sexta-feira, 28 de junho de 2024

Arjuna, Mahābhārata e o simbolismo da flecha

 

"Fomos conduzidos a fazer alusão à lança que, na lenda do Graal, aparece como o símbolo complementar da taça, e que é uma das numerosas figuras do 'Eixo do Mundo'. Ao mesmo tempo, segundo dissemos, a lança é um símbolo do 'Raio Celeste', e, de acordo com considerações que desenvolvemos em outra ocasião, é evidente que esses dois significados no fundo coincidem. Mas isso explica igualmente que a lança, assim como a espada e a flecha, que nisso são equivalentes em suma, seja por vezes assimilada ao raio solar."

RENÉ GUÉNON, Symboles de la Science Sacré, cap. XXVI, p. 192 (tradução minha)

Atribuído tradicionalmente ao ṛṣi (sábio, vidente, asceta) Kṛṣṇadvaipāyana Vyāsa (Vedavyāsa o "compilador dos Vedas"), o Mahābhārata é um poema épico indiano que conta a usurpação do trono do reino de Kuru por Duryodhana e sua posterior reconquista pelos pāṇḍavas. Apesar de não ser um texto eminentemente sagrado (não faz parte da Śruti), foi a sua porção mais espiritual, o Bhagavad-Gītā, que veio a ser conhecida mundialmente.

Segundo o historiador A.L. Basham, em seu The Wonder that was India, Mahābhārata, contendo mais de noventa mil stanzas, pode ser considerado o mais longo poema na literatura (maior que a Ilíada e a Odisséia combinados). As suas origens estariam em baladas marciais que foram recolhidas e editadas por sacerdotes, os quais, acredita Basham, "transmitindo-as, amiúde alteraram seu caráter superficial, e interpolaram muitas passagens longas sobre teologia, moral e arte de governo"(p.409). 

Também para Romila Thapar, historiadora indiana, no primeiro volume de A History of India, os épicos, tanto o Mahābhārata quanto o Rāmāyaṇa, eram inicialmente narrativas seculares nas quais os brāhmaṇes realizaram posteriormente muitas interpolações e adições, sendo a mais famosa delas o Bhagavad-Gītā, que acabou se tornando "o livro sagrado, par excellence, dos hindus" (p.134). A tal fato se devem os incontáveis relatos paralelos e histórias independentes que volta e meia desviam a narrativa da sua trama principal.

Quanto à data de redação, o grande scholar Sarvepalli Radhakrishnan, no primeiro volume de sua obra Indian Philosophy, afirma que, a despeito dos eventos narrados acontecerem durante o período védico, não há evidências para se afirmar que a compilação do épico tenha acontecido antes do sexto século da era cristã. A forma final teria sido alcançada, após diversas mudanças, em torno do segundo século depois de Cristo (p.221). Em que pese a dificuldade na cronologia da Índia, o  professor John D. Smith, sanscritista em Cambridge e tradutor do Mahābhārata, estima que o texto tenha se consolidado entre quatrocentos anos antes de Cristo e quatrocentos anos depois de Cristo.

A história é narrada por Ugraśravas, Sūta, um bardo que, ao visitar alguns ṛṣis, é instado pelos ascetas a reproduzir o relato que ouviu do ṛṣi Vaiśaṃpāyana por ocasião do sacrifício (yajña) da serpente (Sarpa Satra) empreendido pelo rei Janamejaya, neto de Arjuna. Mais à frente, será introduzido mais um relato dentro de outro relato, o do conselheiro Sanjaya que narra ao rei cego Dhr̥tarāṣṭra a terrível batalha de Kurukshetra. 

No centro do Mahābhārata está a disputa familiar pelo trono do reino de Kuru entre os kauravas e os pāṇḍavas. Ambos os ramos em guerra descendem da iniciativa de seu tio-avô Bhīṣma de dar uma descendência a seu pai, o rei Shāṃtanu, cujos filhos morreram. Impedido de assumir o trono por uma promessa, Bhīṣma captura as princesas Ambikā e Ambālikā, e mais uma serva, e as entrega ao asceta Vyāsa para serem por ele inseminadas. Ambikā dá a luz ao cego Dhr̥tarāṣṭra, Ambālikā é a mãe de Pāṇḍu e a serva traz ao mundo o terceiro irmão, Vidura.

Dhr̥tarāṣṭra e sua esposa Gāndhārī têm cem filhos, os kauravas ou kurus, dos quais o primogênito é o cruel Duryodhana. Amaldiçoado por um asceta, Pāṇḍu não pode ter relações sexuais, então seus cinco filhos, os pāṇḍavas, nascem do intercurso de suas duas esposas, Kuntī e Mādrī, com diferentes Devata (deuses). Kuntī é mãe de Yudhiṣṭhira (cujo pai é Dharmadeva), de Bhīma (filho de Vāyu, deus dos ventos) e de Arjuna (filho de Indra, deus das chuvas e dos trovões). Mādrī é mãe de Sahadeva e Nakula, concebidos pelos deuses gêmeos Aśvin ("os donos de cavalos")*.

A rivalidade entre os kauravas e os pāṇḍavas tem início já nos jogos infantis que opunham os primos, e que sempre eram vencidas pelo grande e poderoso Bhīma. Enciumado, Duryodhana tenta afogá-lo, e, tal qual Hera com Hércules, envia serpentes para matar Bhīma com seu veneno. Todos esses esforços restam infrutíferos, e os filhos de Pāṇḍu, após a morte do pai putativo, crescem em força, virtude e habilidade. Confiados ao grande Droṇācārya, mestre nas artes marciais, os pāṇḍavas treinam todas as formas de combate, e superam os kauravas no manejo das armas.

O Mahābhārata reflete os valores dos kṣatriyas, os membros da varṇa guerreira. Entretanto, apesar de pertencer à literatura secundária e menos autoritativa (Smṛti), os valores propugnados no épico encontram seu fundamento metafísico nos livros sagrados (Śruti). No Ṛg-Veda (o quarto Veda), as varṇas**, assim como todas as coisas, têm sua origem no sacrifício (yajña) de Puruṣasuktam, o homem cósmico que "é tudo o que já existiu e tudo o que será". Quando os deuses o sacrificam, dividem-no em quatro partes:

"O Brāhmaṇe era sua boca, de ambos os seus braços foi feito o Rājanya.
Suas coxas tornaram-se o Vaiśya, de seus pés o Śūdra foi produzido." (Ṛg-Veda, X, xc)

Os Brāhmaṇes correspondem aos sacerdotes, a autoridade espiritual. Os Rājanyas, os Kṣatriyas, correspondem à autoridade temporal. Os Vaiśyas são os agricultores, os criadores de gado e os comerciantes. Em último lugar estão os Śūdras, compostos pelos artesãos, pelos trabalhadores comuns e pelos servos. É digno de nota que somente os membros das três primeiras varṇas são chamados dvija ("nascidos duas vezes"), os que passaram pela iniciação (saṃskāra) que os faculta o estudo dos Vedas.

Afirma o Bhagavad-Gītā (18,41), no próprio Mahābhārata, que "as atividades dos Brāhmaṇes, KṣatriyasVaiśyas e Śūdras são bem divididas com base em suas qualidades moldadas pela natureza das guṇas". As guṇas são as diferenciações qualitativas primárias de todos os entes, são as "cores" que constituem as suas naturezas intrínsecas (svabhāva). As guṇas podem ser entendidas em termos de atributos, propriedades e tendências.

Há três guṇas: sattwa, representada pela cor branca, é a bondade, a luz, o conhecimento, a tendência ascensional, o ser, a estabilidade, a realidade; raja, representada pelo vermelho, é a ação, a mudança, o poder, paixão, afirmação de si; tamas, cuja cor é o preto, é a ignorância, a escuridão, a inação, a inércia, a letargia, a tendência descensional. Os seres possuem as três guṇas em combinações e proporções variadas, e suas naturezas (svabhāva) são definidas pela predominância de uma guṇa com relação às outras.

No seu comentário ao trecho do Bhagavad-Gītā citado acima (18,41), o grande santo ortodoxo vedantino Ādi Śaṅkarācārya explica que a fonte da svabhāva dos Brāhmaṇes é sattwa, enquanto a dos Kṣatriyas é composta por rajas e sattwa***. As naturezas dos Vaiśyas e dos Śūdras têm suas fontes em raja e em tamas. Nos Vaiśyas, tamas é submetida à raja, e o inverso se dá nos Śūdras.

Os versos seguintes do Bhagavad-Gītā assinalam os deveres de cada varṇaBrāhmaṇes, tendo em vista a sua constituição gunática, têm como deveres a serenidade, o autocontrole, a austeridade, a pureza, a compaixão, a retidão, o conhecimento, a sabedoria e a fé nos ensinamentos das Escrituras Sagradas. Os Kṣatriyas devem possuir coragem, audácia, fortaleza, presteza, generosidade e senhorio. Aos Vaiśyas cabem o plantio, a criação de gado e o comércio. O serviço é o lote dos Śūdras.

A proeza, física e militar, é o apanágio dos Kṣatriyas. Na ética guerreira, os feitos dão azo à fama entre os pares, e servem de material aos epítetos ("domador dos inimigos", "perturbador dos homens", etc.) atribuídos aos heróis. A disciplina das artes marciais envolve a constrição e amoldamento dos movimentos espontâneos pela imposição de formas e rotinas fixas de exercícios com o objetivo de se adquirir um repertório corporal de técnicas que pode ser acionado automaticamente sem a lentidão característica da reflexão consciente. 

destreza com as armas é o resultado da aplicação da disciplina na matéria bruta do talento e da inclinação, os quais, de início, já se encontram no herói em níveis acima do potencial comum dos homens, o que manifesta a tendência aristocrática da natureza de produzir alguns poucos seres extraordinários. Eis a desigualdade ineliminável que solapa na raiz todas as tentativas político-sociais de nivelamento.   

Na disciplina de tipo marcial encontra-se a disposição espiritual de superação da dor e da limitação em prol de objetivos mais altos que o bem-estar corporal imediato. Algo que Ernst Jünger bem descrevera em seu ensaio sobre a dor:

"Na verdade, a disciplina não significa nada além disso, seja ela de tipo sacerdotal-ascético, voltada à abnegação, ou de tipo guerreiro-heróico, voltada ao endurecimento da pessoa como o aço. Em ambos os casos, trata-se de manter o controle total sobre a vida, para que a qualquer hora do dia ela possa servir a um chamado superior."

Não obstante, o horizonte do guerreiro é móvel, segue a alma na sua incessante antecipação do feito futuro. O memorável é o seu bem supremo. A mobilidade do Kṣatriya contrasta com a imobilidade do Brāhmaṇe ou do Yogi sentado em lótus. Notadamente, o herói, tanto no Mahābhārata quanto na Ilíada, chega ao campo de batalha trazido por um carroNa figura sacerdotal, a azáfama do mundo encontra cessação na imutabilidade do Absoluto, simbolizada pelos ritos (Ṛta, ordem), pelas Escrituras (Śruti), e, mais evidentemente, pela renúncia do sannyasin

O dever do Kṣatriya é manter e defender a ordem da manifestação (prādurbhāva). A guerra, ultima ratio regum, representa o aspecto móvel e impositivo dessa dupla função. O outro aspecto, mais fundamental e aparentado à imutabilidade sacerdotalé a administração da justiça, adaptação do Dharma universal ao âmbito do governo (artha). As duas faces estão bem representadas pelos dois primeiros filhos de Pāṇḍu, Yudhiṣṭhira, legítimo herdeiro do trono de Kuru e perito no Dharma, Bhīma, a força bruta hercúlea irresistível e imbatível.

René Guénon, na obra "Autorité Spirituelle et Pouvoir Temporel", esclarece:

"A função da qual se trata aqui é dupla, em certo sentido: administrativa e judiciária de um lado, militar de outro, pois ela deve assegurar a manutenção da ordem, a um só tempo, internamente, na qualidade de função reguladora e equilibradora, e externamente, na qualidade de função protetora da organização social. Esses dois elementos constitutivos do poder regal são simbolizados, em diversas tradições, respectivamente, pela balança e pela espada" (p. 28)

Retornando ao tema da proeza, é na ocasião do teste que se torna visível a ἀρετή (excelência, virtude) do heróiNo Mahābhārata, o cativante Arjuna, o terceiro filho de Pāṇḍu (o 3 simboliza equilíbrio e realização), exemplifica esse aspecto em alguns episódios modelares. Os pāṇḍavas, sob a tutela do mestre Droṇā, destacam-se dos demais, os kauravas, em todas as formas de combate. Mas, em particular, "Arjuna tornou-se um guerreiro excelente, o favorito de Droṇācārya".

Droṇā posta um pássaro de madeira no topo de uma árvore e ordena aos seus pupilos que mirem as flechas de seus arcos naquele alvo. O mestre pergunta três vezes a Yudhiṣṭhira, "o que vês?". Yudhiṣṭhira responde seguidamente: "O senhor, meus irmãos, a árvore e o pássaro". Decepcionado, Droṇā repete a pergunta aos outros, e recebe idêntica resposta todas as vezes.  

Chegada a vez do dileto Arjuna, arco tensionado e atenção fixa, Droṇā pergunta "O que vês?". O jovem responde: "Vejo somente o pássaro, nem o senhor, nem meus irmãos e nem a árvore". O mestre pede que ele descreva o pássaro, ao que Arjuna responde: "Nada vejo senão a cabeça do pássaro". Entusiasmado, o preceptor ordena: "Então, dispara!". Ato contínuo, Arjuna dispara a sua flecha e decapita o falso animal.

O episódio simboliza a mente imperturbável, fixada naquilo que é essencial, tal qual um meditador que incessantemente traz de volta os pensamentos cambiantes ao centro de sua respiração até atingir a serena imutabilidade da consciência pura. Sob a perspectiva Kṣatriya, obviamente, trata-se da primeira exibição da perícia no manejo da arma que se tornará a razão de um de seus epítetos: arqueiro imbatível.

Encarado sob um ângulo diferente, Arjuna é o destruidor do falso. A flecha, como a espada e a lança, são símbolos de penetração espiritual. A perfuração se dá pela divisão que a lâmina realiza no alvo. O corte faz a discriminação (viveka), o discernimento que separa o essencial do acidental, o cambiante do estável, o temporal do eterno, o Ser do Não-Ser, o Absoluto do relativo. A flecha de Arjuna ignora todas as distrações da autoridade (Droṇā), da varṇa (irmãos e primos) na direção do prêmio postado no topo da árvore, o Axis Mundi. 

O pássaro simboliza em muitas tradições os estados sutis, supramundanos e espirituais. Arjuna só enxerga a cabeça do pássaro, e, acertando-o, destrói o artifício, o falso, aquilo que ainda se apresenta sob alguma condição, a aparência que simultaneamente revela e esconde o invisível. O Princípio "aparece" na desaparição de todos os entes. A flecha ascende até o caput, a cabeça, o cume da realidade, e desfaz os últimos liames que prendem o homem ao condicionado.

Arjuna é filho de Indra, o "deus combatente, portador do raio, herói de inumeráveis duelos, de riscos enfrentados e vitórias disputadas", como o define Mircea Eliade em "Images et Symboles". A caracterização segue de perto a estrutura mítica fundamental acerca do mundo e da sociedade que Georges Dumézil atribuía aos indo-europeus. Nela, haveria sempre a cooperação harmoniosa de três funções superpostas de soberania, de força e de fecundidade.

Na teologia védica, de acordo com a interpretação de Dumézil em "Heur et Malheur du Guerrier", Váruṇa e Mitra, representam o poder soberano-mágico que cria tudo e liga todas as coisas, Indra é o deus forte, guerreiro, envolvido em duelos, conquistas e vitórias, e os irmãos gêmeos Aśvin são os doadores de saúde, riqueza, juventude e felicidade. O modelo se repete nos pāṇḍavas, com Pāṇḍu e Yudhiṣṭhira correspondendo ao poder soberano-mágico de VáruṇaMitraBhīma e Arjuna representando o poder guerreiro de Indra, e os irmãos Sahadeva e Nakula no lugar dos Aśvin.

Robert Charles Zaehner, sucessor de Sarvepalli Radhakrishnan em Oxford, na obra "Hinduism", descreve Indra como o deus da tempestade, o deus-guerreiro dos Aryas, recriador da ordem, sempre em batalhas, e o matador de Vṛtrá, o demônio da seca, cujo nome significa "obstrução". Indra destrói os obstáculos, liberta as águas da obstrução malévola de Vṛtrá. Em contraste com Váruṇa, o deus sacerdotal, BrāhmaṇeIndra é o deus guerreiro, o vira (herói) dos Kṣatriyas. 

A soberania de Indra é semelhante à de Zeus, o primus inter pares dos Olímpicos, enquanto a soberania de Váruṇa se assemelha à de Ouranos (ou Kronos). Simbolicamente, Váruṇa pode ser entendido como o poder imutável do divino, eterno, incondicionado e transcendente, e Indra seria seu poder criador, emanador, restaurador, agente, imanente. A libertação das águas aprisionadas por Vṛtrá simboliza o fluxo incessante das possibilidades que residem no Princípio, e que se realizam criando e renovando o mundo. 

Indra é rei dos deuses e dos homens por direito de conquista, autocrata (svarāja), belicoso, forte, sempre escoltado pelos Maruts, deuses turbulentos que atravessam os céus em carros de ouro, armados de raios e de relâmpagos. Em suma, Indra é o deus das proezas e dos feitos. Não à toa, Arjuna repete esses aspectos em outros episódios de conquista e de proeza no Mahābhārata, entre os quais está o svayaṃvara de Draupadī.

Os pāṇḍavas logram escapar da tentativa de assassinato planejada pelo ardiloso Duryodhana no incêndio do palácio de laca em Varanavata, e, considerados pelo tio como mortos, escondem-se de todos fingindo serem Brāhmaṇes. Quando é anunciado o svayaṃvara (desafio dirigido aos pretendentes) da princesa Draupadī, Arjuna, trajado como Brāhmaṇe, se apresenta como candidato. O desafio consistia em dobrar um arco e acertar com uma flecha o olho de um peixe dourado postado no alto de um pilar mirando-o somente por seu reflexo em uma bacia d'água. 

O tema simbólico do rei oculto que se revela por um desafio é bem conhecido na Odisséia. O rei de Ítaca retorna à sua ilha disfarçado de mendigo, e, com outros pretendentes, participa do desafio proposto por Penélope para a escolha do novo esposo: dobrar o arco e lançar uma flecha pelos orifícios dos doze machados fincados um atrás do outro. Somente Odisseus (Ulisses) é capaz de realizar essa proeza.

A viagem marítima de retorno à terra natal, repleta de desafios e de sofrimentos, simboliza a peregrinação humana no mundo. Ítaca é uma ilha, terra cercada de mar, realidade em meio às possibilidades representadas pelas águas, é a pátria bem-aventurada, como a mítica Thule. O desafio da flecha é o último teste, serve para revelar aos olhos de todos a verdadeira natureza (svabhāva) de Odisseus. O arco é dobrado, a flecha atravessa os doze machados, símbolo ascensional do zodíaco. O machado representa tradicionalmente o Axis Mundi, com  suas duas lâminas opostas como polaridades unidas por um eixo vertical.

O agôn (ἀγών, "disputa", "contenda") confirma a legitimidade monárquico-guerreira. Odisseus pode finalmente revelar sua identidade, eliminar os outros pretendentes e tomar posse do que é seu por direito de conquista. Arjuna, Kṣatriya oculto, dobra o arco, lança cinco flechas que acertam o peixe mirado pelo reflexo na água, vence os outros pretendentes, e ganha o direito de desposar Draupadī, que havia sido destinada a ele antes dos eventos em Varanavata.

Novamente, a flecha é símbolo da penetração espiritual, Arjuna é o destruidor da ilusão. Os olhos do príncipe não se deixam enganar pelo reflexo do peixe, isto é, ultrapassam a imagem, a aparência, o mundo fenomênico, na direção da realidade última. Sua flecha sobe, atravessa simbolicamente os estados da manifestação cósmica, atinge o olho, o "centro do centro", o desfrutador das experiências, e destrói a ilusão, revelando assim o Incondicionado.

A flecha de Arjuna e Vajra (raio) de Indra removem os obstáculos que se interpõem entre o homem e o Absoluto. Vṛtrá, o inimigo arquetípico de Indra, é por vezes assimilado à serpente, o que liga o seu mito ao complexo simbólico dos deuses/heróis (Marduk, Zeus, Thor, Suzanoo-no-Mikoto, Rá, Apolo) que matam o monstro-serpente das águas (Tiamat, Typhoeus, Orochi, Apophis, Python), impondo a ordem e a forma ao caos informe primordial, e/ou combatendo as forças dissolventes que ameaçam o mundo.

Será esse o papel que Arjuna desempenhará na batalha de Kurukshetra. Seu Dharma é a ação de defesa e de restauração da ordem ameaçada pela cobiça do usurpador Duryodhana. O legítimo herdeiro do trono de Kuru é Yudhiṣṭhira, o perito no Dharma. Contudo, para que a Lei cósmica seja restaurada e mantida, é necessária a ação de Arjuna. Mas como agir neste mundo, cumprir o dever de Kṣatriya, matar sua parentela, e não se enredar completamente no emaranhado dos laços da ilusão?

Mais à frente, no Mahābhārata, especificamente no Bhagavad-Gītā, o Absoluto se revela a Arjuna no momento de sua maior crise em seu fiel auriga Kṛṣṇa, na forma magnificente do "Supremo Senhor", Bhagavān. A rendição dos frutos da ação ao Senhor, karma-yoga, é o caminho para o Kṣatriya cumprir a sua função dhármica sem a mistura dos desejos e das ambições mundanas. A devoção ao Senhor, a bhakti-yoga, é a via espiritual adequada à alma que adora o Incondicionado sob as vestes do amor à pessoalidade divina.

Outros aspectos de Arjuna serão tema de postagens futuras.
...

* Os Aśvin possuem similaridades simbólicas com duplas de irmãos divinos de outras tradições. Os exemplos mais evidentes são Castor e Pollux (ou Pollideuces), chamados Dioskouroi entre os gregos e Gemini ou Castores entre os romanos. Em algumas representações, os Aśvin são dois jovens montados em cavalos ou são deuses com cabeças de equinos. Os Dioskouroi são exímios cavaleiros.

**As varṇas, usualmente traduzidas como "castas", são divisões hierárquicas que correspondem a determinadas funções tradicionais dentro da sociedade. Cada varṇa possui seus privilégios, direitos e deveres intrínsecos, definidos extensamente em obras como o Dharmaśāstra.

*** Note-se que o termo sânscrito que designa "rei" ou "governante" é rājan, de onde vem o famoso epíteto Maharajah (marajá), o "grande rei".

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo VI)

 

"Nos quanta, a unidade é a continuidade da quantidade, como indivisa. A unidade transcendental inclui a unidade quantitativa, que está a ela subordinada. A unidade quantitativa implica, necessariamente, a unidade transcendental, e não o inverso: a unidade transcendental não implica, necessariamente, a unidade quantitativa. A unidade transcendental pode haver sem aquela, e ela há, realmente, sem aquela."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, cap. VI, p. 33

No capítulo VI, Mário Ferreira estuda o tema dos entes que possuem quantidade ou quantum (quanta, no plural), e distingue que, nesses seres, a sua unidade transcendental de sua unidade quantitativa. Embora a unidade quantitativa implique sempre a unidade transcendental, não é verdade necessária que a unidade transcendental implique sempre a unidade quantitativa. A explicação para isso é simples: a coisa possui quantidade se a sua natureza comporta essencialmente aspectos quantitativos.

Um pedaço de ferro, pelo fato de ser ferro, necessariamente terá alguma quantidade. A própria unidade transcendental ferro não é ela mesma uma quantidade, pois corresponde à essência, à qualidade, desse metal. Contudo, essa unidade transcendental, para se realizar nas coisas concretas, implica necessariamente que haja quantidade. 

Nas magnitudes, que numeramos por meio dos sentidos, essa unidade quantitativa é uma unidade numérica. O ente é uno (em sua essência) e numericamente um, ou seja, é singular. Este pedaço de ferro é diferente daquele outro pedaço de ferro (não importando as suas respectivas dimensões), apesar de ambos serem igualmente ferro. Cada um deles é uma unidade numérica por ser indiviso quantitativamente.

Platão é numericamente distinto de Sócrates. Ambos são singulares e indivisos. As suas individualidades numéricas não negam a comunhão essencial de Platão e Sócrates no nível fundamental da humanidade ou essência humana. Ao contrário, faz parte da natureza da humanidade que os seres humanos se apresentem na realidade concreta dotados de corpo, o qual, por sua essência, implica quantidade extensiva (comprimento, largura, altura, profundidade).

"Só uma coisa individual é apta a existir, o ente real é um ente que é numericamente um, ou singular", afirma Mário Ferreira. O modo de existência próprio das coisas deste mundo exige a individuação. Tudo o que existe, é um ente. O fato de ser algo indiviso implica necessariamente a ausência da divisão em seu seio. Recorde-se, contudo, que a unidade não nega todo e qualquer tipo de multiplicidade. A multidão que é negada pela unidade é aquela que implica uma divisão dentro do ente que é uno

A unidade numérica tem que ser indivisa para que a junção de unidades possa gerar a multiplicidade. Platão e Sócrates têm que ser indivisos e independentes um do outro para que se possa falar de dois homens ou de uma dupla. Os hoplitas de Esparta têm de ser indivíduos independentes uns dos outros para que haja 300 deles na batalha das Termópilas. As coisas são múltiplas por causa da unidade, que é logicamente anterior ao número formado.

A tropa de soldados é um Todo (ou unidade) acidental, formado pela junção de múltiplas unidades reais e independentes entre si. O Todo (ou unidade) per se, aquilo que é essencialmente uno, não comporta internamente partes que sejam independentes umas das outras. Uma substância natural, no sentido filosófico do termo, é una, ainda que tenha sido gerada a partir de outros entes individuais e independentes.

Por exemplo, se tomamos a fórmula da água, H2O, vemos que as duas moléculas de hidrogênio e a molécula de oxigênio são entes individuais que possuem certas características próprias antes de sua união. Quando unidas, as moléculas transformam-se na substância que denominamos água. Esta possui características muito diferentes daquelas que as moléculas possuíam separadamente. O que aconteceu? No Todo substancial que é a água, as moléculas estão virtualizadas com relação ao que eram, mas estão atualizadas na forma do Todo.

As moléculas não desaparecem por completo, dado que podem ser trazidas de volta às suas existências individuais pela análise química. Uma vez reatualizadas, as suas propriedades retornam tais como eram anteriormente à transformação. A água, entretanto, não poderia existir como uma substância se as duas moléculas de hidrogênio e a molécula de oxigênio, quando unidas, permanecessem exatamente como cada uma é separadamente. Se fosse esse o caso, teríamos tão somente uma junção, um agregado de entes independentes, e não um Todo verdadeiro. 

A virtualização das moléculas torna possível a geração de uma nova substância com propriedades diferentes daquelas que apresentavam as suas componentes. As moléculas não são nem destruídas no Todo, nem permanecem as mesmas que eram individualmente. Portanto, algo delas contribui efetivamente para a formação da homogeneidade substancial da água, enquanto outras de suas propriedades, por assim dizer, retraem-se, e só reaparecem se e quando as moléculas forem reatualizadas pela análise.

A unidade funda a multiplicidade, e não há múltiplo sem diferença. Ser algo implica necessariamente não ser qualquer outra das possíveis formas de ser. O gato, por ser gato, não pode ser cavalo, pedra, samambaia, etc. E este gato, enquanto indivíduo, não pode ser aquele gato. Então, para todo ente, ser algo significa afirmar ao mesmo tempo a sua identidade (o que ele é), e, consequentemente, a sua diferença com relação a todas as outras possibilidades que ele não é. 

A diferença é uma realidade inegável. Mário Ferreira prova a validade apodítica dessa tese mostrando que mesmo a negação mais extrema da diferença não consegue eliminar a sua realidade. Imagine-se que todas as coisas que experimentamos no mundo sejam ilusões, isto é, imagens criadas por nossa mente ou pela mente de um outro ser na qual somos nós mesmos somente mais algumas das imagens que ela cria. Ainda que todas as coisas fossem ilusórias, haveria diferenças entre as ilusões que a nossa mente (ou a de um outro ser) estaria criando.

Pode ser que a experiência visual que tenho do cavalo saindo do estábulo na minha fazenda seja puramente ilusória. Não existem realmente nem o cavalo, nem o estábulo e nem a minha fazenda. Tudo isso foi construído pela minha mente, são meras imagens que não se referem a nada que exista extra mentis. Digamos que o mesmo seja verdade para todas as minhas experiências passadas, atuais e futuras. Pior, suponhamos que nós somos meros pensamentos ou imagens na mente de um outro ser qualquer. 

O próprio fato de serem ilusões (no plural) indica que há diferenças entre elas. Certo, não seriam diferenças entre coisas, ao menos no sentido de seres externos à consciência e independentes uns dos outros. Seriam imagens diferentes na minha mente ou na mente de outro ser. Ao contrário de negar a diferença, as próprias ilusões exigem necessariamente a diferença para serem o que são. 

A negação hiperbólica da existência das coisas, a sua redução à condição de imagens mentais sem nenhum referente externo, não é capaz de refutar a tese da existência da diferença. Portanto, a validade apodítica da tese está demonstrada.* O fundamento da diferença tem de ser real, do contrário ela não seria nada. Se percebemos diferenças, e isso é inegável, então há diferenças na ordem do Ser, dado que o homem é real e pertence à ordem do Ser.

A diferença, seja ela percebida ou representada na mente, é uma relação, e, por conseguinte, exige dois termos, quaisquer que eles sejam, implicando um ao outro, unum ad aliud. Um termo faz referência, alusão, menção, a outro. É uma ferencia re, que "retorna", "traz de volta", "conduz de volta" àquilo que dis ferre, ao que difere. Ferre, em Latim, significa "trazer", "suportar", "sustentar", "sofrer", "carregar", e differre é "separar", tendo "dis", prefixo que indica "falta", "oposição".

logos da diferença é relacional. Algo que é diferente de outro em algum aspecto possui alguma propriedade da qual o outro está privado ou está privado de uma propriedade que o outro possui. Aquilo que faz a diferença deve ser, então, algo real no sentido de que, ainda que se trate de uma ausência, o que está ausente deve ser uma propriedade real encontrada em outro que a possui. Duas bolas de ferro, de tamanho e de peso iguais, diferenciam-se pelas porções de ferro com as quais cada uma foi feita. Este pedaço, nesta bola, idêntico que seja quanto ao metal ferro, não é idêntico àquele pedaço, naquela bola. O pedaço que está presente em uma não está presente na outra, e vice-versa.

Em seguida, Mário Ferreira antecipa algumas observações sobre as estruturas eidética e hilética que serão melhor trabalhadas no capítulo VII, e que será o próximo objeto de estudo nesta série postagens de apresentação e comentário, capítulo a capítulo, das teses contidas na obra "A sabedoria da Unidade".

...

*Poderíamos adicionar outras demonstrações. Se alguém nega a diferença, só pode fazê-lo usando uma frase adequada para expressar essa ideia. Ora, uma frase adequada é diferente de uma frase inadequada. Ou ainda, as palavras usadas para expressar essa ideia (ou para pensá-la) tem significados diferentes. Ademais, a própria negação da diferença (verbalizada ou pensada) é diferente da afirmação da diferença. Se não houvesse diferença, não seria possível sequer pensar possibilidades, menos ainda pensar efetivamente algo diferente daquilo que se está pensando. Qualquer medição, gradação, cálculo e raciocínio exigem o reconhecimento da diferença. E assim por diante.

...

sábado, 15 de junho de 2024

Jakob Wassermann e o simbolismo de "O Ouro de Cajamalca"

"Compreendi que nenhum sonho até então, por mais aterrorizante que fosse, havia despertado em Atahualpa o pressentimento de que existiria sobre a terra seres como nós."

JAKOB WASSERMANN, "O Ouro de Cajamalca"

A novela "O Ouro de Cajamalca" (Das Gold von Caxamalca), publicada em 1923 pelo escritor alemão Jakob Wassermann (1873-1934)*, aparenta ser, à primeira vista, uma reflexão literária sobre os conflitos éticos e epistemológicos que se seguem ao encontro de duas culturas cujos valores são mutuamente incompreensíveis. De um lado, os peruanos, centrados na figura hierática do Inca, Atahualpa, de quem emanava toda a organização social, religiosa e política de seu povo. Do outro, os conquistadores espanhóis, liderados por Francisco Pizarro, cujos sentimentos confusos tentavam conciliar a sua fé cristã com a baixeza da obsessão pelo ouro.

O livro de Wassermann narra um episódio trágico acontecido durante a campanha militar do general Pizarro sob a forma do relato em primeira pessoa redigido pelo cavaleiro espanhol Domingo de Soria Luce quando este já havia se retirado do mundo e vivia como monge na cidade de Lima, treze anos após a conquista do Peru. Em novembro de 1532, trezentos soldados espanhóis, entre cavaleiros e infantes, após atravessarem com muitas dificuldades a Cordilheira dos Andes, alcançam Cajamalca, a "cidade gelada".

Cajamalca se encontrava vazia, aparentemente abandonada por seus habitantes pouco antes que os conquistadores ali chegassem. Nas encostas das montanhas à frente da cidade, contudo, estavam espalhadas as milhares de tendas brancas do exército do Inca, o imperador Atahualpa, acampado à espera dos invasores europeus. Dominado pela cobiça tanto quanto seus companheiros, Domingo não esconde que a busca da riqueza foi sua principal motivação para tomar parte naquela empreitada repleta de vicissitudes, perigos, privações e dissabores.

O ouro! Ah, o ouro! O metal nobre que corria na forma de rios, que cobria mesmo os tetos das habitações, dos palácios e dos templos! Entre aquela horda de almas sedentas vindas do outro lado do oceano e a cornucópia de dons infinitos estava Atahualpa, tal como a serpente que nunca dorme entre Jasão e a árvore do velocino de ouro. Qual feitiço adormeceria essa serpente? Quem seria a Medéia que conjuraria as forças da deusa do Hades a fim de franquear aos espanhóis o caminho do tesouro?

Pizarro decide atrair Atahualpa para uma emboscada. O general envia uma embaixada, e convence o imperador a visitá-lo em Cajamalca no dia seguinte. Seu plano é sequestrá-lo, e assim derrotar o monstro sem nenhuma luta. A nobreza do imperador o impede de vislumbrar o ardil. Ele desce da montanha, desarmado, sentado sobre um trono de ouro puro, carregado por um séquito de nobres. Incrédulo, porém resignado, Atahualpa vê seus súditos serem massacrados, e ele mesmo capturado pela súcia de seres incompreensíveis. Que tipo de entidades eram aquelas capazes de atos flagrantemente ardilosos e traiçoeiros? 

Atahualpa descendia do Sol que, em benefício dos homens, enviou-lhes no início dos tempos o casal primordial, irmão e irmã, esposo e esposa, que lhes ensinaram os princípios da civilização. O Inca, é a presença concreta no mundo da ordem solar que se manifesta por meio da dualidade primária, o hieros gamos, da qual todas as coisas nascem. Sob sua influência, os peruanos viviam sem miséria e sem riqueza, trabalhavam nas suas terras, nas terras comunitárias e nas terras do Sol, o Pai de todos. Não havia mendicância, cupidez, insatisfação ou egoísmo.

Atahualpa vem da montanha como uma emanação do Axis Mundi para atender o chamado daquelas estranhas criaturas. Não pode compreender os motivos dos desarrazoados que o traíram e o aprisionaram. Encerrado por Pizarro em uma casa e vigiado por soldados, permanece mudo e pensativo. Um grupo de súditos e de algumas de suas esposas, obtém a permissão de acompanhar seu soberano em sua desdita. Espantado e horrorizado, aos poucos Atahualpa compreende que aqueles seres que o mantém cativo trocariam tudo, inclusive a honra e a vida, pelo ouro, o metal abundante e sem valor que decora as cidades peruanas.

Eles almejam a transmutação, mas do ouro só conhecem o seu significado material. Presos e afundados na azáfama deste mundo, o que demandariam ao Princípio senão o que pertence ao aspecto bruto da realidade? Não é espantoso que a comunicação dos conquistadores com o Inca se dê por meio de um intérprete peruano, Felipillo, que nutre ódio infindo por seu povo e por Atahualpa. Figura do caído, Felipillo é aquele que esteve um dia sob a influência do Princípio, e que agora, descido ao nível dos adoradores do metal, recorda o suficiente do idioma sagrado, mas o utiliza somente para formular os desejos mais baixos de seus novos mestres.

O intérprete explica a Atahualpa que sua liberdade poderia ser garantida se prometesse ouro aos espanhóis.  Ele o faz, promete preencher aquela casa com tanto ouro quanto queiram seus captores. Os súditos do Inca trazem, dia após dia, mais e mais objetos feitos do metal ambicionado que se acumulam até alcançar a marca traçada por Pizarro no acordo. Ídolos, máscaras, pratos, braceletes, vasos, e até uma fonte esculpida, tudo foi derretido para ser transformado em barras a serem distribuídas aos membros da alcateia. 

As formas se perdem, "retornam à matéria primeira", segundo a apta expressão de Domingo, o narrador. Tudo é reduzido ao indeterminado comum numa operação alquímica cujo resultado é a transmutação do ouro em vil metal. Por trás de cada barra se escondem fantasmagoricamente as inúmeras possibilidades de realização dos desejos baixos concebidos nos corações daqueles homens, símbolos das forças dissolventes que corrompem e por fim destroem a ordem.

Felipillo secretamente envenena a mente do general acusando Atahualpa de estar conspirando com seus súditos contra os conquistadores. Mesmo sem acreditar no pérfido intérprete, Pizarro enxerga a oportunidade de se ver livre de suas promessas. Um tribunal é rapidamente constituído, e, ouvidas as testemunhas, Felipillo incluso, o veredito inevitável não se deixa tardar: Atahualpa é condenado a ser queimado vivo em uma fogueira. 

Alguns não concordam e protestam. Domingo, fraco, incapaz até mesmo de encontrar as palavras para expressar sua discordância e sua reticência, emudece, não aprova e nem protesta. Morno, igual aos que serão vomitados da boca do Senhor. Atahualpa apela a Pizarro, pede clemência, questiona a razão do general ser tão indigno e traiçoeiro com quem o recebeu com cordialidade e amizade em suas terras. Nenhuma das palavras aladas demove o comandante de seu intento funesto.

O Inca aceita seu destino, e solicita ser morto ao amanhecer, diante do Sol, seu pai. Ordena a seus súditos que tragam a ele seus ancestrais para uma última ceia. Nesse ínterim, Atahualpa pede a Domingo que escreva uma palavra em sua unha para que os soldados leiam e a sussurrem em seu ouvido a fim de confirmar ao Inca a arte da escrita que os espanhóis dominam. Domingo escreve a palavra "cruz". 

Pizarro, contudo, não sabe ler e nem escrever. O simbolismo não poderia ser mais claro. O general não entende a mensagem de Domingo, fosse ela consciente ou não. Atahualpa percebe a inadvertida humilhação a que submeteu o seu captor, e tenta saná-la com suavidade e mansidão. Chama Pizarro de "deus entre seus homens", e, após a inflamada resposta do comandante contra o paganismo peruano e defesa da verdade da fé cristã, segue-se um amargo debate teológico em que o Inca questiona como seria possível a ele crer no deus de misericórdia e de amor que permite que seus fiéis assassinem inocentes.

À noite, um evento insólito, que marca indelevelmente o espírito de Domingo, acontece na casa onde Atahualpa é mantido prisioneiro. Em torno do Inca, sentado no centro, são postados por seus súditos vinte e quatro assentos de ouro, doze à sua esquerda e doze à sua direita. Atônitos, os espanhóis veem chegar doze múmias masculinas e doze femininas carregadas solenemente em tronos de ouro carregados por nobres peruanos ricamente trajados. Elas são respeitosamente postadas nos lugares em torno de Atahualpa.

São os veneráveis ancestrais do Inca que vieram tomar parte da cerimônia sagrada na qual o soberano se despede desse mundo. Sobre a mesa central, um imenso Sol de ouro foi depositado. À direita de Atahualpa estavam seus ancestrais masculinos, enquanto à esquerda postavam-se suas ancestrais. Doze representações simbólicas do casal original de irmãos, esposo e esposa, saídos diretamente da unidade omniabarcante do Sol em benefício dos homens. 

Impassível e pleno de dignidade, de harmonia e de beleza, Atahualpa, em pé, era o Sol encarnado desse cosmos formado por seus ancestrais. Ele dirige a palavra aos seus captores e lhes pergunta como era viver nas trevas, sem a luz do Sol. Os espanhóis, indignados, respondem que possuem a verdadeira fé, e que não estão privados da luz. Mas, se é o mesmo Sol que os ilumina em suas terras, por qual razão eles movem-lhe guerra?

Atahualpa insiste que aqueles homens não podem acreditar nos valores que professam ao mesmo tempo em que não respeitam as leis, os lugares e os objetos sagrados, e creem-se no direito de tomar à força o que desejam sem recuar diante de nada. Ninguém que entende o que é o hagnos pode compurscar o temenos. O Inca assevera que, depois de muita meditação, conseguiu identificar o que tornava os seus captores tão fortes: o ouro.

É o ouro, e nada mais, que os motiva, que os enche de coragem para tudo contaminar e de tudo se apropriar sem peias. O metal é o seu Deus e o seu redentor, não o Cristo. Ao adquirir o ouro, contaminam e transmutam a própria alma. Aquele que o possui considera-se rico, posto que não conhece outro Sol. Seres de trevas, dignos de pena.

Nesse momento, os guardas e o resto da soldadesca, enfeitiçados pela luz dourada que refulgia dos tronos, das jóias, das vestimentas e dos acessórios dos ancestrais diante dos quais Atahualpa respeitosamente se inclinava, abandonaram suas posições, e avançaram a fim de tomar algo desse tesouro. Olhos vidrados, possuídos pela avidez, brigavam entre si pelo último butim. Atahualpa, serenamente, com um sorriso no rosto, parte para o seu holocausto, à luz dos primeiros raios do Sol.

O Inca provara seu ponto. À frente do Sol encarnado, rodeado por seus veneráveis ancestrais, em uma cerimônia sagrada, aqueles homens não viram nada além do mundo material imediato e dos desejos terrestres transubstanciados no ouro. A figura terrestre de Atahualpa é o corpo translúcido que deixa ver sem barreiras o Princípio. Na sua identificação com o Sol, ele é semelhante ao Cristo que é verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus.

"Quem me vê a mim vê o Pai; e como dizes tu: Mostra-nos o Pai?" (Jo 14,9). Nisso se resume a natureza do símbolo. Quem vê o Cristo, vê o Pai, pois o homem terreno Jesus de Nazaré não tem nele nada que obstaculize a visão do Princípio, pois este se manifesta plenamente naquele. Não há razão para que os discípulos peçam ao Cristo que ele mostre o Pai. Somente a visão apegada às coisas é incapaz de enxergar a luz do Princípio que flui sem obstáculos através daquela pessoa terrena.

O símbolo só pode comunicar o seu significado quando ele é vazio, quando a coisa que simboliza desaparece para dar lugar ao simbolizado. Todas as coisas podem ser símbolo porque todas as coisas são ontofania e teofania. Essa é uma lei ontológica. O Princípio só aparece no desaparecimento das coisas. Não a desaparição física, mas o esvaziamento no qual os entes não se impõem mais a nós enquanto entes cuja opacidade impede que se enxergue que não é esta coisa que é importante, e sim aquilo a que ela remete fundamentalmente.

O fundamento só é discernido quando o que ele fundamenta é abstraído, esquecido, ultrapassado. O ouro em si mesmo nada tem de mal. O que os espanhóis veem, no entanto, é só o metal opaco que tem o poder convencional de adquirir miríades de bens e objetos igualmente opacos. Atahualpa, numa última tentativa de fazê-los vislumbrar a transcendência, oficia um rito sagrado, assume a figura tradicional do rei-sacerdote, aquele que possui as duas chaves de Janus, o poder temporal e o poder espiritual.

À última ceia segue-se o juízo, confirma-se a indignidade daqueles homens cegos pela cupidez. Assediado por essas forças dissolventes, a Ordem, o Princípio, caminha na direção do holocausto. Sob o olhar do Sol, Atahualpa queima, dissolve seu corpo e, com ele, retira-se do mundo, pelo poder simbólico de purificação do fogo, uma das múltiplas possibilidades de manifestação da Realidade. 

Domingo, o narrador, cansado de tanta morte e destruição, meditando amargamente sobre "a natureza humana e suas possibilidades inexploradas", abandona a vida mundana, e recolhe-se à contemplação monacal. Ali ele deseja a existência de uma estrela que irradiasse uma luz mais nobre que a do Sol sob o qual se deu o percurso de sua vida, e que parecia haver sido abandonado por Deus.

...

* Jakob Wassermann é mais conhecido por sua trilogia "O Processo Maurizius", "Etzel Andergast" e "A terceira existência de Joseph Kerkhoven". A novela "O Ouro de Cajamalca" foi saudada por Thomas Mann como a mais bela narrativa em língua alemã do século XX. Escritor prolífico, seus livros foram queimados em praça pública pelo regime nacional-socialista alemão.

...

Leia também:

Νεκρομαντεῖον: literatura (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: simbolismo (oleniski.blogspot.com)

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Aristóteles, Física e a natureza do infinito

"O infinito, portanto, não existe de nenhuma outra forma a não ser potencialmente e por redução. (...) O infinito revela-se como o contrário do que é afirmado usualmente sobre a sua natureza. Não é infinito aquilo que não tem nada fora dele, mas aquilo que sempre tem algo fora dele."

ARISTÓTELES, Física, Livro III, 206b [15] (tradução minha)

Sendo fato que a ciência física lida com magnitudes, movimento e tempo, é necessário que seja discutida a possibilidade de haver ou não o infinito (ἄπειρον, ilimitado, indefinido, sem bordas*) e qual a sua natureza, afirma Aristóteles no Livro III da Física. Os pensadores antigos que se dedicaram aos temas físicos acharam por bem estudar o infinito, e alguns, como Platão, os Pitagóricos, Anaxágoras, Anaximandro e Demócrito, chegaram a postular a sua existência entre os princípios das coisas.  

Não é à toa que o infinito seja considerado um princípio, uma vez que tudo o que há é uma fonte ou deriva de uma fonte. O infinito necessariamente é uma fonte, pois como poderia ser derivado de alguma outra coisa aquilo que não possui limite? Além disso, se fosse destrutível ou criado seria limitado por aquilo que o sucede ou por aquilo que o antecede. Desta feita, não pode ser acompanhado (portanto, limitado) por nada, sendo a fonte de tudo. Imortal e imperecível, dizia Anaximandro.

A afirmação da existência do infinito vem de cinco considerações: 1) a natureza do tempo. A cada instante qualquer, é possível pensar num instante anterior e num instante posterior, o que parece não ter início ou fim determinados;  2) a divisão das magnitudes, as quais podem ser continuamente divididas ad infinitum sem serem jamais esgotadas; 3) o vir a ser e o deixar de ser das coisas exige algum substrato que não se extinga, de onde as coisas vêm e para onde retornam; 4) tudo o que é limitado é limitado por algo que o ultrapassa, e assim sucessivamente sem que nenhum fim seja alcançado; e, principalmente, 5) o número, as magnitudes matemáticas e o que está para além do céu apresentam a mesma dificuldade, a saber, que o pensamento jamais os ultrapassa (não os esgota ou neles encontra limites).

A questão do infinito é reconhecidamente difícil, e, do ponto de vista físico, o problema específico a ser resolvido é saber se há ou não alguma magnitude sensível que seja infinita. Aristóteles restringe a discussão ao mundo sensível, e distingue os sentidos de infinito: aquilo que não pode ser percorrido porque não é da natureza das coisas que podem ser percorridas, aquilo que admite ser percorrido, mas cujo percurso não tem fim, aquilo que dificilmente admite ser percorrido, aquilo que admite ser percorrido, mas que efetivamente não é atravessado ou alcança um fim.

Aristóteles pensa que o infinito não pode ser uma coisa ela mesma infinita e separável dos objetos sensíveis. Se não for uma magnitude (que pode ser medida) ou um agregado (cujos elementos podem ser contados), então o infinito será indivisível. Uma magnitude sensível sempre pode ser dividida, mentalmente ou realmente. O infinito, entretanto, se não é uma magnitude, não pode ser dividido sequer em pensamento. Tomado desse modo, o infinito será indivisível tanto quanto a voz é invisível (um elemento que não lhe pertence substancialmente), o que difere das teses daqueles que defendem a sua existência e do modo como Aristóteles o investiga (enquanto aquilo que não pode ser atravessado).

O infinito é indivisível porque qualquer divisão implicaria haver dois ou mais infinitos, o que é absurdo. Mas a indivisibilidade não pode ser verdade daquilo que é totalmente acabado e completo (nada lhe faltando). A discussão envolve outras dificuldades e questões envolvendo a possível infinitude dos objetos matemáticos e das coisas que são inteligíveis, portanto inextensas. A investigação da Física, contudo, tem como objeto tão somente os objetos sensíveis, e, limitada a esse âmbito, a pergunta que deve e pode ser feita é se há ou não entre eles algum corpo que seja infinito em aumento.

Deve-se compreender que Aristóteles fala na qualidade de físico, e que essa posição epistemológica limita necessariamente a sua discussão ao campo dos entes sensíveis. A suposta infinitude dos números ou a infinitude metafísica não estão dentro do escopo da ciência física. A única modalidade de infinitude que pode ser contemplada nesse contexto é aquela que estaria presente nos corpos físicos. De cara, o caráter sensível desses entes parece excluir o infinito, uma vez que não parece haver nada que caia sob nossos sentidos que não possua algum tipo de limites.

Aristóteles argumenta dialeticamente (ou seja, a partir do que é comumente aceito) que o corpo não pode ser infinito, dado que, por definição, trata-se daquilo que é "limitado por uma superfície". Seria contraditório afirmar que algo que é definido justamente por uma limitação seja idêntico àquilo que é ilimitado. Nem o número, quando abstraído das coisas, pode ser infinito. O que caracteriza o número é ser numerável, e se o infinito fosse numerável, seria possível contar todos os seus elementos. Somente é contável até o fim aquilo que é limitado, sendo a enumeração da totalidade do infinito, portanto, uma evidente contradição.

O filósofo macedônio não nega, que fique claro, que a um número qualquer sempre uma nova unidade pode ser adicionada. O que ele nega é que o número seja propriamente infinito. O número é por natureza uma quantidade definida, e nenhuma soma de unidades consegue abolir esse caráter essencial de limitação. A cada unidade adicionada, o número resultante jamais é infinito. A adição, é claro, pode prosseguir indefinidamente, o que não significa que os números sejam infinitos. 

Há que se distinguir entre a infinitude real, que não possui quaisquer limites, e a possibilidade de se prosseguir a adição de unidades até onde se queira. O número é composto de unidades, o que por si só demonstra a sua limitação intrínseca. A soma de unidades (n+1) corresponde somente à formação de um novo número, o qual é limitado não importando a sua grandeza. Se algo é numerável, então pode ser contado inteiramente. Nada que pode ser contado até o seu fim é infinito. 

O corpo infinito será ou composto de elementos ou simples. Se for composto, os seus elementos constitutivos deverão ser finitos ou infinitos em número. Elementos finitos serão, por definição,  insuficientes para compor algo infinito. E se algum tipo dos elementos estiver presente no composto em um número infinito, ele vai obliterar quaisquer outros tipos de elementos que sejam em número finito. 

Tampouco adianta que os próprios elementos sejam per se corpos infinitos. O corpo é aquilo que se estende em todas as direções, e um corpo infinito deveria se estender infinitamente. É patentemente impossível que os vários elementos corporais que compusessem um outro corpo infinito pudessem ser eles mesmos infinitos sem que cada um deles impusesse limites aos outros. Se A é um corpo infinito estendendo-se no espaço ad infinitum e B é outro corpo infinito também estendendo-se ad infinitum, como eles poderiam partilhar o mesmo espaço sem um limitar o outro? 

Caso queiramos que permaneça sendo A e B permaneça sendo B, ambos necessariamente têm de ser limitados. Do contrário, ou seria obliterado por B ilimitado, ou B seria obliterado por A ilimitado. Na hipótese de ambos serem ilimitados, a contradição é óbvia. A mesma impossibilidade resulta (na verdade, torna-se mais grave) se além de A e B houver outros elementos C, D, E, F, etc, tantos quantos se queira, que sejam per se corpos infinitos.

A impossibilidade também se segue da tese daqueles que afirmam que o corpo infinito é uno e simples, estando acima dos elementos na qualidade de sua origem. Simplesmente não há qualquer corpo sensível que corresponda a isso na composição das coisas deste mundo físico no qual tudo pode ser decomposto em seus elementos constituintes. Assim sendo, o corpo infinito simples deveria estar presente na formação dos corpos, o que não se observa jamais.

Ato contínuo, Aristóteles demonstra a impossibilidade de um corpo sensível infinito com outros argumentos. Os corpos sensíveis ocupam seu lugar apropriado, o mesmo se dando tanto nas partes quanto no Todo. Se supusermos que se trata de um corpo homogêneo (inteiramente de igual natureza), a parte será imóvel ou acompanhará o movimento do Todo. Por exemplo, se a terra (o elemento, não o planeta) fosse um corpo infinito, seria impossível dizer para onde um torrão dessa terra (uma parte do Todo homogêneo) se moveria ou determinar o lugar no qual estaria em repouso.

De acordo com a teoria aristotélica dos lugares naturais, corpos feitos integralmente ou majoritariamente de um determinado elemento tendem naturalmente a mover-se na direção de seu lugar próprio. O fogo se dirige naturalmente para cima, e qualquer corpo ígneo segue essa tendência. Um corpo formado por terra é grave, isto é, possui a tendência de se dirigir para baixo quando retirado de seu lugar natural de repouso, o solo (de natureza terrosa). 

Se fosse infinita, a terra teria que ocupar todos os lugares e todas as direções. Consequentemente, o lugar natural do torrão estaria em todo lugar. O corpo que se dirige naturalmente a algum lugar toma uma direção determinada em desfavor de todas as outras. O que serão o repouso e o movimento do torrão na terra infinita? Ele será imóvel ou se movimentará infinitamente. 

O que Aristóteles afirma é que o fato observável de que certos corpos possuem tendências naturais a se movimentarem em tais ou quais direções impossibilita a existência da infinitude corporal. Em um corpo ilimitado homogêneo estariam ausentes quaisquer diferenças de natureza. Se só houvesse  fogo, a chama não subiria ou desceria naturalmente. O torrão de terra não teria nenhuma direção natural se tudo fosse terra. Paradoxalmente, seríamos obrigados a dizer que ou o torrão seria imóvel, por estar sempre em seu lugar natural, ou que estaria sempre em movimento, ocupando sucessivamente todos os pontos da terra infinita. 

Na suposição da existência de um corpo infinito que seja heterogêneo, as suas partes seriam todas dissimilares entre si, e o corpo não possuiria real unidade. Não seria um corpo, e sim um conjunto ou agregado de corpos unidos pelo mero contato entre eles. Estaria ausente a continuidade extensiva que caracteriza essencialmente a corporalidade. Se esses componentes fossem finitos em tipo, teríamos novamente o problema de que um Todo infinito necessita que algum dos seus elementos seja infinito, o que oblitera a existência de quaisquer outros elementos de tipos diferentes. 

Caso as partes sejam infinitas em número e simples, os lugares próprios de cada elemento serão igualmente infinitos. Se os lugares forem finitos, o corpo será obrigatoriamente finito, dado que cada parte deve estar em um lugar correspondente. O que explica a imobilidade de um corpo, segundo Aristóteles, é o fato de se encontrar em seu lugar natural. As partes constituintes do corpo sem limites estariam todas sempre em seu lugar, o que tornaria o Todo imóvel e fixado.

A tese de um corpo infinito entra em contradição com as tendências observáveis que os corpos sensíveis possuem de se dirigirem para cima ou para o centro (o fogo e a terra, respectivamente). O corpo ilimitado sensível não pode apresentar nenhuma inclinação natural para qualquer direção. Considerado como um Todo, não pode mover-se. Estivesse dividido (o que o tornaria limitado) em metades de tipo distinto, cada metade teria tendências diferentes (uma para cima e outra para baixo, por exemplo), o que é absurdo.

Todo corpo sensível se encontra em algum lugar, e as seis posições observáveis no mundo físico são acima/abaixo, à esquerda/à direita, em frente/atrás. A existência do corpo infinito obliteraria quaisquer dessas distinções.  Do mesmo modo que a quantidade infinita, o lugar infinito é um oxímoropois a quantidade é sempre determinada quantidade, e encontrar-se em algum lugar é sempre estar em um lugar. Do que foi dito infere-se a impossibilidade de um corpo que seja infinito em ato.

Aristóteles admite que a simples negação da infinitude gera outros problemas, como o início temporal do mundo, a divisibilidade das magnitudes, a progressão sem limites dos números. A discussão anterior fornece os elementos necessários para a solução dessa aporia. infinito em ato é impossível, o que não significa que uma infinitude potencial não seja possível. 

A potencialidade aqui não é a mesma com a qual designamos a existência possível de uma estátua em uma pedra. A estátua é potencial no sentido em que ela pode se tornar atual, pode ser efetivada, pela ação do artista. Porém, a potencialidade do infinito não pode jamais se tornar atual como a estátua pode. O ser se diz de diversas formas, e o sentido no qual a infinitude é dita existente é semelhante ao que utilizamos quando dizemos "é dia" ou "são os jogos". 

Nos dois casos, a existência é atribuída a um processo, a algo que está se dando, não a um ente que foi atualizado ou finalizado. Após cada momento do dia, segue-se outro momento que era antes potencial, e após cada dia dos jogos olímpicos, segue-se um outro dia que antes era potencial. Óbvio, ao contrário do infinito, o dia chega ao fim, assim como os jogos chegam a seu termo. O cerne da questão é que o infinito existe na qualidade daquilo no qual sempre alguma coisa se segue de uma anterior, e cada coisa que se segue é limitada e diferente da que vem antes. 

É um processo de vir a ser e de deixar de ser, nisso sendo semelhante aos jogos olímpicos, mas que não se encerra numa atualização final. Sua existência ou seu ser, embora inegável, é mais tênue e elusivo que o ser de uma substância (οὐσία), um "isto", como um homem ou um cavalo. Cada um de seus estágios é definido, limitado, diferente do anterior.

A adição contínua de unidades poderá seguir até onde se queira sem que se alcance um limite para além do qual uma nova adição não possa ser feita. Porém, não se segue que algum número ou alguma magnitude seja literalmente infinita. A divisão contínua de uma magnitude em partes iguais segue ad infinitum, sempre restando alguma magnitude, por menor que seja, a ser dividida ulteriormente. 

O infinito, então, somente é real enquanto uma tendência sempre renovada de adição ou de subtração de partes diferentes entre si. Segundo a compreensão usual, o infinito seria aquilo que tudo abarca, nada havendo fora dele. Ao contrário, é aquilo que sempre tem algo fora dele e que pode ser atualizado em seguida. O infinito, portanto, jamais é um Todo, algo completo que não exige atualizações futuras. Nada é completo (τέλειον) se não possui um fim (τελος).

A infinitude não é a mesma no caso de magnitudes sensíveis e no caso dos números. Não há uma magnitude infinita, embora a divisibilidade seja infinita no sentido de não haver uma magnitude restante de uma divisão que não seja ela mesma divisível. Note-se que o termo aqui é divisível e não dividida. O que foi efetivamente dividido era divisível, mas uma coisa pode ser divisível sem nunca ser dividida, seja parcial ou inteiramente. O ponto levantado por Aristóteles é que as magnitudes físicas são potencialmente divisíveis ao infinito, o que não significa logicamente que elas sejam efetivamente divididas ao infinito.

Nos números, a subtração chega a um limite: a unidade. A razão disso se encontra no fato de que o número é composto por unidades. Porém, inexiste limite a priori para a adição contínua de unidades. O filósofo macedônio observa que não está destituindo os matemáticos do infinito quando refuta a possibilidade da infinitude atual no aumento sucessivo. Os matemáticos não necessitam e nem usam o infinito em ato, bastando a eles postular que uma linha reta pode ser estendida tanto quanto se queira, e, igualmente, que uma magnitude pode ser dividida continuamente sem fim.

O conceito de infinito mantém um sentido primário na magnitude, na mudança e no tempo. A mudança é dita infinita por conta da magnitude que seria percorrida, e o tempo por conta da mudança sucessiva sem um fim determinado. Todos os três se referem àquilo que não é transponível, atravessável ou percorrível. É impossível percorrer, chegar ao fim, de uma magnitude ilimitada. No âmbito das quatro causas, o infinito estaria alocado na matéria, sendo a sua essência uma privação (de limite), e seu substrato (ὑποκείμενον) estaria naquilo que é sensível e contínuo.

Duas observações finais: a primeira é que o uso que Aristóteles faz do conceito de infinito está restrito ao âmbito do quantitativo. Nos entes físicos, a infinitude está ligada à categoria da quantidade, seja ela discreta (números) ou contínua (extensão). O quantificável é, segundo a bela expressão cunhada pelos aristotélicos medievais, infinitum in potentia, sed finitum in actu**. Portanto, só é negada a existência do infinito quantitativo em ato.

A segunda observação se segue da primeira, e se refere à tradução do termo grego ἄπειρον. A fim de evitar incompreensões e confusões, talvez a palavra portuguesa que melhor expressasse o significado atribuído ao infinito por Aristóteles fosse "indefinido". O extenso é divisível indefinidamente, a adição de unidades a um número dado pode prosseguir indefinidamente. O termo indefinido tem a vantagem de evidenciar o caráter essencialmente móvel e potencial (isto é, jamais definido, finalizado, realizado, terminado) da quantidade denominada infinita.***

...

* O prefixo ἀ é negativo, indica ausência, e πέρας significa fronteira, limite, extremidade, fim, termo, conclusão.

** Infinito em potência, porém finito em ato.

*** Concordamos nesse ponto com as distinções observadas por René Guénon em seu excelente estudo "Les principes du calcul infinitésimal". Na obra, o termo francês infini é claramente distinguido de indéfini, este referindo-se às quantidades (que sempre implicam algum tipo de limitação), e aquele sendo utilizado exclusivamente para designar a infinitude metafísica (a absoluta ilimitação primordial).

...

Leia também:

Νεκρομαντεῖον: Aristóteles (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Filosofia da Ciência (oleniski.blogspot.com)