terça-feira, 22 de setembro de 2020

Luke Skywalker e o simbolismo iniciático do herói - parte 2 - A Confirmação


"You've taken your first step into a larger world"

OBI WAN KENOBI

Luke Skywalker deve partir de Tatooine para cumprir o seu chamado. O seu primeiro vislumbre do amplo horizonte no qual adentra é a famosa taberna de Mos Eisley. A diversidade de espécies e o clima moralmente ambíguo e algo hostil do local mostram a Luke que ele está saindo do mundo protegido de seus tios e entrando na perigosa área cinzenta do mundo das relações adultas. O jovem é inexperiente e ingênuo, e logo é alvo da maldade gratuita de dois bandidos.

Mentor, Obi Wan Kenobi, intervém a fim de preservar a integridade física de seu aprendiz. Apela primeiro à dissuasão e, quando esta não surte efeito e a tensão precede a agressão, o mestre elimina o perigo matando os dois bandidos em uma habilidosa sequência de golpes de seu sabre de luz. O episódio deve ser entendido como o segundo aspecto da manifestação do caráter sacerdotal e guerreiro de Obi Wan.

Pouco antes, o mestre Jedi e seu aprendiz foram parados por uma patrulha de stormtroopers do Império que buscavam R2D2 e C3PO, os dois androides e emissários da princesa Leia. Obi Wan consegue facilmente desvencilhar-se dos soldados usando seu poder mental sobre eles. É o aspecto mágico do sacerdote-guerreiro. O homem sagrado adquire controle sobre certas áreas da realidade e sobre certos tipos de homens. Para Luke, essa é a primeira manifestação de um poder transcendente ao qual seu mestre tem acesso: a Força.

Na taberna, Obi Wan contrata a dupla de contrabandistas Han Solo e Chewbacca para levar os dois a Alderaan, onde devem entregar a mensagem da princesa Leia. Na Millenium Falcon, Luke inicia seu treinamento jedi no manejo do sabre de luz. O aprendiz fracassa e Obi Wan sugere que ele tente se defender sem usar os olhos, que abandone seu eu consciente e haja por instinto. Luke, então, consegue defender todos os ataques.

O eu consciente vive a partir das dualidades e das preferências. A visão representa o mundo das formas e da discriminação. Abandonar a visão representa simbolicamente o abandono das distinções e das oposições. A ação de Luke nasce, agora, não da discriminação, mas sim da escuridão que nada distingue porque a tudo abarca em uma unidade subjacente. O indiscriminado dá origem à ação perfeita no mundo do discriminado. Não há eu, nem a espada e nem o adversário. Luke começa a conhecer os caminhos da Força. Esta representa o Absoluto, a realidade que subjaz a tudo e que, portanto, une em si mesma como possibilidades os contrários do bem e do mal.

O mal é representado pelo Império Galáctico, cuja estrutura apresenta a união de duas correntes aparentemente inconciliáveis: uma corrente mágico-religiosa e uma corrente materialista-tecnológica. A primeira é personificada por Darth Vader, o sacerdote-guerreiro que optou pelo lado sombrio da realidade e que traiu a Ordem Jedi em nome dos desejos egoicos de poder e de ordem imposta pela violência externa. Acima de Vader, que simboliza a figura do aprendiz falhado, está o Imperador Palpatine, o mago negro.

A outra corrente é representada pelo cruel Grand Moff Tarkin, comandante militar da Armada Imperial e responsável pela construção da Estrela da Morte. Não obstante, o poder bélico não é mais do que o braço armado de uma dimensão mais sombria, a religião antiga professada por Vader. Os militares não a compreendem e a desprezam, pondo toda a sua fé no terror tecnológico da Estrela da Morte. O Lorde Sith demonstra seu poder enforcando à distância um dos oficiais que teve a ousadia de menosprezar a sua "triste devoção" à Força, chamando-o de "feiticeiro".

O episódio é simbólico e demonstra que o horizonte de Vader, embora pervertido, é mais vasto do que o de seus subordinados. A opressão visível e militarizada esconde a ação de forças invisíveis, muito mais sombrias e sinistras. A ditadura recebe seu fundamento de uma sociedade secreta, os Sith, que servem ao lado escuro da realidade. 

Buscando alcançar Aldeeran, Obi Wan e Luke Skywalker são conduzidos, sem que o saibam, à Estrela da Morte, a fortaleza oculta nos céus na qual se encontra cativa a princesa. Mais uma vez, os acontecimentos se desenrolam a despeito dos planos do herói. Descobrindo por acaso que a princesa está na estação espacial, Luke e seus amigos partem para o resgate de Leia, enquanto Obi Wan, conduzido pelo destino, confronta seu antigo aprendiz, Darth Vader. 

O círculo está completo. Acontece finalmente o duelo entre o mago branco e o discípulo caído. Há uma dualidade nesse confronto que expressa as possibilidades do Caminho. Obi Wan simboliza a vitória sobre os instintos e as tendências malévolas e egoístas do ser humano, enquanto Darth Vader simboliza o fracasso do homem em vencer esses aspectos obscuros de sua natureza. O mestre também está em julgamento, pois guiar o aprendiz no Caminho era a sua responsabilidade primária. 

Obi Wan sabe que falhou na missão de formar seu discípulo e agora enfrenta as consequências de seus próprios erros. O seu objetivo não é vencer o duelo, mas sim conter o mal e abrir caminho para a Nova Esperança. Abandonando os desejos egoístas, o Jedi escolhe o autossacrifício a fim de que Luke possa escapar e realizar seu destino. Obi Wan adverte Darth Vader de que se ele o matar, seu antigo mestre ficará mais poderoso do que jamais poderia imaginar. A luta com Vader possui traços iniciáticos, pois a morte de Obi Wan causa uma mudança de seu estatuto ontológico. O Jedi morre para este mundo e renasce em outro mais vasto e mais fundamental.

Nesse ínterim, Luke e seus companheiros conseguem escapar da Estrela da Morte. A libertação de Leia retoma o tema tradicional da princesa aprisionada na fortaleza e guardiã do tesouro que é resgatada pelo herói. O segredo da destruição da Estrela da Morte está agora nas mãos da aliança rebelde e um ataque é logo lançado para explorar a fraqueza da estação espacial. Luke Skywalker receberá a confirmação de seu chamado no assédio à fortaleza imperial.

O desafio à frente de Luke é singularmente difícil, quase impossível de ser vencido: um tiro certeiro em um alvo diminuto. Um a um os pilotos rebeldes fracassam e a esperança acaba repousando sobre aquele piloto interiorano, inexperiente e sem nenhuma tradição guerreira. O desafio irrealizável, contudo, é um aspecto central da mitologia do herói. Hércules realizou doze trabalhos, Jasão roubou o velocino de ouro, Teseu enfrentou o minotauro, Perseu matou a medusa, e assim por diante. 

Mas o desafio não necessita sempre ser uma proeza física ou guerreira e pode ter o aspecto de uma demonstração ímpar de habilidade. No épico indiano Mahabharata, o príncipe pândava Arjuna, durante seu treinamento de arquearia, é instado por seu mestre Drona a acertar com uma só flechada a cabeça de um pássaro de madeira postado no topo de uma árvore. Drona questiona os irmãos de Arjuna sobre o que estavam vendo enquanto miravam a cabeça da ave. Todos responderam que viam o mestre, a árvore, os colegas e o pássaro. Arjuna foi o único que respondeu que via somente a cabeça do pássaro, e, por isso, acertou o alvo. Mais adiante, em outro episódio, Arjuna é desafiado a acertar o olho de um peixe de ouro colocado no alto de um poste mirando-o indiretamente em uma bacia d'água.

Talvez a mais conhecida cena de reconhecimento do príncipe seja a do desafio do arco de Odisseu (Ulisses) no canto XXI da Odisséia. Disfarçado como um idoso, Odisseu chega sem ser reconhecido em seu palácio real em Ítaca, onde os arrogantes pretendentes de Penélope abusam da lei da hospitalidade. Uma competição é organizada para escolher o novo esposo de Penélope: armar o arco do rei Odisseu e disparar uma seta atravessando os orifícios de doze machados alinhados. Os pretendentes falham e somente o rei, ainda disfarçado, realiza a façanha. O desafio vencido por Odisseu revela a sua verdadeira identidade e segue-se o massacre dos pretendentes.

Analogamente, Luke Skywalker é o príncipe ainda desconhecido diante do desafio que confirmará o seu chamado. Exteriormente, ele não aparenta sua nobreza e seu valor. Mas ambos ficarão evidentes no momento em que obtiver êxito na prova de habilidade. Os outros pilotos falham e só resta Luke. A voz de seu mestre Obi Wan ressoa em sua mente exortando-o a abandonar os meios tecnológicos externos e a confiar na Força. Sua ação deve provir justamente da fonte originária de tudo, anterior a qualquer impulso egoico fruto de avaliações enviesadas pelo desejo ou pelo medo. Contra todas as probabilidades e a despeito de todas as avaliações humanas, Luke dispara e acerta o alvo impossível. A fortaleza imperial é destruída. 

O desafio é vencido pelo herói. O chamado do Caminho é confirmado. As qualidades de Luke Skywalker são reconhecidas pela nobreza representada pela princesa Leia. O momento é de júbilo e de felicidade. A Via, contudo, está só no início. Em breve, o herói terá de realizar a descida ao Hades. 
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Leia também a primeira parte dessa análise:

Luke Skywalker e o simbolismo iniciático do herói - parte 1 - O Chamado:

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Mircea Eliade na Índia

"Eu descobri essa dimensão muito ignorada pelos orientalistas, descobri que a Índia conheceu certas técnicas psicofisiológicas graças às quais o homem pode a um só tempo fruir a vida e a dominar. A vida pode ser transfigurada por uma experiência sacramental."(tradução minha)

MIRCEA ELIADE, L'Épreuve du labirinthe, p. 68

No primeiro volume de sua autobiografia, Mircea Eliade conta que jamais esquecera daquela tarde de maio de 1928 quando, em uma biblioteca de Roma, enquanto pesquisava para a sua tese sobre filosofia renascentista (hermetismo, ocultismo e alquimia, entre outras coisas), encontrou por acaso o primeiro tomo do clássico History of Indian Philosophy, do scholar indiano Surendranath Dasgupta.

No prefácio do livro, Eliade encontrou o agradecimento de Dasgupta ao Maharaja Mahindra Chandra Nandry, que havia financiado tanto seus estudos em Cambridge por seis anos quanto a publicação de seu livro pela Cambridge University Press. O jovem Eliade copiou o nome do Maharaja e enviou uma carta a ele contando sobre seu interesse em filosofia indiana e sobre seu desejo de estudar por dois anos com Dasgupta em Calcutá. Três meses depois, para a surpresa de Eliade, chega a carta do Maharaja respondendo que dois anos seriam insuficientes para um estudo sério da filosofia indiana e que ele financiaria cinco anos de estudo com Dasgupta na Índia!

Mircea Eliade chegou em Calcutá para estudar com Surendranath Dasgupta sem saber sânscrito ou bengalês. Dasgupta passou a ministrar suas aulas em inglês só para ajudar Eliade enquanto este lutava para dominar o sânscrito. Solicitude de professor. O romeno morou inicialmente em uma pensão para estrangeiros, mas posteriormente mudou-se para a própria casa de Dasgupta, em Calcutá, a fim de estudar com mais comodidade. Contudo, algum tempo depois, ele e a filha de Dasgupta, Maitreyi, se apaixonaram. O professor descobriu o namorico e expulsou o aluno estrangeiro de sua casa.

Eliade, em vez de retornar à Europa, partiu em busca de um ashram no Himalaya para praticar Yoga. Como era a época dos dias sagrados de Pūjā, o romeno se banhou cerimonialmente no Ganges e depositou pétalas de rosa no templo da deusa Lakṣmī, causando grande curiosidade e espanto nos fiéis presentes. Instalou-se, por fim, no Svarga Ashram, onde foi recebido por Swami Shivananda. Para permanecer no ashram, Eliade teria de abandonar suas roupas européias, adotar como vestimenta um manto branco ou amarelo, andar de sandálias e praticar o vegetarianismo. Sob a orientação de Shivananda, realizou muitas das práticas que havia aprendido teoricamente com Dasgupta, grande estudioso da Yoga.

É interessante notar que Eliade confessa que chegara ao ashram na pior das condições psicológicas, abalado pela ruptura brusca com Dasgupta e pela separação de Maitreyi, com quem pensou seriamente em se casar. Considerava que a “Índia histórica”, representada por Dasgupta, estava perdida para ele e que agora abria-se o horizonte da “Índia eterna”, a Índia dos saddhus e yogues. O resultado imediato da prática da Yoga foi o restabelecimento de seu equilíbrio mental e a certeza de que aqueles exercícios espirituais estavam plenos de conhecimento profundo e verdadeiro da condição humana.

“Próximo do Natal, eu era um homem ‘mudado’. Não tentarei aqui repetir os passos dessa transformação interior. O que pode ser dito acerca dos resultados de vários exercícios preliminares, eu descrevi tão precisamente quanto possível em minhas obras sobre Yoga. Os outros exercícios e experiências devem passar em silêncio, pois estou obrigado a permanecer fiel à tradição indiana que prevê somente comunicar os segredos de iniciação do guru ao discípulo. Ademais, duvido que eu deva ser capaz de descrever exatamente — isto é, em linguagem científica — certas experiências. O único modo de expressão aproximadamente exato seria uma nova linguagem poética, e eu nunca tive esse dom.”(tradução minha)

Swami Shivananda, impressionado com o progresso de seu pupilo, profetizou um futuro brilhante para o romeno no qual ele seria um novo Vivekananda. A comparação desagradou Eliade que, a despeito da admiração por Ramakrishna, considerava os escritos de Vivekananda suaves e moralistas, obras de popularização de conteúdo híbrido e não-indiano. Ademais, não desejava ser portador de qualquer missão ou mensagem. Queria mergulhar, tanto quanto fosse possível, nos segredos da contemplação indiana. Mas as coisas não aconteceram do modo como ele esperava.

Jenny, uma violoncelista sulafricana que estava em busca “do Absoluto” na Índia, chegara ao ashram na véspera do Natal, e logo ela e Eliade tornaram-se amigos. A moça estava interessada nas doutrinas do Vedanta e insistia para que o romeno desse a ela lições sobre o tema na ausência de seu guru, Swami Shivananda. Ocorre que Eliade não se interessava pelo Vedanta e sim pela Yoga e pelo Tantrismo e, nas visitas constantes à habitação de Jenny, mais e mais o assunto girava em torno de práticas tântricas. As coisas começaram a se tornar estranhas quando, um dia, Eliade esqueceu de visitar Jenny como havia prometido e isso resultou em uma recriminação indignada da moça regada com muitas lágrimas. Tentando contornar a situação, ele prometeu à Jenny que a visitaria ainda naquele dia.

Naquela tarde de fevereiro, Eliade se dirigiu à casa onde Jenny morava às margens do Ganges para cumprir sua promessa de poucas horas atrás. Pequenos eventos sem nenhum grande significado aparente podem mudar a vida de alguém de uma hora para outra e a decisão de fazer aquela visita mudaria para sempre a vida de Eliade na Índia, como ele mesmo admite. Ao entrar na casa da moça, ele logo notou que a atmosfera havia mudado, pois Jenny usava batom e vestia um sari de seda transparente. Sua expressão em nada se assemelhava à moça tímida, carente e ofendida que o recriminara. Seja lá o que for que tenha acontecido, aquela Jenny inspirava temor em Eliade, e ele sentia que, qualquer que fosse a sua atitude, jamais retomaria a serenidade e a plenitude conquistadas com tanto esforço nos últimos cinco meses.

Jenny perguntou a Eliade se ele já havia visto uma nayika de carne e osso, a parceira consagrada de certas cerimônias tântricas. O romeno respondeu que não havia sido iniciado e, por isso, não poderia participar de tais ritos. nem ambos poderiam ser iniciados sem um guru. Jenny insistiu para que procurassem juntos um guru que os iniciasse e que, até que o encontrassem, eles podiam realizar alguns ritos preliminares dos quais Eliade havia falado em suas visitas. Eram ritos perigosos, mas não havia como escapar. Eliade não diz quais práticas eram essas, mas assegura que elas tiveram enorme efeito benéfico em sua constituição física. Todas as noites, após à meia-noite até uma hora antes do raiar do dia, o romeno passava na casa de Jenny.

Em uma manhã de março, quando retornava à sua habitação, Eliade foi advertido por um asceta Naga acerca dos perigos que aquelas práticas representavam. “As pessoas hoje são impuras e fracas”, disse o homem santo. Era necessário abandonar aquela via. Aos poucos ficava claro a Eliade que ele havia sido enganado pelas ilusões de Māyā. Seu engano foi crer que poderia se unir a Jenny de modo “mágico”, em uma forma lúcida e desapegada que só um iniciado pode realizar. Segundo ele, havia se deixado enredar em um jogo “mágico” sem sentido.

Não havia mais condições de continuar no ashram. Eliade despediu-se de Jenny (que caiu em lágrimas) vestiu suas roupas européias (pela primeira vez em seis meses) e tomou o trem para Delhi. Eliade percebera seu erro essencial: renunciar ao mundo antes do devido tempo. Sua vocação não era a renúncia ou a santidade, mas a vida cultural em sua terra natal, a Romênia. Compreendeu que não podia renunciar ao mundo sem antes cumprir seu dever de explorar todas as suas potencialidades criativas.

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