"Eu descobri essa dimensão muito ignorada pelos orientalistas, descobri que a Índia conheceu certas técnicas psicofisiológicas graças às quais o homem pode a um só tempo fruir a vida e a dominar. A vida pode ser transfigurada por uma experiência sacramental."(tradução minha)
MIRCEA ELIADE, L'Épreuve du labirinthe, p. 68
No primeiro volume de sua autobiografia, Mircea Eliade conta que jamais esquecera daquela tarde de maio de 1928 quando, em uma biblioteca de Roma, enquanto pesquisava para a sua tese sobre filosofia renascentista (hermetismo, ocultismo e alquimia, entre outras coisas), encontrou por acaso o primeiro tomo do clássico History of Indian Philosophy, do scholar indiano Surendranath Dasgupta.
No prefácio do livro, Eliade encontrou o agradecimento de Dasgupta ao Maharaja Mahindra Chandra Nandry, que havia financiado tanto seus estudos em Cambridge por seis anos quanto a publicação de seu livro pela Cambridge University Press. O jovem Eliade copiou o nome do Maharaja e enviou uma carta a ele contando sobre seu interesse em filosofia indiana e sobre seu desejo de estudar por dois anos com Dasgupta em Calcutá. Três meses depois, para a surpresa de Eliade, chega a carta do Maharaja respondendo que dois anos seriam insuficientes para um estudo sério da filosofia indiana e que ele financiaria cinco anos de estudo com Dasgupta na Índia!
Mircea Eliade chegou em Calcutá para estudar com Surendranath Dasgupta sem saber sânscrito ou bengalês. Dasgupta passou a ministrar suas aulas em inglês só para ajudar Eliade enquanto este lutava para dominar o sânscrito. Solicitude de professor. O romeno morou inicialmente em uma pensão para estrangeiros, mas posteriormente mudou-se para a própria casa de Dasgupta, em Calcutá, a fim de estudar com mais comodidade. Contudo, algum tempo depois, ele e a filha de Dasgupta, Maitreyi, se apaixonaram. O professor descobriu o namorico e expulsou o aluno estrangeiro de sua casa.
Eliade, em vez de retornar à Europa, partiu em busca de um ashram no Himalaya para praticar Yoga. Como era a época dos dias sagrados de Pūjā, o romeno se banhou cerimonialmente no Ganges e depositou pétalas de rosa no templo da deusa Lakṣmī, causando grande curiosidade e espanto nos fiéis presentes. Instalou-se, por fim, no Svarga Ashram, onde foi recebido por Swami Shivananda. Para permanecer no ashram, Eliade teria de abandonar suas roupas européias, adotar como vestimenta um manto branco ou amarelo, andar de sandálias e praticar o vegetarianismo. Sob a orientação de Shivananda, realizou muitas das práticas que havia aprendido teoricamente com Dasgupta, grande estudioso da Yoga.
É interessante notar que Eliade confessa que chegara ao ashram na pior das condições psicológicas, abalado pela ruptura brusca com Dasgupta e pela separação de Maitreyi, com quem pensou seriamente em se casar. Considerava que a “Índia histórica”, representada por Dasgupta, estava perdida para ele e que agora abria-se o horizonte da “Índia eterna”, a Índia dos saddhus e yogues. O resultado imediato da prática da Yoga foi o restabelecimento de seu equilíbrio mental e a certeza de que aqueles exercícios espirituais estavam plenos de conhecimento profundo e verdadeiro da condição humana.
“Próximo do Natal, eu era um homem ‘mudado’. Não tentarei aqui repetir os passos dessa transformação interior. O que pode ser dito acerca dos resultados de vários exercícios preliminares, eu descrevi tão precisamente quanto possível em minhas obras sobre Yoga. Os outros exercícios e experiências devem passar em silêncio, pois estou obrigado a permanecer fiel à tradição indiana que prevê somente comunicar os segredos de iniciação do guru ao discípulo. Ademais, duvido que eu deva ser capaz de descrever exatamente — isto é, em linguagem científica — certas experiências. O único modo de expressão aproximadamente exato seria uma nova linguagem poética, e eu nunca tive esse dom.”(tradução minha)
Swami Shivananda, impressionado com o progresso de seu pupilo, profetizou um futuro brilhante para o romeno no qual ele seria um novo Vivekananda. A comparação desagradou Eliade que, a despeito da admiração por Ramakrishna, considerava os escritos de Vivekananda suaves e moralistas, obras de popularização de conteúdo híbrido e não-indiano. Ademais, não desejava ser portador de qualquer missão ou mensagem. Queria mergulhar, tanto quanto fosse possível, nos segredos da contemplação indiana. Mas as coisas não aconteceram do modo como ele esperava.
Jenny, uma violoncelista sulafricana que estava em busca “do Absoluto” na Índia, chegara ao ashram na véspera do Natal, e logo ela e Eliade tornaram-se amigos. A moça estava interessada nas doutrinas do Vedanta e insistia para que o romeno desse a ela lições sobre o tema na ausência de seu guru, Swami Shivananda. Ocorre que Eliade não se interessava pelo Vedanta e sim pela Yoga e pelo Tantrismo e, nas visitas constantes à habitação de Jenny, mais e mais o assunto girava em torno de práticas tântricas. As coisas começaram a se tornar estranhas quando, um dia, Eliade esqueceu de visitar Jenny como havia prometido e isso resultou em uma recriminação indignada da moça regada com muitas lágrimas. Tentando contornar a situação, ele prometeu à Jenny que a visitaria ainda naquele dia.
Naquela tarde de fevereiro, Eliade se dirigiu à casa onde Jenny morava às margens do Ganges para cumprir sua promessa de poucas horas atrás. Pequenos eventos sem nenhum grande significado aparente podem mudar a vida de alguém de uma hora para outra e a decisão de fazer aquela visita mudaria para sempre a vida de Eliade na Índia, como ele mesmo admite. Ao entrar na casa da moça, ele logo notou que a atmosfera havia mudado, pois Jenny usava batom e vestia um sari de seda transparente. Sua expressão em nada se assemelhava à moça tímida, carente e ofendida que o recriminara. Seja lá o que for que tenha acontecido, aquela Jenny inspirava temor em Eliade, e ele sentia que, qualquer que fosse a sua atitude, jamais retomaria a serenidade e a plenitude conquistadas com tanto esforço nos últimos cinco meses.
Jenny perguntou a Eliade se ele já havia visto uma nayika de carne e osso, a parceira consagrada de certas cerimônias tântricas. O romeno respondeu que não havia sido iniciado e, por isso, não poderia participar de tais ritos. nem ambos poderiam ser iniciados sem um guru. Jenny insistiu para que procurassem juntos um guru que os iniciasse e que, até que o encontrassem, eles podiam realizar alguns ritos preliminares dos quais Eliade havia falado em suas visitas. Eram ritos perigosos, mas não havia como escapar. Eliade não diz quais práticas eram essas, mas assegura que elas tiveram enorme efeito benéfico em sua constituição física. Todas as noites, após à meia-noite até uma hora antes do raiar do dia, o romeno passava na casa de Jenny.
Em uma manhã de março, quando retornava à sua habitação, Eliade foi advertido por um asceta Naga acerca dos perigos que aquelas práticas representavam. “As pessoas hoje são impuras e fracas”, disse o homem santo. Era necessário abandonar aquela via. Aos poucos ficava claro a Eliade que ele havia sido enganado pelas ilusões de Māyā. Seu engano foi crer que poderia se unir a Jenny de modo “mágico”, em uma forma lúcida e desapegada que só um iniciado pode realizar. Segundo ele, havia se deixado enredar em um jogo “mágico” sem sentido.
Não havia mais condições de continuar no ashram. Eliade despediu-se de Jenny (que caiu em lágrimas) vestiu suas roupas européias (pela primeira vez em seis meses) e tomou o trem para Delhi. Eliade percebera seu erro essencial: renunciar ao mundo antes do devido tempo. Sua vocação não era a renúncia ou a santidade, mas a vida cultural em sua terra natal, a Romênia. Compreendeu que não podia renunciar ao mundo sem antes cumprir seu dever de explorar todas as suas potencialidades criativas.
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