IBN SINA, O Livro da Ciência, Livro I, Metafísica
O filósofo, médico e astrônomo islâmico persa Ibn Sina (Avicena), em seu
tratado Danesh-Nama (Livro da Ciência) após a demonstração da
existência do Ser Necessário (Deus), passa a tratar do conhecimento divino. As
questões tradicionais sobre esse tema são, entre outras, se e como Deus
conhece. Pareceria, à primeira vista, que o Ser Necessário nada conhece, pois
não necessitando de nada, não estaria compelido a se inclinar a qualquer outro
ente da realidade que não Ele mesmo.
A primeira providência a tomar nessa discussão é distinguir o conhecimento
humano desse possível conhecimento divino. Como Aristóteles ensinava, o
conhecimento científico consiste na abstração da Forma dos entes singulares
sensivelmente percebidos. Em outros termos, nosso intelecto é capaz de, com as
informações trazidas pelos sentidos e organizadas pela imaginação, abstrair
(separar) a Forma (o "padrão", em uma linguagem mais moderna) presente em
vários seres de um mesmo tipo.
O ponto aqui é que nosso conhecimento consiste em perceber pelos nossos
sentidos, por exemplo, diversos cavalos e captar o padrão (a "cavalidade") que
todo e qualquer cavalo singular repete para ser um cavalo. Há um conjunto de
propriedades do cavalo que o tornam um cavalo e não outra coisa, e captar
intelectualmente esse padrão repetido em cada cavalo é compreender a natureza
do cavalo. Nosso conhecimento é, então, adventício, ocorre sempre antecedido
pela ignorância, nosso estado mais natural.
Ora, o saber divino, se houver, não pode ser igual ao do homem, dado que ele é
eterno, portanto isento das limitações temporais, e é origem de tudo o que há.
O problema de como as coisas emanam do Ser Necessário é algo que Ibn Sina
discutirá em outro capítulo de seu livro, mas a questão do conhecimento divino
está intrinsecamente ligado àquele. Dito isso, o sábio islâmico passa a
examinar o modo de conhecimento de Deus.
O conhecimento do Ser Necessário não pode ser igual ao do ser humano por
diversos motivos. O principal é que os homens são materiais, possuem corpo e
por isso necessitam dos sentidos corporais para perceber os seres do mundo
externo. Sendo imaterial e metafisicamente infinito, Deus não necessita de
sentidos corporais para conhecer. A questão parece se complicar, uma vez que,
estando ausentes os sentidos, resta saber de onde o Ser Necessário abstrai as
Formas dos entes.
A resposta de Ibn Sina é a de que Deus, sendo imaterial e puro intelecto, não
necessita abstrair as Formas dos entes a partir das informações dos sentidos.
Ao contrário, o conhecimento divino não é adventício, não depende da
observação sensível dos entes do mundo externo. As Formas dos entes da
realidade Deus as possui desde sempre, ou melhor, estão na própria essência
divina porque Deus é a causa de todas elas.
Deus conhece tudo na medida em que é a causa de tudo. Se conhecer algo é dizer
as suas causas, o conhecimento divino é perfeito, pois Ele conhece Sua própria
essência que é a causa primeira de tudo o que há. Ibn Sina faz uma comparação
com o construtor de uma casa. Ele é causa da existência da casa
primordialmente porque possui em sua mente a Forma da casa. Se ela não
estivesse na mente do construtor, a casa jamais seria construída. O Ser
Necessário, sendo fonte última das Formas de todos os entes é a causa
primordial de todas as coisas existentes e possíveis.
Embora causa de tudo, a vontade do Ser Necessário não pode ser igual à humana.
O agir divino não pode se seguir de uma intenção, como um homem que considera
algo bom e, por isso, age para alcançar esse bem. O conhecimento divino ele
mesmo é a causa necessitante de todas as coisas tais como elas são. A vontade
do Ser Necessário, explica Ibn Sina, não é outra coisa que a ciência da
realidade, e a ciência de que a existência das coisas é boa em si mesma, dado
que a bondade é a existência de toda coisa tal como ela deve
ser.
O homem sempre age movido pela intenção, qualquer que ela seja. A ação divina
não se segue de intenção alguma, tampouco de decisão, exigência ou desejo. A
vontade do Ser Necessário não possui qualquer outro atributo que a Sua ciência
eterna. Assim também, a generosidade divina não consiste, como no caso dos
homens, em uma troca em busca de lucro, mas sim em que a bondade procede de
algo sem que haja nenhuma intenção.
...
Leia também: Νεκρομαντεῖον: Ibn Sina (oleniski.blogspot.com)
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