"Toda mediação é estrangeira a Deus."
MEISTER ECKHART, Do Homem Nobre
O teólogo, filósofo e místico renano medieval (1260/1328) Meister Eckhart, em seu curto tratado sobre o homem nobre, trata do tema da verdadeira beatitude humana. Fazendo uso de uma passagem do Evangelho onde Cristo diz que "um homem nobre partiu para um país distante a fim de ali ganhar um reino e retornar em seguida" (Lc 19,12), Eckhart desenvolve sua concepção do destino último do ser humano no seio de Deus.
Há no homem duas naturezas, a exterior e a interior. A natureza exterior é o velho homem sobre o qual falam as Escrituras, o homem carnal, voltado às coisas deste mundo, escravo, terrestre, inimigo. A natureza interior é o homem novo das Escrituras, o jovem, o amigo, o celestial, o homem nobre. Todos têm ao seu lado um anjo que inspira o desejo pelas coisas belas, eternas e virtuosas, e um demônio que as tenta com as coisas baixas, fugidias, passageiras e viciosas.
Tal como a serpente, por intermédio de Eva, conduz Adão à Queda, o demônio, por intermédio do homem exterior, espezinha o homem interior. É justamente no homem interior, Adão, que se encontra depositada a imagem e a semelhança de Deus, a semente da natureza divina, o Filho de Deus. Ali se encontra a árvore boa que sempre dá bons frutos, ainda que seja obscurecida pela árvore má do homem exterior. Mas a semente da natureza divina, o homem interior, foi plantada por Deus e, portanto, não pode jamais ser destruída, por mais enterrada e escondida que esteja.
Eckhart faz alusão obviamente à doutrina bíblica do Gênesis segundo a qual o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Porém, a tradição neoplatônica, em sua visão hierárquica da realidade, afirma também que a alma tem uma "parte voltada para cima", para a realidade superior. Nas Enéadas de Plotino, por exemplo, a "descida" da alma não é a habitação da alma no corpo material, mas sim a elevação do corpo ao inteligível efetuada pela alma que permanece tal como era antes.
Isto é, a alma não está no corpo, ela permanece em sua própria natureza imaterial (sem lugar) enquanto, ao mesmo tempo, o corpo participa, tem algo, da vida da alma. Poderíamos dizer que o corpo é que se torna real e vivo pela participação na (ou imitação da) alma, que, por seu turno, permanece em si mesma tal como era "antes" (não se trata de relação temporal) voltada às realidades superiores à ela mesma. (Enéadas, VI, 4. 16, 10-15)
Na linguagem de Eckhart, há no ser humano o homem interior e o homem exterior, este voltado às coisas deste mundo fugidio e aquele voltado às coisas celestes e eternas. Por mais que o homem exterior obscureça, esconda, enterre o homem interior, jamais conseguirá destruir sua imagem e semelhança com Deus. Isto é, há uma dimensão fundamental no ser humano que é uma semente da natureza divina que não pode ser maculada ou destruída, que é como a árvore que sempre dá bons frutos, e que brilha mesmo que esteja escondida ou enterrada.
Note-se o quanto o tema evangélico do tesouro escondido está em consonância com o que defende o mestre Eckhart: “O Reino dos Céus é como um tesouro escondido num campo. Alguém o encontra, deixa-o lá bem escondido e, cheio de alegria, vai vender todos os seus bens e compra aquele campo" (Mt 13, 44-52). Simbolicamente, o campo é o próprio homem que descobre em si mesmo essa dimensão fundamental escondida sob a terra de suas próprias ações mundanas e voltadas às coisas passageiras e viciosas.
Ele deixa o tesouro lá, bem escondido, ou seja, não o pode resgatar de imediato porque ainda não pertence a ele, pertence ao homem exterior. O que ele faz é vender seus bens e comprar o campo para desencavar o tesouro e dele tomar posse. Vender seus bens é abandonar o homem exterior com seus vícios e desejos pelas coisas cambiantes e passageiras. Mais profundamente, é retirar os obstáculos, desfazer-se daquilo que está escondendo o tesouro, abrir passagem, limpar, tirar o acessório, desnudar-se, abandonar as adições feitas à sua real natureza. Ser a parteira de si mesmo.
Ora, citando Agostinho, Eckhart prossegue seu tratado afirmando que no primeiro grau do homem interior acontece quando se busca imitar os exemplos dos homens bons e santos. O segundo grau é alcançado quando não mais são seguidos os bons e os santos e sim os conselhos e a Sabedoria de Deus. No terceiro, a comunhão com o Senhor é tal que nem sequer a possibilidade de fazer o mal sem punição é mais tentadora. Só Deus interessa e tudo o que d'Ele afaste aborrece e desagrada.
Quando alcança o quarto grau, o homem está disposto a sofrer quaisquer adversidades, provas, sofrimentos e contrariedades de bom grado. No quinto grau, vive somente em si mesmo, absolutamente mergulhado na paz da Sabedoria de Deus. O grau mais avançado, o sexto, para além do qual não há nenhum outro, é o da identificação com o Eterno, no qual o homem é "despojado dele mesmo e transformado pela eternidade de Deus, quando alcança o completo esquecimento da vida temporal com tudo isso que ela tem de perecível, dirigido e transfigurado em uma imagem divina, se tornou uma criança de Deus."
O homem nobre, o homem interior, a semente da natureza divina plantada nos seres humanos, diz Eckhart citando Orígenes, é comparável a um fonte d'água sobre a qual foi jogada terra até que ficasse encoberta. Tão logo se retire essa cobertura, ela voltará a ser usada como fonte. A comparação seguinte é ainda mais significativa. Ao contrário da tradição que afirma que o artista impõe à matéria a ideia da estátua que tem em sua mente, Eckhart diz que o artista remove as lascas que cobriam e escondiam a estátua.
Essa maravilhosa imagem contraria frontalmente a concepção aristotélico-tomista da produção (ποίησις) dos artefatos. O produtor ou artista exerce sua arte (τέχνη) no curso mesmo do processo em que imprime uma Forma que estava em seu intelecto em uma matéria preexistente. Nesse caso, a arte é uma ação causal transitiva de sujeição da matéria a um padrão abstrato. Eckhart transforma o artista em uma espécie de parteiro socrático, eliminando com seus golpes, assim como Sócrates com suas perguntas, os obstáculos que encobrem e escondem a estátua, ou o conhecimento, que já está lá esperando somente para ser des-coberto.
O tema é platônico, evidentemente. Agostinho, no seu livro A Trindade, tratando do preceito délfico conhece-te a ti mesmo, exorta o leitor que deseja conhecer a sua própria alma (mens, no Latim) a abandonar os dados sensíveis e as imagens dos dados sensíveis, isto é, abandonar aquilo que não é a alma, e que a ela foi acrescentado:
"E esta é a sua impureza, porque, ao tentar pensar em si sozinha, julga ser aquilo sem o qual não se pode pensar a si mesma. Quando, pois, lhe é ordenado que se conheça a si mesma, não se deve procurar como se fosse separada de si, mas deve separar de si aquilo que a si acrescentou. (A Trindade, X, 8-11)
Não é necessário sair de si mesmo, buscar algo exterior, mesmo que sejam as boas obras. O que é preciso é retirar os obstáculos, não para enxergar corretamente a realidade externa, mas para ser aquilo que sempre fomos. O homem nobre de quem Cristo fala é o homem que se desfez das imagens e de si mesmo, que se fez estrangeiro a todas as coisas, ensina Eckhart. A diferença repousa nas adições, afirmava Plotino nas Enéadas. O que resta quando todas as adições, as diferenças, são removidas? O Uno.
Eckhart enuncia então o centro de sua doutrina da beatitude asseverando que toda mediação é estrangeira a Deus. Tanto esta primeira afirmação quanto aquelas que serão apresentadas em seguida estão em consonância com a tradição neoplatônica do Uno. A questão é saber de que forma a henologia neoplatônica pode ser combinada com o trinitarismo cristão. Segundo o dogma, Deus é uma Trindade consubstancial formada por três hipóstases, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
As três Pessoas divinas possuem igualmente uma e a mesma natureza divina (ὁμοούσιος), sem que as distinções entre Pai, Filho e Espírito Santo firam a absoluta homogeneidade e unicidade de Deus. O neoplatonismo vê no Uno (Hen, Τὸ Ἕν) a realidade última e fonte de todas as coisas. Se toda mediação é estrangeira a Deus, a Trindade, ela mesma, não se constitui em uma mediação a ser ultrapassada? A resposta de Eckhart é neoplatônica e cristã a um só tempo.
O homem nobre encontra a beatitude no Um, a natureza divina compartilhada pelas três Pessoas. Nenhuma distinção existe na natureza de Deus e nem nas pessoas divinas segundo a unidade de sua natureza. A natureza divina é Um, e cada pessoa é igualmente Um, esse mesmo Um que é sua natureza, escreve Eckhart. Levando até as últimas consequências a consubstancialidade da Trindade, isto é, a natureza divina igualmente presente nas três Pessoas, Eckhart pode encontrar o Uno que é o fundo comum.
Em certo sentido, o místico renano quer penetrar na absoluta unicidade divina "anterior" às Pessoas. Ele preserva o dogma trinitário intacto, pois ninguém na Cristandade negará que Deus é uma Trindade consubstancial, ou seja, com a mesma substância, ou a mesma essência, ou a mesma natureza. É precisamente nesse divino consubstancial, "anterior" a tudo, o Um absoluto, que reside a beatitude. Formalmente, estão preservadas as Pessoas divinas, assim como a unicidade consubstancial que impede a Trindade de se tornar um triteísmo.
Eckhart prossegue dizendo que "a distinção entre ser e essência é reabsorvida no Um e não faz mais do que Um. É somente quando o Um cessa de estar nele mesmo que ele recebe, possui e fornece uma distinção. Eis a razão pela qual é no Um que se encontra Deus, e também a razão pela qual aquele que quer encontrar Deus deve ele mesmo se tornar um."
No interior do Um, a distinção entre ser e essência se desfaz. Grosso modo, o ente, qualquer que ele seja, tem seu ser, sua existência, idêntico a qualquer outro existente, mas se distingue de todos os outros por sua essência, aquilo que ele é, seu modo de ser. A distinção primordial da realidade se dá entre o ser como o caráter mais universal de tudo o que existe, existiu e pode existir, e a essência, aquilo que determina à qual classe, tipo ou modo de ser o ente pertence. Por exemplo, o gato e o livro existem igualmente, porém diferem no tipo de ser que cada um é.
Eckhart, quando fala do Um, está se referindo à realidade anterior à essa distinção primordial entre ser e essência, portanto, anterior a qualquer distinção. Toda multiplicidade se dá a partir da distinção, e esta é fundada na unidade, se resolve em uma unidade subjacente. Em termos neoplatônicos, Eckhart está afirmando que Deus se encontra lá no Uno, onde a Díada é ultrapassada, e que, consequentemente, quem quer encontrar Deus deve se despojar de suas próprias características distintivas.
"Antes da Díada está o Uno. A Díada é a segunda e, tendo vindo do Uno, o Uno impõe a ela definição, enquanto ele mesmo é indefinido", ensina Plotino (Enéadas, V, 1, 5). Em sua filosofia, Plotino identifica a Díada ao Ser ou Intelecto (νοῦς), onde as Ideias eternas existem justamente porque cada uma recebeu sua definição. Ali se encontra o início do mundo da Identidade e da Diferença, no qual ser X, implica necessariamente em não ser Y.
Eckhart declara sem peias que "na distinção não se encontra o Um, nem Ser, nem Deus, nem repouso, nem beatitude, nem satisfação. Em verdade, se tu fosses verdadeiramente um, tu permanecerias igualmente um na distinção, e a distinção se tornaria para ti o Um, não podendo mais em nada te fazer algum obstáculo." A beatitude só se realiza no Um. Viver no Um é possível mesmo no mundo da distinção, tal qual se mostrou acima no sexto grau do homem interior.
"O Reino de Deus está dentro de vós", disse o Senhor. A vida beatífica começa aqui para aquele que vive no mundo da distinção interiormente mergulhado no Um. O que Eckhart está ensinando pode ser traduzido em termos metafísicos nas afirmações de que tudo aquilo que procede do Princípio necessariamente possui uma existência derivativa, e, que, portanto, nunca pode se constituir em obstáculo comparável ao Princípio. Se toda multiplicidade se reduz à uma unidade subjacente, essa unidade que serve de fundamento não pode ela mesma ser comparável com a multiplicidade a que ela dá origem.
Há uma relação de anterioridade ontológica, não temporal, entre o Um e a distinção. O Um fundamenta e dá origem à distinção não como se ela fosse algo completamente diferente dele mesmo. Não há o Um e a distinção, como se estivessem ambos no mesmo nível de realidade, só que em lados opostos. Na realidade, há o Um, e a distinção é o mesmo Um manifestado como limitação, determinação, delimitação. A distinção é, portanto, derivativa, não tem realidade em si mesma.
Por essa razão, Ulrich de Strasburg, outro renano como Eckhart, chamava os seres limitados de falsos seres. Não porque eles não existam de nenhuma maneira, mas porque eles existem de uma forma muito tênue, derivativa e dependente de Deus, o único que realmente pode ser dito existente. Vê-se que a distinção e a multiplicidade não podem ser postas no mesmo nível do Um como se fossem opostos igualmente existentes.
Ora, sendo assim, a beatitude começa aqui e agora para aquele que enxerga tudo no Um. O homem nobre, segundo a descrição de Eckhart, é um com o Um, de tal modo que toda distinção que o cerca, justamente por sua natureza derivativa, não se constitui em obstáculo à beatitude já na vida terrestre. É assim que o homem deveria ser um, afirma Eckhart, pois Cristo disse que "o homem partiu". O que significa essa partida?
Eckhart sugere primeiramente que o significado de homem seja o do ser que se inclina e se submete inteiramente a Deus, com tudo o que ele é e possui, que eleva seus olhos a Deus e a mais nada. Essa é a perfeita humildade. Homem também significa algo que está acima da natureza, acima do tempo, e de tudo que está ao sabor do tempo. O mesmo vale para o espaço e a corporeidade. De certa maneira, o homem nada tem de semelhante com qualquer outra coisa, encontrando-se nele somente a vida, o ser, a verdade e a bondade puras. Quem é assim feito, ele somente é o homem nobre.
"O homem partiu" porque é da natureza humana verdadeira partir, deixar de ser o que é para habitar na indistinção do Um. O homem nobre é aquele cuja humildade é tão perfeita que ele se despoja inclusive de seu próprio ser, de sua própria distinção, para ser um com o Um. Imerso no Um, o homem nada tem de semelhante a qualquer outra coisa, está acima do tempo, da corporeidade, do espaço e da natureza. Toda distinção e toda multiplicidade foram suspensas. Para aquele que é um com o Um, só há o Um.
O mestre renano assevera que aqueles que conhecem Deus sem véus, conhecem também todas as criaturas. Quando alguém conhece as criaturas elas mesmas, com todas as suas distinções, denomina-se isso de conhecimento da noite. Por outro lado, quando alguém conhece as criaturas em Deus, denomina-se conhecimento da manhã, pois as criaturas são vistas sem a menor distinção, desprovidas de toda imagem, libertas de qualquer semelhança com qualquer coisa, imersas no Um que é Deus.
O homem nobre é esse que vê tudo em Deus. Essa formulação ainda é inexata e algo enganadora. O que Eckhart quer expressar é absolutamente indizível. Nossa linguagem não foi feita para essas alturas divinas. O homem nobre é aquele que fez a renúncia de seu próprio ser, o falso ser das criaturas, e somente reconhece o Um como realidade. A profundidade metafísica do que Eckhart está defendendo passará desapercebida a um olhar superficial.
Não se trata aqui de uma concepção costumeira de beatitude, de uma comunhão paradisíaca com Deus aos moldes da piedade comum. Eckhart está dizendo que para o homem nobre a beatitude consiste, se posso formular desse modo, no retorno ao momento imediatamente anterior à sua própria criação. É óbvio que aqui as referências temporais não têm sentido literal. A ideia é que a beatitude verdadeira consiste naquela realidade pré-distinção, antes de cada coisa se tornar o que é, em que estavam todos os seres em Deus indistintamente como possíveis.
Isso não significa que Eckhart esteja negando ou lamentando o fato da Criação. A distinção não impede o homem nobre de estar imerso no Um. O que o mestre renano está dizendo é que a verdadeira beatitude passa pelo abandono do próprio ser, pela humilde negação de sua própria substancialidade, e, consequentemente, pelo reconhecimento de que só há realmente um existente, Deus, o Um, para além de todas as distinções. Sob esse ângulo, é possível compreender melhor o que Eckhart diz em seguida sobre o homem nobre.
Vários teólogos da época do mestre renano afirmavam que a beatitude consistia no conhecimento de que se conhece Deus. Eles argumentavam que não faria nenhuma diferença gozar do conhecimento de Deus sem a consciência de que se está conhecendo Deus. Contra eles, Eckhart opunha a sua concepção de beatitude na qual a alma contempla a Deus sem véus, e lá, "no próprio fundo de Deus, ela não sabe nada do saber e nem nada do amor, nem absolutamente nada de nada. Ela repousa inteira e exclusivamente no ser de Deus, e não conhece nada além do ser e de Deus."
Compare-se a concepção eckartiana com a seguinte passagem das Enéadas, VI, 9.7: "(...) a alma deve ignorar tudo, especialmente as coisas da percepção sensível, mas também em formas, e então, na consideração do Uno, chegar a ignorar a si mesma. E quando a alma vier a estar com o Uno, e, de certo modo, estiver comungada com ele em um grau suficiente, então ela deverá contar aos outros sobre esse contato íntimo, se for capaz."
A alma entra em si mesma, saindo das percepções sensíveis e denão tudo o que possui forma, portanto distinção, até alcançar o Uno, ignorando a si mesma. Comunhão com o Uno, por assim dizer, implica o esquecimento de si mesmo, dado que no Uno nenhuma distinção permanece. Entretanto, essa comunhão se acontece já nessa vida dentro da distinção, pois a alma deve dar testemunho aos outros do contato íntimíssimo com o Uno. Se for capaz disso, uma vez que nossa linguagem só comporta o que é distinto.
A rejeição de Eckhart da beatitude como conhecimento do conhecimento de Deus, ou o saber que se está conhecendo Deus, também encontra paralelos na tradição neoplatônica antiga. Note-se que o conhecimento implica, sutilmente no caso dos intelectos não ligados a um corpo, uma certa dualidade entre o inteligente e o inteligido. Mesmo que o intelecto se torne aquilo que ele intelige, ainda assim o intelecto não é absolutamente idêntico ao inteligido.
Em uma linguagem mais simples, e não totalmente correta, a questão é que o pensamento implica sempre alguma distinção entre aquele que pensa e aquilo que é pensado. Da mesma forma, o conhecimento é uma relação, como já dizia Aristóteles nas Categorias. O conhecimento é sempre conhecimento de algo. Neoplatônicos como Plotino usaram esse caráter dual da intelecção para negar ao Deus de Aristóteles, que "pensa a si mesmo", o posto de primeiro princípio.
"Aquilo que pensa é duplo, mesmo se pensa a si mesmo, e é deficiente pelo fato de que tem seu bem em seu pensamento e não em sua existência." (Enéadas, III, 9,7) Em outra passagem, é dito que "Aristóteles disse depois que o primeiro princípio era 'separado' e 'inteligível', mas quando afirmou que ele 'pensa a si mesmo', ele não o fez mais o primeiro princípio." (Enéadas, V, 1,9). Por conseguinte, e Plotino o declara explicitamente, o primeiro princípio, o Uno, não intelige, não pensa.
Entende-se agora facilmente por qual motivo Eckhart defende que a beatitude não é conhecimento. Se fosse conhecimento, a alma permaneceria no âmbito da distinção. Compreende-se igualmente a razão pela qual o mestre renano afirma que no Um a alma não sabe de nada sobre nada. Saber algo é "descer" ao nível da distinção, é sair do Um tal como Deus é na Sua absoluta indistinção. Nada que implique ou sugira alguma mínima distância, como o amor e o conhecimento, pode existir no Um.
Saber que conhecemos Deus é parte da beatitude, mas não seu cerne. Muito diferente é o calor e o fogo que o calor produz. "Um homem nobre partiu para um lugar distante para ganhar um reino e depois dali retornar". O homem deve entrar em si mesmo, ser um com o Um, contemplar somente o Um, e depois "retornar", isto é, saber e conhecer que ele conhece algo de Deus. Nessa bela interpretação da passagem evangélica, Eckhart não nega o conhecimento, mas o encaixa na hierarquia ontológica da realidade.
Saber que conhecemos algo de Deus corresponde à descida ontológica do Um à distinção, do Uno à Díada. Porém, conhecer Deus (ser um com o Um) é justamente não saber nada de nada, nem de si mesmo, pois no Um não há distinção. Na linguagem de um místico neoplatônico posterior a Eckhart, o cardeal alemão Nicolau de Cusa, temos de Deus somente a Douta Ignorância, pois Ele é a Possibilidade Absoluta na qual estão contidas todas as coisas na condição de coincidentia oppositorum.
Conhecer Deus consiste em nada saber. Se o homem soubesse algo ao conhecer Deus, ele não conheceria Deus, e sim outra coisa qualquer. Conhecer Deus implica não ser mais aquilo que se é, implica perder-se completamente no fundo indistinto da realidade incognoscível do Um. "Mas você não poderá ver a minha face, porque nenhum homem poderá continuar vivo depois de me ver" (Êxodo, 33, 20). Nada há na existência ao lado do Um sem segundo. Ver Deus é deixar de existir.
O homem nobre, é preciso que se diga, não afirma sua identidade com Deus. Não se trata do orgulho luciferiano ou da tentação da serpente que sussurra "sereis como deuses". Ao contrário, o que Eckhart enfatiza é a pobreza ontológica das criaturas. Frente ao Deus verdadeiro, não somos nada, desaparecemos, e só Ele resta na Sua glófia infinita. Imagine-se a arrogância de quem ainda pretende afirmar sua existência mesmo diante do único Existente!
É por isso que Meister Eckhart encerra seu opúsculo afirmando "o Um com o Um, o Um do Um, o Um no Um, e, no Um, eternamente Um!"
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