sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Ibn Sina (Avicena) sobre o conhecimento e a vontade de Deus


"Por conseguinte, Sua vontade procedendo da ciência é de tal sorte que Ele sabe que a existência de tal coisa é digna e boa em si mesma, que a existência de tal outra deve ser tal para que ela seja digna e nobre, e que a existência de uma outra é preferível à sua inexistência. Então, nada mais é necessário para que aquilo que é conhecido por Ele venha à existência."

IBN SINA, O Livro da Ciência, Livro I, Metafísica

O filósofo, médico e astrônomo islâmico persa Ibn Sina (Avicena), em seu tratado Danesh-Nama (Livro da Ciência) após a demonstração da existência do Ser Necessário (Deus), passa a tratar do conhecimento divino. As questões tradicionais sobre esse tema são, entre outras, se e como Deus conhece. Pareceria, à primeira vista, que o Ser Necessário nada conhece, pois não necessitando de nada, não estaria compelido a se inclinar a qualquer outro ente da realidade que não Ele mesmo.

A primeira providência a tomar nessa discussão é distinguir o conhecimento humano desse possível conhecimento divino. Como Aristóteles ensinava, o conhecimento científico consiste na abstração da Forma dos entes singulares sensivelmente percebidos. Em outros termos, nosso intelecto é capaz de, com as informações trazidas pelos sentidos e organizadas pela imaginação, abstrair (separar) a Forma (o "padrão", em uma linguagem mais moderna) presente em vários seres de um mesmo tipo.

O ponto aqui é que nosso conhecimento consiste em perceber pelos nossos sentidos, por exemplo, diversos cavalos e captar o padrão (a "cavalidade") que todo e qualquer cavalo singular repete para ser um cavalo. Há um conjunto de propriedades do cavalo que o tornam um cavalo e não outra coisa, e captar intelectualmente esse padrão repetido em cada cavalo é compreender a natureza do cavalo. Nosso conhecimento é, então, adventício, ocorre sempre antecedido pela ignorância, nosso estado mais natural.

Ora, o saber divino, se houver, não pode ser igual ao do homem, dado que ele é eterno, portanto isento das limitações temporais, e é origem de tudo o que há. O problema de como as coisas emanam do Ser Necessário é algo que Ibn Sina discutirá em outro capítulo de seu livro, mas a questão do conhecimento divino está intrinsecamente ligado àquele. Dito isso, o sábio islâmico passa a examinar o modo de conhecimento de Deus.

O conhecimento do Ser Necessário não pode ser igual ao do ser humano por diversos motivos. O principal é que os homens são materiais, possuem corpo e por isso necessitam dos sentidos corporais para perceber os seres do mundo externo. Sendo imaterial e metafisicamente infinito, Deus não necessita de sentidos corporais para conhecer. A questão parece se complicar, uma vez que, estando ausentes os sentidos, resta saber de onde o Ser Necessário abstrai as Formas dos entes.

A resposta de Ibn Sina é a de que Deus, sendo imaterial e puro intelecto, não necessita abstrair as Formas dos entes a partir das informações dos sentidos. Ao contrário, o conhecimento divino não é adventício, não depende da observação sensível dos entes do mundo externo. As Formas dos entes da realidade Deus as possui desde sempre, ou melhor, estão na própria essência divina porque Deus é a causa de todas elas.

Deus conhece tudo na medida em que é a causa de tudo. Se conhecer algo é dizer as suas causas, o conhecimento divino é perfeito, pois Ele conhece Sua própria essência que é a causa primeira de tudo o que há. Ibn Sina faz uma comparação com o construtor de uma casa. Ele é causa da existência da casa primordialmente porque possui em sua mente a Forma da casa. Se ela não estivesse na mente do construtor, a casa jamais seria construída. O Ser Necessário, sendo fonte última das Formas de todos os entes é a causa primordial de todas as coisas existentes e possíveis.

Embora causa de tudo, a vontade do Ser Necessário não pode ser igual à humana. O agir divino não pode se seguir de uma intenção, como um homem que considera algo bom e, por isso, age para alcançar esse bem. O conhecimento divino ele mesmo é a causa necessitante de todas as coisas tais como elas são. A vontade do Ser Necessário, explica Ibn Sina, não é outra coisa que a ciência da realidade, e a ciência de que a existência das coisas é boa em si mesma, dado que a bondade é a existência de toda coisa tal como ela deve ser. 

O homem sempre age movido pela intenção, qualquer que ela seja. A ação divina não se segue de intenção alguma, tampouco de decisão, exigência ou desejo. A vontade do Ser Necessário não possui qualquer outro atributo que a Sua ciência eterna. Assim também, a generosidade divina não consiste, como no caso dos homens, em uma troca em busca de lucro, mas sim em que a bondade procede de algo sem que haja nenhuma intenção.
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