segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Ludwig von Mises, praxeologia, epistemologia e materialismo

"Toda variedade de metafísica materialista ou semi-materialista deve implicar na conversão de um fator inanimado em um quase-homem, e atribuir a isso o poder de pensar, de realizar juízos de valor, de escolher fins e de recorrer aos meios para a obtenção dos fins escolhidos. É necessário substituir a faculdade caracteristicamente humana de agir por uma entidade inumana que é implicitamente dotada de inteligência e de discernimento humanos. Não há forma de eliminar da análise do universo qualquer referência à mente. Aqueles que o tentam só substituem a realidade por um fantasma de sua invenção."

LUDWIG VON MISES, The Ultimate Foundation of Economic Science, p.28

O economista e pensador austríaco Ludwig von Mises, expoente da chamada Escola Austríaca de Economia, no primeiro capítulo de seu ensaio metodológico The Ultimate Foundation of Economic Science, reflete sobre os fundamentos apriorísticos do conhecimento humano e sobre a impossibilidade de uma filosofia materialista. Em primeiro lugar, ele esclarece o que são os princípios a priori da epistemologia.

Mises afirma que a epistemologia trata dos fenômenos mentais humanos e das formas de ação e de pensamento do homem. O principal defeito da epistemologia tradicional é não ter dado a atenção devida aos aspectos práticos do pensamento e da ação humanas. Muito se refletiu sobre lógica e sobre matemática, mas pouco se disse sobre os elementos a priori da praxeologia.

A economia foi deixada de fora da epistemologia, tendo seus métodos sido sempre retirados de outras ciências. Isso não significa que o economista deva ignorar as outras ciências. Ao contrário, ele deve dominá-las justamente para saber distinguir sua ciência das demais. O método da Economia não pode ser o mesmo de outras ciências, ele deve ser praxeológico.

Os princípios a priori da praxeologia não são do mesmo tipo dos princípios apriorísticos da lógica ou da matemática. Eles não são axiomas arbitrariamente escolhidos, mas são proposições auto-evidentes, clara e necessariamente presentes em todas as mentes humanas. O primeiro princípio da praxeologia é o reconhecimento de que o homem age, isto é, que ele busca conscientemente atingir determinados objetivos. Essa é uma verdade inegável, auto-evidente para toda e qualquer mente humana, tal como é o princípio de não-contradição.

Cabem aqui alguns comentários. O que Mises quer expressar, cremos, é que é inegável para o homem que ele age visando a fins escolhidos. Essa é a base primordial da praxeologia, o método próprio das ciências econômicas. É mister notar que com esse primeiro princípio, o filósofo austríaco já deixa claro que sua teoria econômica não vai se apoiar em métodos retirados das ciências naturais e nem vai tratar o homem como produto de alguma força inumana. 

Filosoficamente, Mises afirma como primeiro princípio evidente da ciência econômica a existência da mente humana, distinta da mente animal pela capacidade de agir conscientemente segundo fins determinados. Todo e qualquer homem é dotado de uma mente individual (pois não há mente coletiva). que torna possível a ação consciente. A mente ou a consciência é inegável. Todos somos conscientes de que somos conscientes.

A evidência da mente é inegável, pois a tentativa de negar a consciência é ela mesma uma ação consciente. Nenhuma teoria que nega a existência da mente faz qualquer sentido a não ser para uma mente humana. A negação da mente seria uma contradição performativa, ou seja, a tese enunciada nega a possibilidade de enunciação da própria tese. Só é possível enunciar a tese de que não há mente se houver uma mente na realidade que a enuncia.

A mente seria, assim, o primeiro princípio epistemológico, dado que o conhecimento só faz sentido para uma consciência. Como apontaram Agostinho, Descartes e Berkeley, cada um a seu modo, a existência da mente é inegável. Mesmo que quiséssemos duvidar de sua existência, já a estaríamos confirmando no ato mental de duvidar. Só duvida quem possui mente.

Esse primeiro princípio praxeológico é sumamente importante pelo fato de eliminar de início qualquer tentação materialista comum nas ciências econômicas que se inspiram nas ciências naturais. Se somos mentes que agem conscientemente para atingir certos fins desejados, nenhuma lei física, nenhuma física social, como queria o positivismo de Auguste Comte, será jamais possível. O conhecimento do homem tem como seu primeiro princípio o reconhecimento da mente que age segundo fins deliberadamente escolhidos e não por leis físicas ou históricas.

Retornando à exposição de Mises, se o homem é caracterizado pela ação, então o mundo externo no qual ele age é também pressuposto. A sua existência se manifesta na resistência que ele oferece aos anseios humanos e isso torna evidente a nossa limitação. E se o homem age segundo fins, há aí teleologia. A ação humana é fundamentalmente teleológica, dirige-se conscientemente a fins. Por essa razão, o comportamento dos seres humanos não pode ser reduzido à causalidade cega típica das ciências naturais, embora a ação implique em causalidade consciente.

Ora, se a característica essencial do homem é agir segundo objetivos determinados, então juízos de valor são necessários. Não se escolhe um objetivo sem uma avaliação qualitativa. Os objetivos e os valores estão completamente fora das capacidades epistêmicas das ciências naturais. A física não pode tratar de propósito ou de ação consciente. O panfisicalismo é absurdo porque se eliminarmos toda referência a valores torna-se impossível explicar qualquer comportamento humano que transcenda a mera fisiologia.

Mises defende que o conhecimento de que há a ação humana é um princípio apriorístico. Resta saber a definição de um princípio a priori. O economista austríaco define como a priori com duas características: 1) A proposição cuja negação seja impensável pela mente humana; 2) A proposição que esteja necessariamente implicada em nossa abordagem mental de qualquer problema. Tais princípios não podem ser refutados como as proposições a posteriori justamente porque eles constituem o instrumento pelo qual conhecemos o mundo.

A possibilidade de ação no mundo está ancorada no princípio apriorístico do nexo entre causa e efeito. Um mundo desordenado não seria inteligível e não teria a regularidade necessária à ação. Sem o princípio a priori da causalidade não seriam possíveis o pensamento e a ação humanas. A experiência consiste na consciência da presença ou da ausência da identidade naquilo que é experienciado. Toda noção de classe de coisas estaria obliterada se não houvesse regularidade.

O outro aspecto da questão é o fato de que o raciocínio é sempre dedutivo, sendo difícil a justificação de conclusões que não estejam rigorosamente contidas nas premissas, como é o caso da indução. Então, para que seja permitido inferir o futuro a partir do passado é necessário supor a regularidade natural. E mesmo uma abordagem probabilística dos eventos naturais se baseia na regularidade. 

Todavia, as estatísticas sobre o comportamento humano não podem ter a mesma estabilidade daquelas determinadas a partir de fenômenos naturais. Os seres humanos agem segundo objetivos e juízos de valor que podem mudar no tempo. A fim de superar essa dificuldade, o materialismo tenta explicar todas as mudanças no mundo a partir daquilo que é acessível aos métodos das ciências naturais. Desse modo, mesmo os valores e as ideias humanas seriam o produto de eventos externos que determinam as reações humanas.

O materialismo permanece um programa a ser realizado, pois mesmo os materialistas admitem que o conhecimento atual da ciência ainda é insuficiente para explicar todo o comportamento humano a partir de fenômenos naturais cegos. Como não é possível discutir com uma promessa, Mises se limita a indicar as inconsistências e as consequências dessa filosofia.

Se tudo é determinado materialisticamente, então não há o verdadeiro ou o falso. Tudo é do modo como a matéria determina, não havendo como acertar ou errar nada. Nem é permitido ao materialista usar o critério pragmático daquilo que é útil e daquilo que é inútil uma vez que utilidade é um juízo mental acerca da adequação dos meios aos fins. Segundo o próprio materialista, a natureza não comporta teleologia. O objetivo último do materialismo é substituir a teleologia da mente pela causalidade mecânica das forças cegas da natureza. 

É interessante notar que Mises usa aqui um argumento semelhante ao do físico britânico Arthur Eddington em sua lecture de 1929 intitulada Science and the Unseen World. Imagine-se que cada pensamento é determinado por uma configuração específica de átomos. Quando o professor pergunta ao aluno qual é o resultado de 7 vezes 9 e o aluno responde 65, a sua resposta é o resultado de uma cadeia inexorável de movimento dos átomos. Por que ainda dizemos que o aluno errou? 

Não é possível falar em erro se o pensamento é rigidamente determinado pelas leis inexoráveis que governam as configurações dos átomos. A resposta é o resultado de leis naturais que, por definição, não podem ser certas ou erradas. Elas são o que são. Mas, mesmo assim, consideramos a resposta do aluno errada. A razão é que julgamos a multiplicação não por supostas leis materiais e sim pelos liames lógico-formais necessários que implicam uma e só conclusão para as premissas dadas. 

O acerto ou o erro é determinado pelas leis formais da matemática e não pelas consequências supostamente inevitáveis de certas leis físicas. Não há resposta correta ou incorreta se a conclusão a que chegamos é o resultado inevitável de leis naturais que determinam nossos pensamentos e nossos raciocínios. Qualquer que seja a resposta, não se pode discutir com uma lei natural.

Mises afirma adiante que os mesmos problemas enfrenta a doutrina materialista mais famosa e mais influente de nosso tempo: o marxismo. O materialismo dialético afirma que todas as mudanças sociais e ideológicas são produzidas pelas "forças materiais produtivas". Embora Marx não as defina claramente, diz Mises, é possível inferir que se tratasse dos instrumentos, máquinas e outros artefatos utilizados pelo homem em sua atividade produtiva. 

As forças materiais produtivas determinam, a despeito da vontade dos homens, relações de produção e sua superestrutura ideológica, isto é, a religião, as artes, as ideias filosóficas, a política e a justiça. Os homens enganam-se achando que pensam de forma independente quando a verdade é que suas ideias, volições e ações são produzidas pelas relações de produção de uma dada época. E tais relações determinam as mudanças sociais que, no fim, conduzirão ao socialismo com a inexorabilidade de uma lei natural.

Segundo Mises, a absurdidade de atribuir às forças produtivas uma direção teleológica fez com que Marx admitisse no Capital que as massas proletárias, progressivamente empobrecidas no capitalismo, veriam no socialismo um sistema mais satisfatório. Como todo materialista, Marx não poderia distinguir epistemologicamente o erro do acerto. Todas as teses são produto das determinações materiais. 

A fim de escapar dessa consequência lógica do materialismo, Marx recorreu à filosofia da História que revelou a ele o seu curso inexorável. A História se move na direção do socialismo. Obviamente, não importam as ideias ou os desejos daqueles que não conhecem ou não aceitam essa profecia. Os homens serão divididos entre os "bons", aqueles que conhecem e agem de acordo com a lei histórica, e os "maus", os que não possuem o mesmo saber dos "bons". Os "maus" não poderão ser convencidos por argumentos e por persuasão. A única forma de lidar com a divergência será eliminar os homens "maus". O materialismo resulta em tirania, conclui Mises. 

Não é coincidência que Auguste Comte, outro "profeta" do sentido da História e da centralização do poder, manifestasse aberto desprezo pela liberdade de consciência, obstáculo a seu plano de organização científica da sociedade, como assinalou Friedrich Hayek em seu The Counter-Revolution of Science. Também Karl Popper, em seu The Poverty of Historicism, mostrou que a planificação da sociedade por meio da centralização do poder inevitavelmente só pode ser implementada pelo uso da força bruta e pela remoção dos recalcitrantes.

A violência contra os adversários e a repressão do livre pensamento não são males acidentais da planificação forçada da sociedade. Ao contrário, são consequências lógicas necessárias da própria ideia de reconstrução da sociedade a partir de um plano. Como diz Mises, a epistemologia fornece uma pista para a compreensão de nosso tempo.

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Leia também: 

Νεκρομαντεῖον: Ludwig von Mises (oleniski.blogspot.com)

* Para uma crítica mais detalhada do materialismo marxista, consultar Theory and History e o monumental Socialism, ambos livros de Ludwig von Mises. 

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá, Rogério. Tudo bem?

Gosto muito do seu blog. Qual seria o meio mais propício para lhe contatar? E-mail? Gostaria muito de saber sua opinião sobre certas questões. Abraço!

Augusto

R. Oleniski disse...

Olá, Augusto. Tudo bem por aqui. E com você? Fico feliz que goste do blog. Para me contatar, o meio mais fácil é o Instagram: @r.oleniski Abraços!