"Para o Racionalista, nada possui valor meramente por existir (e certamente não por haver existido por várias gerações), familiaridade não possui mérito, e nada deve ser deixado em pé por falta de escrutínio."
MICHAEL OAKESHOTT, Rationalism in Politics, parte 1, pag. 8, in Rationalism in Politics and other Essays (tradução minha)
O filósofo político britânico Michael Oakeshott (1901/1990), em seu famoso ensaio Rationalism in Politics, examina a figura do racionalista e sua influência na política. Logo no início do ensaio o caráter e a disposição do racionalismo moderno são expostos. O racionalista está comprometido com a liberdade de pensamento, aversão a todas as autoridades tradicionais, e, sobretudo, uma confiança na razão.
Nada há que esteja a salvo do crivo da razão. Tudo pode ser livre e criticamente examinado pelos poderes racionais do homem. A Razão é universal e torna tudo e todos iguais, não havendo costume ou autoridade que possa se furtar à investigação de suas bases e pressupostos.
A sua influência não se faz ausente na política, campo onde a tradição, o circunstancial e o transitório parecem imperar. O racionalista crê em liberdade de pensamento, no questionamento das tradições, das autoridades e dos hábitos enraizados. Sobretudo, sua ideia é a de que a razão é um guia infalível da ação política. A argumentação e a base racional são o que interessa no julgamento de uma instituição qualquer, não seu uso ou sua antiguidade.
Trazer toda a herança social, política, legal e institucional ao tribunal da razão é se intento primordial. O resto, diz Oakeshott, é mera administração racional de todas as circunstâncias. Familiaridade e antiguidade não possuem valor para o racionalista que prefere a invenção de novos instrumentos ao uso de expedientes correntes e bem testados. Reparos estão fora de cogitação. Qualquer tentativa de manutenção ou aperfeiçoamento de ideais tradicionais significa submissão ao passado.
Não há mudança válida a não ser se for conscientemente efetuada. Toda a atividade política é mera resolução de problemas ao estilo do engenheiro. É característico de sua mentalidade o uso de uma técnica apropriada para a resolução de um problema excluindo de sua consideração qualquer fator que não esteja nele diretamente implicado. A assimilação do político ao engenheiro é, segundo Oakeshott, o mito da política racionalista.
A solução de dilemas práticos circunstanciais e a superação de crises por meio da razão representam a noção de atividade política do racionalista. Se leis ou instituições herdadas impedem aparentemente o tratamento racional dos problemas, é mister fazer tabula rasa e começar tudo de novo, como uma folha branca de possibilidades infinitas. A única forma de ter boas leis é queimar todas as leis existentes e começar de novo, dizia Voltaire.
O racionalismo combina a política da perfeição com a política da uniformidade. Não há problema político que não possua uma solução racional e que esta não seja a solução perfeita. A uniformidade vem da noção de que se uma solução proposta é racional, ela deve necessariamente ser aceita universalmente por todo ser racional. A divergência é sinal da irracionalidade, dado que a solução racional exclui quaisquer preferências particulares.
Na segunda parte do ensaio do filósofo britânico são apresentados os dois tipos de conhecimento envolvidos em qualquer atividade humana. O primeiro deles é o que Oakeshott denomina como conhecimento técnico, o qual é caracterizado por um conjunto de regras deliberadamente aprendidas, memorizadas e empregadas praticamente. Tenham ou não sido explicitadas, a verdade é que tais regras podem ser precisamente formuladas.
O outro tipo de conhecimento é o conhecimento prático ou tradicional. O que o caracteriza é fato de não ser explicitável em regras precisamente formuladas. Ele é aprendido na prática, como o domínio de certas capacidades. Os livros de culinária trazem diversas receitas, mas ninguém pensa que um bom cozinheiro seja somente alguém que segue bem as regras contidas no livro. O mesmo se dá com a arte, a poesia, a pintura, a música, e até mesmo com o aprendizado de uma técnica.
Seguir regras jamais é o suficiente. Note-se, entretanto, que, apesar de serem distintos, esses dois tipos de conhecimento estão sempre unidos na realidade. Não se trata de racionalidade e irracionalidade contrapostas. Ambos os conhecimentos são necessários mesmo na atividade científica, como asseverou o químico e filósofo da ciência húngaro Michael Polanyi.
Aqui cabem alguns comentários. Michael Oakeshott se refere à tese central de Polanyi acerca do conhecimento tácito na atividade científica. Todo conhecimento é tácito ou derivado de um conhecimento tácito. Isso significa que em todas as atividades humanas há sempre um saber que não é formulável em termos de regras explícitas, mas que está presente na forma de um conhecimento pessoal.
Michael Polanyi salienta que o conhecimento derivado dos manuais nunca é suficiente. Há decisões a serem tomadas, há juízos sobre a realidade a serem feitos que não podem ser formulados em regras explícitas. Por exemplo, o modo pelo qual um cientista julga o resultado de um teste não é matéria de regras lógicas explícitas. É fruto de um conhecimento pessoal, de um talento adquirido por experiência ou por convívio com cientistas mais experientes.
Não se trata, de novo, de uma oposição entre racionalidade e irracionalidade. O conhecimento tácito não é um resquício irracional a ser eliminado no futuro. Ele é o próprio pensamento racional em ação, pois nenhum conjunto de regras explícitas traz consigo a regra de sua aplicação nos casos particulares. Por definição, as regras são universais, e as situações concretas são sempre únicas, singulares.
Como adaptar/aplicar a regra aos casos concretos da realidade é um saber que não possui ele mesmo regras. Um juiz aplica a lei sempre a um caso particular levando em conta todas as circunstâncias concretas do acontecimento. O seu julgamento será um "cálculo", pois como já ensinava Aristóteles, a justiça é uma proporção. Não se adquire essa capacidade simplesmente seguindo regras, e sim na experiência contínua de transpor o abismo entre o texto e os fatos da experiência.
"Mesmo as ciências mais exatas devem, portanto, basear-se em nossa confiança pessoal de que possuímos algum grau de talento e julgamento pessoais para estabelecer uma correspondência válida com - ou um desvio real dos - fatos da experiência." (M. Polanyi, Meaning, pag. 31)
Retornando ao ensaio de Oakeshott, o que foi dito acerca das artes, da justiça ou da ciência pode ser dito propriamente da arte política. O conhecimento técnico pode ser transmitido em regras a serem obedecidas, e pode ser ensinado por um professor ou estudadas em um livro. Já o conhecimento prático não é ensinado explicitamente, ele é adquirido somente na experiência ou no contato contínuo com aquele que possui esse saber.
"(...) um cientista adquire (entre outras coisas) o tipo de julgamento que diz a ele quando sua técnica está extraviando-o e o conhecimento que o torna capaz de distinguir as direções profíquas das improfíquas para explorar." (Rationalism in Politics, pag. 15)
O Racionalismo é justamente a negação do valor do conhecimento prático ou tradicional, explica Oakeshott. Não há conhecimento que não seja técnico, que não seja enunciável em um conjunto de regras explícitas. A obsessão do racionalista é a certeza, somada à aplicação mecânica e impessoal das regras. Tal como a ideologia, que parece ser autossuficiente, a técnica é aplicada mais facilmente em mentes vazias. Por isso a necessidade de purgar pela crítica racional qualquer saber anterior.
Na terceira parte do ensaio, o filósofo britânico identifica no século XVII o surgimento da figura do racionalista. Já em Francis Bacon, com seu Novum Organum, se encontra o anseio por um método novo cujas regras sejam explícitas e conduzam ao conhecimento certo. Para Oakeshott, o método de Bacon apresenta três características centrais que resumem seu ideal de conhecimento.
A primeira é que o novo "instrumento" se constitui em uma série de regras explícitas. A segunda é que essas regras são seguidas mecanicamente, isto é, da mesma maneira que alguém utiliza uma máquina. Todas as idiossincrasias e particularidades do pesquisador são eliminadas pelo funcionamento impessoal do "instrumento". A terceira é que as regras são universais, a técnica tem aplicação em qualquer tipo situação e servem para o estudo de qualquer objeto.
Obviamente o outro exemplo de racionalista é René Descartes. O pensador francês também buscou a formulação de um novo método de conhecimento, com regras infalíveis de descoberta, como uma espécie de chave para abrir todas as portas. Modelado a partir da geometria, o método cartesiano tinha a pretensão de ser universalmente aplicável e infalível em seus resultados.
Com o passar das gerações, o racionalista vai se tornando cada vez mais grosseiro e vulgar. As razões para esse fenômeno são obscuras, mas entre elas está o aparente declínio da crença na Providência divina. Em vez do Deus infalível e benéfico, a técnica infalível e benéfica. Oakeshott aponta que
"Certamente, também, sua proveniência é uma sociedade ou uma geração que considera que aquilo que ela descobriu por si mesma é mais importante do que aquilo que foi herdado, uma era demais impressionada com suas próprias realizações e suscetível a tais ilusões de grandeza intelectual as quais são a loucura característica da Europa pós-renascentista, uma era jamais mentalmente em paz consigo mesma porque nunca reconciliada com seu passado." (p.23)
O racionalismo se manifesta na política, assevera Oakeshott na quarta parte de seu ensaio, na substituição de tradições de comportamento por ideologias, na substituição de políticas de reparo por políticas de destruição e posterior criação, e pela noção de que aquilo que é racionalmente planejado é melhor do que aquilo que é estabelecido por si mesmo pela ação do tempo. É mister possuir sempre um rígido sistema de ideias abstratas, em outros termos, uma doutrina.
O racionalismo na política é a confiança na soberania da técnica, na pressuposição de que algum esquema completo de controle mecanizado é possível, e nos detalhes do esquema projetado. O racionalismo é a política do politicamente inexperiente, daquele que não foi educado no exercício dessa arte. Para alguém nessa situação de inexperiência, a perspectiva de que o conhecimento necessário para governar pode ser facilmente adquirido em um livro cujas regras podem ser aplicadas mecanicamente parecerá a sua salvação.
É essa situação que Maquiavel pretende sanar com seu manual de arte política. Para o governante politicamente inexperiente, o manual, o livro, é a fonte da cultura que lhe falta. Apesar de Maquiavel estar ciente das limitações da técnica, seus sucessores acreditaram firmemente que a política seria apenas uma questão administrativa para a qual bastaria a aplicação dos princípios de uma doutrina fixada em um livro.
Os maiores representantes do racionalismo político, depois de Locke e Bentham, são Marx e Engels. Oakeshott diz que "está fora de dúvida que eles são os autores do mais estupendo de nossos racionalismos políticos." E, como é característico do conhecimento técnico, sua aplicação foi mecânica para guiar uma classe inexperiente.
O racionalista quer acertar, mas infelizmente seu conhecimento técnico representa sempre a metade do conhecimento verdadeiro. Todavia, o racionalista, reflete o filósofo britânico, é perigoso quando está no governo. Seu perigo é menor quando ele fracassa do que quando é bem-sucedido, o que resulta no recrudescimento do racionalismo na vida inteira da sociedade.
Há duas características que tornam o racionalismo político particularmente perigoso. A primeira é que o racionalista se caracteriza por uma concepção enganosa acerca da natureza do conhecimento, o que gera uma corrupção da mente. Por consequência, o racionalismo é impermeável à crítica ou ao reparo. A correção viria exatamente do conhecimento que ele rejeita e que criticou desde o início. A única solução possível é a substituição do projeto racionalista falido por outro no qual se possa depositar todas as esperanças de sucesso.
A segunda característica é a de que o racionalismo tende a reduzir toda educação a um modelo exclusivamente racionalista. Não é preciso que essa educação seja como o grosseiro propósito comunista ou nazista de só permitir o ensino da doutrina racionalista oficial. A educação racionalista não é a apresentação dos costumes morais e intelectuais da sociedade, não é uma parceria do presente com o passado. É, antes de tudo, o treinamento em uma técnica que pode ser aprendida em um livro. E também a firme crença de que o conhecimento técnico, a "administração pública", é a única saída para a sociedade.
A moral racionalista também é uma técnica. Ela se reduz à persecução de ideais morais, ao aprendizado de princípios morais abstratos. É o treinamento em uma ideologia e não uma educação da conduta. Ideais morais são sedimento, afirma Michael Oakeshott. Só possuem significado se estiverem assentados em uma tradição religiosa ou social. O que resta ao racionalista é uma moral seca e arenosa, e a pregação hipócrita de uma ideologia de altruísmo e de serviço social.
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Sobre Michael Polanyi: Νεκρομαντεῖον: Michael Polanyi (oleniski.blogspot.com)
*Infelizmente, hoje faleceu em seu castelo na Escócia a Rainha Elizabeth II, símbolo de estabilidade e de dignidade, após um longo e próspero reinado de setenta anos. GSQ.
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