima dos elementos na qualidade de sua origem. Simplesmente não há qualquer corpo sensível que corresponda a isso na composição das coisas deste mundo físico no qual tudo pode ser decomposto em seus elementos constituintes. Assim sendo, o corpo infinito simples deveria estar presente na formação dos corpos, o que não se observa jamais.
Ato contínuo, Aristóteles demonstra a impossibilidade de um corpo sensível infinito com outros argumentos. Os corpos sensíveis ocupam seu lugar apropriado, o mesmo se dando tanto nas partes quanto no Todo. Se supusermos que se trata de um corpo homogêneo (inteiramente de igual natureza), a parte será imóvel ou acompanhará o movimento do Todo. Por exemplo, se a terra (o elemento, não o planeta) fosse um corpo infinito, seria impossível dizer para onde um torrão dessa terra (uma parte do Todo homogêneo) se moveria ou determinar o lugar no qual estaria em repouso.
De acordo com a teoria aristotélica dos lugares naturais, corpos feitos integralmente ou majoritariamente de um determinado elemento tendem naturalmente a mover-se na direção de seu lugar próprio. O fogo se dirige naturalmente para cima, e qualquer corpo ígneo segue essa tendência. Um corpo formado por terra é grave, isto é, possui a tendência de se dirigir para baixo quando retirado de seu lugar natural de repouso, o solo (de natureza terrosa).
Se fosse infinita, a terra teria que ocupar todos os lugares e todas as direções. Consequentemente, o lugar natural do torrão estaria em todo lugar. O corpo que se dirige naturalmente a algum lugar toma uma direção determinada em desfavor de todas as outras. O que serão o repouso e o movimento do torrão na terra infinita? Ele será imóvel ou se movimentará infinitamente.
O que Aristóteles afirma é que o fato observável de que certos corpos possuem tendências naturais a se movimentarem em tais ou quais direções impossibilita a existência da infinitude corporal. Em um corpo ilimitado homogêneo estariam ausentes quaisquer diferenças de natureza. Se só houvesse fogo, a chama não subiria ou desceria naturalmente. O torrão de terra não teria nenhuma direção natural se tudo fosse terra. Paradoxalmente, seríamos obrigados a dizer que ou o torrão seria imóvel, por estar sempre em seu lugar natural, ou que estaria sempre em movimento, ocupando sucessivamente todos os pontos da terra infinita.
Na suposição da existência de um corpo infinito que seja heterogêneo, as suas partes seriam todas dissimilares entre si, e o corpo não possuiria real unidade. Não seria um corpo, e sim um conjunto ou agregado de corpos unidos pelo mero contato entre eles. Estaria ausente a continuidade extensiva que caracteriza essencialmente a corporalidade. Se esses componentes fossem finitos em tipo, teríamos novamente o problema de que um Todo infinito necessita que algum dos seus elementos seja infinito, o que oblitera a existência de quaisquer outros elementos de tipos diferentes.
Caso as partes sejam infinitas em número e simples, os lugares próprios de cada elemento serão igualmente infinitos. Se os lugares forem finitos, o corpo será obrigatoriamente finito, dado que cada parte deve estar em um lugar correspondente. O que explica a imobilidade de um corpo, segundo Aristóteles, é o fato de se encontrar em seu lugar natural. As partes constituintes do corpo sem limites estariam todas sempre em seu lugar, o que tornaria o Todo imóvel e fixado.
A tese de um corpo infinito entra em contradição com as tendências observáveis que os corpos sensíveis possuem de se dirigirem para cima ou para o centro (o fogo e a terra, respectivamente). O corpo ilimitado sensível não pode apresentar nenhuma inclinação natural para qualquer direção. Considerado como um Todo, não pode mover-se. Estivesse dividido (o que o tornaria limitado) em metades de tipo distinto, cada metade teria tendências diferentes (uma para cima e outra para baixo, por exemplo), o que é absurdo.
Todo corpo sensível se encontra em algum lugar, e as seis posições observáveis no mundo físico são acima/abaixo, à esquerda/à direita, em frente/atrás. A existência do corpo infinito obliteraria quaisquer dessas distinções. Do mesmo modo que a quantidade infinita, o lugar infinito é um oxímoro, pois a quantidade é sempre determinada quantidade, e encontrar-se em algum lugar é sempre estar em um lugar. Do que foi dito infere-se a impossibilidade de um corpo que seja infinito em ato.
Aristóteles admite que a simples negação da infinitude gera outros problemas, como o início temporal do mundo, a divisibilidade das magnitudes, a progressão sem limites dos números. A discussão anterior fornece os elementos necessários para a solução dessa aporia. O infinito em ato é impossível, o que não significa que uma infinitude potencial não seja possível.
A potencialidade aqui não é a mesma com a qual designamos a existência possível de uma estátua em uma pedra. A estátua é potencial no sentido em que ela pode se tornar atual, pode ser efetivada, pela ação do artista. Porém, a potencialidade do infinito não pode jamais se tornar atual como a estátua pode. O ser se diz de diversas formas, e o sentido no qual a infinitude é dita existente é semelhante ao que utilizamos quando dizemos "é dia" ou "são os jogos".
Nos dois casos, a existência é atribuída a um processo, a algo que está se dando, não a um ente que foi atualizado ou finalizado. Após cada momento do dia, segue-se outro momento que era antes potencial, e após cada dia dos jogos olímpicos, segue-se um outro dia que antes era potencial. Óbvio, ao contrário do infinito, o dia chega ao fim, assim como os jogos chegam a seu termo. O cerne da questão é que o infinito existe na qualidade daquilo no qual sempre alguma coisa se segue de uma anterior, e cada coisa que se segue é limitada e diferente da que vem antes.
É um processo de vir a ser e de deixar de ser, nisso sendo semelhante aos jogos olímpicos, mas que não se encerra numa atualização final. Sua existência ou seu ser, embora inegável, é mais tênue e elusivo que o ser de uma substância (οὐσία), um "isto", como um homem ou um cavalo. Cada um de seus estágios é definido, limitado, diferente do anterior.
A adição contínua de unidades poderá seguir até onde se queira sem que se alcance um limite para além do qual uma nova adição não possa ser feita. Porém, não se segue que algum número ou alguma magnitude seja literalmente infinita. A divisão contínua de uma magnitude em partes iguais segue ad infinitum, sempre restando alguma magnitude, por menor que seja, a ser dividida ulteriormente.
O infinito, então, somente é real enquanto uma tendência sempre renovada de adição ou de subtração de partes diferentes entre si. Segundo a compreensão usual, o infinito seria aquilo que tudo abarca, nada havendo fora dele. Ao contrário, é aquilo que sempre tem algo fora dele e que pode ser atualizado em seguida. O infinito, portanto, jamais é um Todo, algo completo que não exige atualizações futuras. Nada é completo (τέλειον) se não possui um fim (τελος).
A infinitude não é a mesma no caso de magnitudes sensíveis e no caso dos números. Não há uma magnitude infinita, embora a divisibilidade seja infinita no sentido de não haver uma magnitude restante de uma divisão que não seja ela mesma divisível. Note-se que o termo aqui é divisível e não dividida. O que foi efetivamente dividido era divisível, mas uma coisa pode ser divisível sem nunca ser dividida, seja parcial ou inteiramente. O ponto levantado por Aristóteles é que as magnitudes físicas são potencialmente divisíveis ao infinito, o que não significa logicamente que elas sejam efetivamente divididas ao infinito.
Nos números, a subtração chega a um limite: a unidade. A razão disso se encontra no fato de que o número é composto por unidades. Porém, inexiste limite a priori para a adição contínua de unidades. O filósofo macedônio observa que não está destituindo os matemáticos do infinito quando refuta a possibilidade da infinitude atual no aumento sucessivo. Os matemáticos não necessitam e nem usam o infinito em ato, bastando a eles postular que uma linha reta pode ser estendida tanto quanto se queira, e, igualmente, que uma magnitude pode ser dividida continuamente sem fim.
O conceito de infinito mantém um sentido primário na magnitude, na mudança e no tempo. A mudança é dita infinita por conta da magnitude que seria percorrida, e o tempo por conta da mudança sucessiva sem um fim determinado. Todos os três se referem àquilo que não é transponível, atravessável ou percorrível. É impossível percorrer, chegar ao fim, de uma magnitude ilimitada. No âmbito das quatro causas, o infinito estaria alocado na matéria, sendo a sua essência uma privação (de limite), e seu substrato (ὑποκείμενον) estaria naquilo que é sensível e contínuo.
Duas observações finais: a primeira é que o uso que Aristóteles faz do conceito de infinito está restrito ao âmbito do quantitativo. Nos entes físicos, a infinitude está ligada à categoria da quantidade, seja ela discreta (números) ou contínua (extensão). O quantificável é, segundo a bela expressão cunhada pelos aristotélicos medievais, infinitum in potentia, sed finitum in actu**. Portanto, só é negada a existência do infinito quantitativo em ato.
A segunda observação se segue da primeira, e se refere à tradução do termo grego ἄπειρον. A fim de evitar incompreensões e confusões, talvez a palavra portuguesa que melhor expressasse o significado atribuído ao infinito por Aristóteles fosse "indefinido". O extenso é divisível indefinidamente, a adição de unidades a um número dado pode prosseguir indefinidamente. O termo indefinido tem a vantagem de evidenciar o caráter essencialmente móvel e potencial (isto é, jamais definido, finalizado, realizado, terminado) da quantidade denominada infinita.***
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* O prefixo ἀ é negativo, indica ausência, e πέρας significa fronteira, limite, extremidade, fim, termo, conclusão.
** Infinito em potência, porém finito em ato.
*** Concordamos nesse ponto com as distinções observadas por René Guénon em seu excelente estudo "Les principes du calcul infinitésimal". Na obra, o termo francês infini é claramente distinguido de indéfini, este referindo-se às quantidades (que sempre implicam algum tipo de limitação), e aquele sendo utilizado exclusivamente para designar a infinitude metafísica (a absoluta ilimitação primordial).
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