O caráter mais essencial de nossa existência contingente é o fato de que devemos nossa própria existência a outrem, isto é, ao contrário de Deus, não existimos desde sempre e para sempre e não temos em nós mesmos a razão de nossa existência. Não existíamos e passamos a existir e, um dia, não existiremos mais.
Em razão disso, nossa constituição física e psíquica é fruto da combinação de caracteres de nossos ancestrais e parte considerável do que somos está fora completamente de nossa escolha. O que herdamos nos constitui, torna-nos o que somos, mas tudo o que é algo determinado só pode sê-lo na medida em que exibe limites, constrangimentos que definem a coisa no ato mesmo em que restringem todas as outras possibilidades de ser. Não posso ser qualquer outra coisa, somente eu mesmo.
Esse ser que eu sou também exibe um conjunto de possibilidades que pode ou não realizar-se, variando em grau de acordo com as oportunidades externas e as decisões que eventualmente tomo. Nesse cenário, as decisões que nossos ancestrais tomaram também restringem nosso horizonte de possibilidades assim como o expande em outras direções. Em certo sentido, como diriam os gregos antigos, todos estão submetidos à Moira, o lote que lhe cabe no mundo.
Acontece que, aparentemente, o lote de alguns é mais favorável do que o de outros. Não é preciso pensar muito para identificar terríveis circunstâncias herdadas às quais inúmeras pessoas estão submetidas e que fazem o homem questionar a justiça e mesmo o valor da própria existência. Entre as mais comuns fontes de sofrimento, estão as escolhas feitas por nossos pais.
Obviamente, essas escolhas são inevitáveis, pois as crianças não são capazes de um julgamento responsável acerca da maioria das circunstâncias de sua ainda inexperiente vida. Igualmente óbvio é o fato de que as decisões dos pais podem prejudicar os filhos grandemente, ainda que tomadas na mais pura intenção de realizar o certo e o melhor para seus rebentos. No pior dos casos, tais decisões são tomadas por razões sinistras que destroem as vidas de seus filhos para sempre.
Qual destino pode ser mais inquietante do que ter a sua vida completamente decidida desde antes de seu nascimento, seja pela imprevisibilidade da Roda da Fortuna ou seja pela decisão de seus genitores ou ancestrais? Esse é caso de Hereditary, certamente o melhor filme de horror de 2018, que apresenta os horripilantes acontecimentos que se abatem sobre uma família após à morte da matriarca.
Desde o início do filme, fica clara a ascendência de Ellen Leigh sobre a família de sua filha Annie (a excelente Toni Collette), pois a película começa com o convite para o funeral da idosa. Tudo girará em torno desse evento e das decisões tomadas por Ellen. Em certo sentido, ela é o centro da trama e a influência maligna que decidirá o destino de todos os envolvidos.
Em seu funeral, Annie faz uma estranha eulogia onde declara que a mãe era uma pessoa difícil e reservada. E acrescenta que não conhece a maioria dos presentes à cerimônia, o que atesta o quanto a mãe tinha uma vida que não compartilhava sequer com sua filha. Esse é um ponto central na trama, pois é justamente o afastamento das duas, mãe e filha, que torna possível o desenrolar ordenado e planejado dos eventos.
Annie é miniaturista, uma artista que cria miniaturas perfeitas de situações cotidianas. O afastamento e o controle caracterizam a profissão de Annie e remetem ao papel de sua mãe na vida de todos à sua volta. Annie vê sua própria vida sob a lente de aumento sem a qual seria impossível criar os diminutos cenários que retratam os diversos acontecimentos passados e presentes de sua família. Note-se que a lente de aumento implica afastamento, mas também observação e controle dos mínimos detalhes. As "vidas" dos bonecos que constrói são controladas de fora pela artista Annie.
O que Annie ainda não sabe é que controle sobre os acontecimentos é justamente aquilo que ela não possui, pois tudo está decidido pelos desígnios sinistros de sua mãe. O que se seguirá é a paulatina perda de controle e de liberdade de todos os membros de sua família e o progressivo desvelamento de um plano com raízes sobrenaturais profundas. Há aí duas hereditariedades, no sentido daquilo que outros decidem sobre nós, uma de ordem natural, a ancestralidade, e outra de ordem metafísica, o poder que certos entes têm sobre o homem.
A mesma tendência artística se manifesta em Charlie, sua filha, que desenha e constrói bonecos, embora em ambos os casos, as obras demonstrem alguma excentricidade. Os desenhos são toscos, feios e apresentam todos os retratados em traços que remetem à loucura ou ao sofrimento. Os bonecos são feitos de materiais incomuns e inadequados que parecem ser torturados para adquirirem as formas que lhes são impostas por Charlie.
Aliás, Charlie parece ser ela mesma uma inadequada. A começar por seu nome masculino, a menina apresenta traços de uma personalidade retraída e ensimesmada, impenetrável e incompreensível. Ela gosta de isolamento e teima em dormir em uma casa na árvore a despeito das advertências em contrário de Annie. Tudo isso poderia ser atribuído à adolescência, uma fase de mudanças, de meio termo entre a infância e a vida adulta, em que o jovem parece ainda não estar confortável com o próprio corpo e com seu papel no mundo. Mas há algo muito mais sinistro nessa inadequação e que só será revelado no fim do filme.
No funeral de Ellen, olhares estranhos são dirigidos a Charlie, assim como homenagens pouco usuais são feitas ao corpo da avó que é enterrada com um pingente com um símbolo que mais parece um selo. O interessante é que Annie também usa um pingente idêntico, embora não saiba seu significado. A família, formada também pelo marido de Anne, Steve (o ótimo Gabriel Byrne) e pelo filho mais velho, Peter, retorna ao lar ao fim do funeral.
Obviamente, por mais afastada que estivesse de sua mãe, a morte de um ente próximo é sempre uma situação difícil e Annie tem de lidar com os sentimentos ambíguos que nutre por Ellen em meio ao luto. Ela busca apoio em um grupo comunitário de enlutados e ficamos sabendo do triste histórico da família. Segundo Annie, sua mãe era bipolar e tinha múltiplas personalidades, seu pai morrera deliberadamente por inanição e seu irmão esquizofrênico se suicidara acusando a mãe de lançar sobre ele as vozes que o atormentavam.
Eis outro sentido da hereditariedade, o que herdamos corporal e fisicamente de nossos ancestrais. Não pedimos e nem fizemos nada para merecê-lo, mas recebemos, como em uma loteria cósmica, uma série de características deletérias na forma, por exemplo, de doenças ou predisposições a doenças presentes em nossos pais ou em ancestrais mais remotos. Annie, dado o histórico familiar, pode desconfiar que sua saúde mental e a de seus filhos não sejam as melhores.
A própria Annie apresenta episódios de sonambulismo e, a julgar por algumas passagens no filme, também sofreu um surto não muito tempo atrás. Note-se, contudo, que essas doenças, de Annie e de seus pais e irmão, podem ter outro significado. Alterações radicais de ânimo, múltiplas personalidades, sonambulismo, audição de vozes, depressão são encaradas em certos círculos como manifestações espirituais de influência de forças sobrenaturais. E mais, os dois homens da família morrem em circunstâncias trágicas, o pai em um ato de profunda desesperança com a vida e o outro, o irmão, em um ato de desesperada fuga do que acreditava ser a influência nefasta de sua mãe. Doenças mentais os mataram ou a percepção de realidades insuportavelmente sinistras ligadas à Ellen?
O centro da trama, por enquanto, ainda é Annie e seu luto, mas logo isso mudará e o foco estará na gradativa dissolução de sua própria família. Em certo sentido, há um paralelo entre a tragédia familiar de Ellen e a tragédia familiar de Annie. Ambas serão o vetor da ação demoníaca (a mãe deliberadamente e a filha inconscientemente) e ambas trarão a destruição para os seus, principalmente aos homens.
Charlie tem uma intolerância a amendoim e seu irmão, Peter, ao levá-la a uma festa, deixa-a sem supervisão e a menina come um bolo feito com amendoim. O resultado é um choque anafilático e Peter tenta levá-la a um hospital. No meio do caminho, contudo, com dificuldade de respirar, Charlie coloca a cabeça para fora da janela do carro e é decapitada pelo choque com um poste (que, aparentemente, leva o mesmo selo do pingente de Ellen). O luto que se segue à tragédia expõe e agrava a relação conflitiva que Annie tem com seu filho.
Como era de se esperar, Annie guarda ressentimento contra Peter pela morte de Charlie e o filho sente-se culpado pelo acidente. Graças a um episódio de sonambulismo entremeado por sonhos, o espectador é apresentado a fatos como a tentativa de aborto de Peter, que não aconteceu graças à intervenção de Ellen. Mais ainda, em certo momento do filme, Annie conta que, sonâmbula, havia encharcado seus dois filhos com uma substância inflamável e que estava prestes a incendiá-los com um fósforo aceso quando subitamente despertara de seu torpor. Mais uma vez, a sanidade de Annie pode ser posta em questão ou há aí algum estranho significado oculto?
Steven, o marido e a pessoa mais equilibrada da família, nota a piora no comportamento da esposa e teme que ela esteja próxima de sofrer em algum surto. Com a finalidade de não perturbá-la ainda mais, ele não conta à Annie que recebeu uma ligação da funerária dando conta de uma profanação do túmulo de Ellen. Haverá consequências disso em breve.
Annie, em uma tentativa de retornar ao grupo de apoio de enlutados, é abordada por Joan, uma mulher que alega haver perdido seu neto em um acidente há pouco tempo. Após uma inicial resistência de Annie, as duas tornam-se amigas e, um dia, Joan confidencia que uma médium conseguira invocar o espírito de seu neto e que ela a ensinara como realizar o ritual de invocação em casa. Annie se deixa convencer, participa de uma sessão conduzida por Joan e recebe desta uma fórmula em língua desconhecida e as instruções para invocar o espírito de Charlie.
É nesse momento do filme que o drama da dissolução de uma família pela dor da perda violenta de um de seus membros dá lugar ao elemento sobrenatural. Annie primeiramente realiza o ritual sozinha e depois, tendo tido sucesso, exige que Steve e Peter participem de uma sessão. O que se segue é uma manifestação espiritual assustadora que, ao final, parece converter-se em algum tipo de possessão temporária de Annie.
O ponto é que, querendo ou não, Annie havia invocado algo que parecia atender pelo nome de Charlie, mas de cuja natureza real ninguém poderia afirmar nada. Se há um mundo de seres espirituais, nada impede que dentre eles haja alguns que possam assumir as identidades dos entes falecidos invocados pelos vivos. Ademais, Annie confessara desconhecer o idioma da invocação, o que aumenta a possibilidade de que aquilo que foi convidado não era o espírito de Charlie.
Peter, enfraquecido pelo remorso e pela culpa, parece estar sendo perseguido por forças ocultas. Ele vê coisas estranhas, entre elas uma luz azulada que se aproxima dele e desaparece. Durante a aula, ele mal consegue prestar atenção ao que é ensinado pelo professor. Mas, para o espectador, o tema das aulas esclarece muito do que acontece durante o filme todo. O professor discute figuras da mitologia e da tragédia gregas, como Hércules e Ifigênia, personagens que têm em comum um destino sobre o qual não tinham responsabilidade direta.
Ifigênia foi sacrificada em Áulis pelo próprio pai, Agamemnon, por exigência de Ártemis, porque ele havia ofendido a deusa ao matar um cervo sagrado. O significado é claro: uma filha morre pelas mãos do pai por exigência de uma potência sobre-humana. Aqui fica claro também que o centro da trama de hereditariedade não era Charlie, mas sim Peter. Ele é a Ifigênia que deverá ser sacrificada por exigência de um deus. E Annie pode ter selado o pacto naquele ritual em língua estranha que ela realizou buscando invocar a filha defunta.
Annie desconfia que pode ter trazido algo sobrenatural naquela séance e decide ir atrás de Joan. Ela não consegue encontrá-la, mas o espectador testemunha que na casa da mulher há um altar com o símbolo estranho do pingente de Ellen assim como uma espécie de trabalho de bruxaria contendo a foto de Peter e vários dos bonecos feitos por Charlie. Além disso, na porta estava um capacho bordado idêntico aos que sua mãe fazia.
Annie volta para casa e revira os pertences da mãe, os quais permaneciam até então intocados em caixas. Lá ela encontra fotos de Ellen com Joan e livros de invocação demoníaca com o estranho símbolo na capa, que ela descobre ser um selo de Paimon, um dos reis do inferno que, em troca de fortuna e de conhecimento, exige um corpo masculino para habitar. Subindo ao sótão, ela descobre, horrorizada, o mesmo símbolo escrito na parece com sangue e o corpo em putrefação da mãe, decapitado, e circundado por velas.
Quando ela tenta queimar o caderno de desenhos de Charlie, que havia usado como forma de ligação com a filha na invocação, Annie começa a pegar fogo. Assustada, pede a Steve que lance o caderno no fogo, mas ele, já desconfiado de que a esposa não estava mais em seu juízo perfeito, recusa-se. Ela toma-lhe o caderno das mãos, lança-o no fogo e é Steve que queima até a morte. Nesse instante, Annie é possuída e, depois, passa a perseguir Peter que, apavorado, refugia-se no sótão.
Lá, ele encontra o mesmo símbolo escrito na parede com sangue, mas, em vez do corpo putrefato de Ellen, está sua foto com os olhos furados. E percebe que sua mãe também está lá, flutuando e cortando a própria garganta com uma corda de piano. Aterrorizado, ele constata que há pessoas nuas na casa observando tudo. Ele se joga da janela e é nesse momento que a luz azulada penetra seu corpo e ele acorda já não mais o mesmo, mas outro. O corpo decapitado de Annie flutua até a casa da árvore na qual Charlie insistia em passar as noites.
Peter (?) se dirige para lá e no caminho há outras pessoas nuas observando tudo. Ele sobe a escada e quando chega na casa encontra uma cena dantesca. Pessoas, algumas nuas e outras vestidas, prostradas em adoração frente a um boneco de madeira segurando um cajado e trazendo no peito o símbolo de Paimon. Prostrados também estavam os corpos decapitados de sua avó e de sua mãe. A cabeça do boneco, contudo, era a cabeça putrefata e coroada de Charlie. E, em uma das paredes, a foto de sua avó com a inscrição "Queen Ellen".
Então uma das adoradoras retira da cabeça de Charlie a coroa e a coloca em Peter e lhe diz que eles haviam corrigido o corpo feminino em que Paimon estava habitando, Charlie, e haviam dado a ele um corpo masculino adequado, Peter. Ele não é mais Peter, mas Paimon, um dos reis do inferno. O filme termina com saudações exultantes dos adoradores prostrados diante de Peter, assim como estão prostrados diante dele os corpos de sua mãe e de sua avó. O filme termina com uma miniatura da cena, o que indica o caráter de controle de uma potência infernal.
Não há dúvida que Hereditary repete temas de clássicos do horror como Rosemary's Baby. Culto satânico secreto, relação homem-mulher, relação mãe-filho, encarnação do mal no mundo, desconfiança, alucinações, possibilidade de loucura, etc. O filme também pode ser comparado com o excelente The VVitch, onde há igualmente o cerco insidioso de forças demoníacas a uma família, a presença dissimulada de uma convenção de bruxas, a morte dos familiares e o pacto final com as forças do mal.
Por outro lado, simbolicamente, essas forças destrutivas e malignas conjuradas por Ellen podem representar o fardo que todos carregam das escolhas equivocadas de nossos ancestrais bem como da herança genética que se manifesta em doenças, distúrbios psíquicos e tendências deletérias. Fica evidente no filme que a família de Ellen é, de certa forma, amaldiçoada com uma série de problemas físicos e psíquicos. Annie é sonâmbula e parece já ter tido surtos, Ellen era bipolar e tinha múltiplas personalidades, o pai morreu voluntariamente de inanição, o irmão suicidou-se porque ouvia vozes, Charlie era quase autista e era alérgica a certos alimentos e Peter transparece tendências a comportamentos irresponsáveis.
A partir de um ponto de vista racional, a maioria das desgraças da família se deve à grande loteria da Natureza que a uns dá saúde e a outros contempla com desordens mentais e físicas. Não há ninguém a culpar e o que se pode fazer é, quando possível, tentar amenizar os efeitos dessas condições. Nesse caso, o filme aponta para um certo determinismo segundo o qual alguns de nós estamos condenados desde o nascimento seja a repetir os erros de nossos pais e ancestrais remotos, seja a carregar distúrbios psíquicos e físicos igualmente herdados. Como Ifigênia, somos sacrificados por nossos ancestrais e não há nada que possamos fazer quanto a isso.
Cumpre lembrar que Steven, o marido e pai amoroso, é um psiquiatra. Ele representa os meios humanos de lida com essas heranças deletérias, mas, mesmo sendo o mais equilibrado dos membros da família, ele é impotente diante da carreira avassaladora dos acontecimentos e das forças destrutivas que estão em ação ali. Ele hesita, tenta racionalizar e dar alguma ordem ao caos, tenta amenizar os efeitos das manifestações agressivas, procura compreender a esposa e o filho, poupa Annie de notícias que agravariam sua condição. Tudo em vão. Ele acaba sendo uma das vítimas da maldição que assola aquela família. O homem é impotente diante do destino.
Todavia, se mantivermos o elemento demoníaco, o resultado não é menos desalentador. Desde o início, Ellen, e por meio dela, Paimon, estavam no controle de tudo e o desenrolar dos acontecimentos já estava selado. O histórico familiar aparece sob outra luz. O que pareciam doenças e distúrbios psíquicos, provavelmente eram efeitos do pacto demoníaco de Ellen. Suas bipolaridade e múltiplas personalidades, a manifestação de seu conluio com entidades malévolas. A morte por inanição do marido, provavelmente uma reação desesperada à revelação dos laços de Ellen com o oculto e seus planos de encarnação no mundo de Paimon. O suicídio do filho talvez tenha sido uma fuga igualmente desesperada do destino de ser o veículo da vinda do mal ao mundo. E, quem sabe, Annie mesmo não tenha tentado impedir o destino de realizar-se quando quase incendiou os filhos durante um episódio de sonambulismo?
Peter é o receptáculo adequado da hereditariedade do título do filme. Simbolicamente, ele é aquele que é tomado e dominado completamente pelas tendências herdadas a ponto de não ser mais ele mesmo, mas somente o veículo de inclinações subterrâneas que falam e agem por sua boca e por seu corpo. Ele resiste inicialmente, mas fraqueja e falha ao final. Peter é o símbolo da derrota da afirmação de uma personalidade individual diante das exigências comunitárias e parentais, das forças herdadas que se agitam no interior de cada homem. É a submissão que destrói toda a possibilidade de autodeterminação pessoal.
No fundo, Peter é o não-homem. Nesse sentido, ele harmoniza-se com a tendência moderna de ver no ser humano não um centro racional, moral e autodeterminante, mas somente como o resultado do movimento interno de forças infrarracionais que se manifestam externamente no comportamento e nas idéias dos homens. Nesse caso, Paimon expressa o poder e o controle determinante que essas forças subterrâneas exercem sobre o homem a ponto de curvá-lo a seus "desígnios".
Paimon também representa o conjunto de aspirações e ambições em nome do qual a comunidade não se furta a sacrificar o indivíduo. Os adoradores de Paimon pedem conhecimento, riquezas, bons parentes e a aquiescência de todos os homens às suas vontades. Assim como Agamemnon precisa sacrificar Ifigênia para poder chegar à Tróia e combater os troianos, Ellen e seus seguidores não hesitam em sacrificar Peter para obter o que desejam. O centro valorativo desse culto não está nos ideais transcendentes representados pela Trindade, a qual eles expressamente rejeitam, mas justamente nos bens transitórios oferecidos pelo diabo a Cristo.
Peter é a vítima das escolhas valorativas equivocadas da ancestralidade, seja a comunidade ou seja a família. Isso se expressa não somente pelo culto a um rei do mundo subterrâneo e das forças dissolventes, mas também manifesta-se no boneco que adoram. É uma imagem de madeira sem vida, ôca, que imita um homem e cuja cabeça está morta e em estado avançado de putrefação. Sua mão direita aponta para baixo, para os infernos, e sua mão esquerda segura um cajado cuja ponta é também uma mão apontando para a esquerda. À direita de Deus ficarão os eleitos, à esquerda, os réprobos.
O homem-demônio é o resultado final dessas escolhas e dessas tendências ancestrais. E ele é coroado por seus súditos e adoradores e reina sobre eles. Como em Rosemary's Baby, há um nascimento, uma encarnação profana do mal no mundo. No caso de Hereditary, a gestação não é realizada por uma mulher grávida e sim por uma ancestralidade comunitária que decide pelas trevas. Peter não sabe, mas ele é o vaso de eleição das forças caóticas que o espreitam desde seu nascimento. O mesmo tema da eleição demoníaca aparece recentemente tanto em The VVitch quanto em Kill List.
Há também similaridades com The Antichrist de Lars von Trier, como o trauma da perda de um filho e o luto que a ele se segue desencadeando eventos aterrorizantes que destróem uma família, a relação mãe-filho e a relação marido-esposa, a incapacidade do homem racional (o terapeuta) de lidar com as potências caóticas que se manifestam e acabam por sobrepujá-lo, a afirmação do poder de uma certa ancestralidade sobre os atos humanos, entre outros aspectos sobre os quais não comentarei aqui.
Cabe ressaltar a excelente trilha sonora que, na sequência final do filme, em vez de optar por um tema musical de tensão e de horror, opta por um tema jubiloso, de ascensão espiritual, o que faz o espectador sentir que está diante de um milagre, de um acontecimento portentoso. Essa sensação causa enorme incômodo, pois sabemos que nada ali é divino, não obstante seja, sob certo aspecto, espantoso, maravilhoso. O belo no horror. O contraste entre a trilha e a natureza do evento tem um efeito perturbador que permanece mesmo depois de encerrada a película. É o que se espera de um bom filme de terror.
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Leia também: oleniski.blogspot.com/2017/09/the-vvitch-e-o-cerco-insidioso-do-mal.html
Desde o início do filme, fica clara a ascendência de Ellen Leigh sobre a família de sua filha Annie (a excelente Toni Collette), pois a película começa com o convite para o funeral da idosa. Tudo girará em torno desse evento e das decisões tomadas por Ellen. Em certo sentido, ela é o centro da trama e a influência maligna que decidirá o destino de todos os envolvidos.
Em seu funeral, Annie faz uma estranha eulogia onde declara que a mãe era uma pessoa difícil e reservada. E acrescenta que não conhece a maioria dos presentes à cerimônia, o que atesta o quanto a mãe tinha uma vida que não compartilhava sequer com sua filha. Esse é um ponto central na trama, pois é justamente o afastamento das duas, mãe e filha, que torna possível o desenrolar ordenado e planejado dos eventos.
Annie é miniaturista, uma artista que cria miniaturas perfeitas de situações cotidianas. O afastamento e o controle caracterizam a profissão de Annie e remetem ao papel de sua mãe na vida de todos à sua volta. Annie vê sua própria vida sob a lente de aumento sem a qual seria impossível criar os diminutos cenários que retratam os diversos acontecimentos passados e presentes de sua família. Note-se que a lente de aumento implica afastamento, mas também observação e controle dos mínimos detalhes. As "vidas" dos bonecos que constrói são controladas de fora pela artista Annie.
O que Annie ainda não sabe é que controle sobre os acontecimentos é justamente aquilo que ela não possui, pois tudo está decidido pelos desígnios sinistros de sua mãe. O que se seguirá é a paulatina perda de controle e de liberdade de todos os membros de sua família e o progressivo desvelamento de um plano com raízes sobrenaturais profundas. Há aí duas hereditariedades, no sentido daquilo que outros decidem sobre nós, uma de ordem natural, a ancestralidade, e outra de ordem metafísica, o poder que certos entes têm sobre o homem.
A mesma tendência artística se manifesta em Charlie, sua filha, que desenha e constrói bonecos, embora em ambos os casos, as obras demonstrem alguma excentricidade. Os desenhos são toscos, feios e apresentam todos os retratados em traços que remetem à loucura ou ao sofrimento. Os bonecos são feitos de materiais incomuns e inadequados que parecem ser torturados para adquirirem as formas que lhes são impostas por Charlie.
Aliás, Charlie parece ser ela mesma uma inadequada. A começar por seu nome masculino, a menina apresenta traços de uma personalidade retraída e ensimesmada, impenetrável e incompreensível. Ela gosta de isolamento e teima em dormir em uma casa na árvore a despeito das advertências em contrário de Annie. Tudo isso poderia ser atribuído à adolescência, uma fase de mudanças, de meio termo entre a infância e a vida adulta, em que o jovem parece ainda não estar confortável com o próprio corpo e com seu papel no mundo. Mas há algo muito mais sinistro nessa inadequação e que só será revelado no fim do filme.
No funeral de Ellen, olhares estranhos são dirigidos a Charlie, assim como homenagens pouco usuais são feitas ao corpo da avó que é enterrada com um pingente com um símbolo que mais parece um selo. O interessante é que Annie também usa um pingente idêntico, embora não saiba seu significado. A família, formada também pelo marido de Anne, Steve (o ótimo Gabriel Byrne) e pelo filho mais velho, Peter, retorna ao lar ao fim do funeral.
Obviamente, por mais afastada que estivesse de sua mãe, a morte de um ente próximo é sempre uma situação difícil e Annie tem de lidar com os sentimentos ambíguos que nutre por Ellen em meio ao luto. Ela busca apoio em um grupo comunitário de enlutados e ficamos sabendo do triste histórico da família. Segundo Annie, sua mãe era bipolar e tinha múltiplas personalidades, seu pai morrera deliberadamente por inanição e seu irmão esquizofrênico se suicidara acusando a mãe de lançar sobre ele as vozes que o atormentavam.
Eis outro sentido da hereditariedade, o que herdamos corporal e fisicamente de nossos ancestrais. Não pedimos e nem fizemos nada para merecê-lo, mas recebemos, como em uma loteria cósmica, uma série de características deletérias na forma, por exemplo, de doenças ou predisposições a doenças presentes em nossos pais ou em ancestrais mais remotos. Annie, dado o histórico familiar, pode desconfiar que sua saúde mental e a de seus filhos não sejam as melhores.
A própria Annie apresenta episódios de sonambulismo e, a julgar por algumas passagens no filme, também sofreu um surto não muito tempo atrás. Note-se, contudo, que essas doenças, de Annie e de seus pais e irmão, podem ter outro significado. Alterações radicais de ânimo, múltiplas personalidades, sonambulismo, audição de vozes, depressão são encaradas em certos círculos como manifestações espirituais de influência de forças sobrenaturais. E mais, os dois homens da família morrem em circunstâncias trágicas, o pai em um ato de profunda desesperança com a vida e o outro, o irmão, em um ato de desesperada fuga do que acreditava ser a influência nefasta de sua mãe. Doenças mentais os mataram ou a percepção de realidades insuportavelmente sinistras ligadas à Ellen?
O centro da trama, por enquanto, ainda é Annie e seu luto, mas logo isso mudará e o foco estará na gradativa dissolução de sua própria família. Em certo sentido, há um paralelo entre a tragédia familiar de Ellen e a tragédia familiar de Annie. Ambas serão o vetor da ação demoníaca (a mãe deliberadamente e a filha inconscientemente) e ambas trarão a destruição para os seus, principalmente aos homens.
Charlie tem uma intolerância a amendoim e seu irmão, Peter, ao levá-la a uma festa, deixa-a sem supervisão e a menina come um bolo feito com amendoim. O resultado é um choque anafilático e Peter tenta levá-la a um hospital. No meio do caminho, contudo, com dificuldade de respirar, Charlie coloca a cabeça para fora da janela do carro e é decapitada pelo choque com um poste (que, aparentemente, leva o mesmo selo do pingente de Ellen). O luto que se segue à tragédia expõe e agrava a relação conflitiva que Annie tem com seu filho.
Como era de se esperar, Annie guarda ressentimento contra Peter pela morte de Charlie e o filho sente-se culpado pelo acidente. Graças a um episódio de sonambulismo entremeado por sonhos, o espectador é apresentado a fatos como a tentativa de aborto de Peter, que não aconteceu graças à intervenção de Ellen. Mais ainda, em certo momento do filme, Annie conta que, sonâmbula, havia encharcado seus dois filhos com uma substância inflamável e que estava prestes a incendiá-los com um fósforo aceso quando subitamente despertara de seu torpor. Mais uma vez, a sanidade de Annie pode ser posta em questão ou há aí algum estranho significado oculto?
Steven, o marido e a pessoa mais equilibrada da família, nota a piora no comportamento da esposa e teme que ela esteja próxima de sofrer em algum surto. Com a finalidade de não perturbá-la ainda mais, ele não conta à Annie que recebeu uma ligação da funerária dando conta de uma profanação do túmulo de Ellen. Haverá consequências disso em breve.
Annie, em uma tentativa de retornar ao grupo de apoio de enlutados, é abordada por Joan, uma mulher que alega haver perdido seu neto em um acidente há pouco tempo. Após uma inicial resistência de Annie, as duas tornam-se amigas e, um dia, Joan confidencia que uma médium conseguira invocar o espírito de seu neto e que ela a ensinara como realizar o ritual de invocação em casa. Annie se deixa convencer, participa de uma sessão conduzida por Joan e recebe desta uma fórmula em língua desconhecida e as instruções para invocar o espírito de Charlie.
É nesse momento do filme que o drama da dissolução de uma família pela dor da perda violenta de um de seus membros dá lugar ao elemento sobrenatural. Annie primeiramente realiza o ritual sozinha e depois, tendo tido sucesso, exige que Steve e Peter participem de uma sessão. O que se segue é uma manifestação espiritual assustadora que, ao final, parece converter-se em algum tipo de possessão temporária de Annie.
O ponto é que, querendo ou não, Annie havia invocado algo que parecia atender pelo nome de Charlie, mas de cuja natureza real ninguém poderia afirmar nada. Se há um mundo de seres espirituais, nada impede que dentre eles haja alguns que possam assumir as identidades dos entes falecidos invocados pelos vivos. Ademais, Annie confessara desconhecer o idioma da invocação, o que aumenta a possibilidade de que aquilo que foi convidado não era o espírito de Charlie.
Peter, enfraquecido pelo remorso e pela culpa, parece estar sendo perseguido por forças ocultas. Ele vê coisas estranhas, entre elas uma luz azulada que se aproxima dele e desaparece. Durante a aula, ele mal consegue prestar atenção ao que é ensinado pelo professor. Mas, para o espectador, o tema das aulas esclarece muito do que acontece durante o filme todo. O professor discute figuras da mitologia e da tragédia gregas, como Hércules e Ifigênia, personagens que têm em comum um destino sobre o qual não tinham responsabilidade direta.
Ifigênia foi sacrificada em Áulis pelo próprio pai, Agamemnon, por exigência de Ártemis, porque ele havia ofendido a deusa ao matar um cervo sagrado. O significado é claro: uma filha morre pelas mãos do pai por exigência de uma potência sobre-humana. Aqui fica claro também que o centro da trama de hereditariedade não era Charlie, mas sim Peter. Ele é a Ifigênia que deverá ser sacrificada por exigência de um deus. E Annie pode ter selado o pacto naquele ritual em língua estranha que ela realizou buscando invocar a filha defunta.
Annie desconfia que pode ter trazido algo sobrenatural naquela séance e decide ir atrás de Joan. Ela não consegue encontrá-la, mas o espectador testemunha que na casa da mulher há um altar com o símbolo estranho do pingente de Ellen assim como uma espécie de trabalho de bruxaria contendo a foto de Peter e vários dos bonecos feitos por Charlie. Além disso, na porta estava um capacho bordado idêntico aos que sua mãe fazia.
Annie volta para casa e revira os pertences da mãe, os quais permaneciam até então intocados em caixas. Lá ela encontra fotos de Ellen com Joan e livros de invocação demoníaca com o estranho símbolo na capa, que ela descobre ser um selo de Paimon, um dos reis do inferno que, em troca de fortuna e de conhecimento, exige um corpo masculino para habitar. Subindo ao sótão, ela descobre, horrorizada, o mesmo símbolo escrito na parece com sangue e o corpo em putrefação da mãe, decapitado, e circundado por velas.
Quando ela tenta queimar o caderno de desenhos de Charlie, que havia usado como forma de ligação com a filha na invocação, Annie começa a pegar fogo. Assustada, pede a Steve que lance o caderno no fogo, mas ele, já desconfiado de que a esposa não estava mais em seu juízo perfeito, recusa-se. Ela toma-lhe o caderno das mãos, lança-o no fogo e é Steve que queima até a morte. Nesse instante, Annie é possuída e, depois, passa a perseguir Peter que, apavorado, refugia-se no sótão.
Lá, ele encontra o mesmo símbolo escrito na parede com sangue, mas, em vez do corpo putrefato de Ellen, está sua foto com os olhos furados. E percebe que sua mãe também está lá, flutuando e cortando a própria garganta com uma corda de piano. Aterrorizado, ele constata que há pessoas nuas na casa observando tudo. Ele se joga da janela e é nesse momento que a luz azulada penetra seu corpo e ele acorda já não mais o mesmo, mas outro. O corpo decapitado de Annie flutua até a casa da árvore na qual Charlie insistia em passar as noites.
Peter (?) se dirige para lá e no caminho há outras pessoas nuas observando tudo. Ele sobe a escada e quando chega na casa encontra uma cena dantesca. Pessoas, algumas nuas e outras vestidas, prostradas em adoração frente a um boneco de madeira segurando um cajado e trazendo no peito o símbolo de Paimon. Prostrados também estavam os corpos decapitados de sua avó e de sua mãe. A cabeça do boneco, contudo, era a cabeça putrefata e coroada de Charlie. E, em uma das paredes, a foto de sua avó com a inscrição "Queen Ellen".
Então uma das adoradoras retira da cabeça de Charlie a coroa e a coloca em Peter e lhe diz que eles haviam corrigido o corpo feminino em que Paimon estava habitando, Charlie, e haviam dado a ele um corpo masculino adequado, Peter. Ele não é mais Peter, mas Paimon, um dos reis do inferno. O filme termina com saudações exultantes dos adoradores prostrados diante de Peter, assim como estão prostrados diante dele os corpos de sua mãe e de sua avó. O filme termina com uma miniatura da cena, o que indica o caráter de controle de uma potência infernal.
Não há dúvida que Hereditary repete temas de clássicos do horror como Rosemary's Baby. Culto satânico secreto, relação homem-mulher, relação mãe-filho, encarnação do mal no mundo, desconfiança, alucinações, possibilidade de loucura, etc. O filme também pode ser comparado com o excelente The VVitch, onde há igualmente o cerco insidioso de forças demoníacas a uma família, a presença dissimulada de uma convenção de bruxas, a morte dos familiares e o pacto final com as forças do mal.
Por outro lado, simbolicamente, essas forças destrutivas e malignas conjuradas por Ellen podem representar o fardo que todos carregam das escolhas equivocadas de nossos ancestrais bem como da herança genética que se manifesta em doenças, distúrbios psíquicos e tendências deletérias. Fica evidente no filme que a família de Ellen é, de certa forma, amaldiçoada com uma série de problemas físicos e psíquicos. Annie é sonâmbula e parece já ter tido surtos, Ellen era bipolar e tinha múltiplas personalidades, o pai morreu voluntariamente de inanição, o irmão suicidou-se porque ouvia vozes, Charlie era quase autista e era alérgica a certos alimentos e Peter transparece tendências a comportamentos irresponsáveis.
A partir de um ponto de vista racional, a maioria das desgraças da família se deve à grande loteria da Natureza que a uns dá saúde e a outros contempla com desordens mentais e físicas. Não há ninguém a culpar e o que se pode fazer é, quando possível, tentar amenizar os efeitos dessas condições. Nesse caso, o filme aponta para um certo determinismo segundo o qual alguns de nós estamos condenados desde o nascimento seja a repetir os erros de nossos pais e ancestrais remotos, seja a carregar distúrbios psíquicos e físicos igualmente herdados. Como Ifigênia, somos sacrificados por nossos ancestrais e não há nada que possamos fazer quanto a isso.
Cumpre lembrar que Steven, o marido e pai amoroso, é um psiquiatra. Ele representa os meios humanos de lida com essas heranças deletérias, mas, mesmo sendo o mais equilibrado dos membros da família, ele é impotente diante da carreira avassaladora dos acontecimentos e das forças destrutivas que estão em ação ali. Ele hesita, tenta racionalizar e dar alguma ordem ao caos, tenta amenizar os efeitos das manifestações agressivas, procura compreender a esposa e o filho, poupa Annie de notícias que agravariam sua condição. Tudo em vão. Ele acaba sendo uma das vítimas da maldição que assola aquela família. O homem é impotente diante do destino.
Todavia, se mantivermos o elemento demoníaco, o resultado não é menos desalentador. Desde o início, Ellen, e por meio dela, Paimon, estavam no controle de tudo e o desenrolar dos acontecimentos já estava selado. O histórico familiar aparece sob outra luz. O que pareciam doenças e distúrbios psíquicos, provavelmente eram efeitos do pacto demoníaco de Ellen. Suas bipolaridade e múltiplas personalidades, a manifestação de seu conluio com entidades malévolas. A morte por inanição do marido, provavelmente uma reação desesperada à revelação dos laços de Ellen com o oculto e seus planos de encarnação no mundo de Paimon. O suicídio do filho talvez tenha sido uma fuga igualmente desesperada do destino de ser o veículo da vinda do mal ao mundo. E, quem sabe, Annie mesmo não tenha tentado impedir o destino de realizar-se quando quase incendiou os filhos durante um episódio de sonambulismo?
Peter é o receptáculo adequado da hereditariedade do título do filme. Simbolicamente, ele é aquele que é tomado e dominado completamente pelas tendências herdadas a ponto de não ser mais ele mesmo, mas somente o veículo de inclinações subterrâneas que falam e agem por sua boca e por seu corpo. Ele resiste inicialmente, mas fraqueja e falha ao final. Peter é o símbolo da derrota da afirmação de uma personalidade individual diante das exigências comunitárias e parentais, das forças herdadas que se agitam no interior de cada homem. É a submissão que destrói toda a possibilidade de autodeterminação pessoal.
No fundo, Peter é o não-homem. Nesse sentido, ele harmoniza-se com a tendência moderna de ver no ser humano não um centro racional, moral e autodeterminante, mas somente como o resultado do movimento interno de forças infrarracionais que se manifestam externamente no comportamento e nas idéias dos homens. Nesse caso, Paimon expressa o poder e o controle determinante que essas forças subterrâneas exercem sobre o homem a ponto de curvá-lo a seus "desígnios".
Paimon também representa o conjunto de aspirações e ambições em nome do qual a comunidade não se furta a sacrificar o indivíduo. Os adoradores de Paimon pedem conhecimento, riquezas, bons parentes e a aquiescência de todos os homens às suas vontades. Assim como Agamemnon precisa sacrificar Ifigênia para poder chegar à Tróia e combater os troianos, Ellen e seus seguidores não hesitam em sacrificar Peter para obter o que desejam. O centro valorativo desse culto não está nos ideais transcendentes representados pela Trindade, a qual eles expressamente rejeitam, mas justamente nos bens transitórios oferecidos pelo diabo a Cristo.
Peter é a vítima das escolhas valorativas equivocadas da ancestralidade, seja a comunidade ou seja a família. Isso se expressa não somente pelo culto a um rei do mundo subterrâneo e das forças dissolventes, mas também manifesta-se no boneco que adoram. É uma imagem de madeira sem vida, ôca, que imita um homem e cuja cabeça está morta e em estado avançado de putrefação. Sua mão direita aponta para baixo, para os infernos, e sua mão esquerda segura um cajado cuja ponta é também uma mão apontando para a esquerda. À direita de Deus ficarão os eleitos, à esquerda, os réprobos.
O homem-demônio é o resultado final dessas escolhas e dessas tendências ancestrais. E ele é coroado por seus súditos e adoradores e reina sobre eles. Como em Rosemary's Baby, há um nascimento, uma encarnação profana do mal no mundo. No caso de Hereditary, a gestação não é realizada por uma mulher grávida e sim por uma ancestralidade comunitária que decide pelas trevas. Peter não sabe, mas ele é o vaso de eleição das forças caóticas que o espreitam desde seu nascimento. O mesmo tema da eleição demoníaca aparece recentemente tanto em The VVitch quanto em Kill List.
Há também similaridades com The Antichrist de Lars von Trier, como o trauma da perda de um filho e o luto que a ele se segue desencadeando eventos aterrorizantes que destróem uma família, a relação mãe-filho e a relação marido-esposa, a incapacidade do homem racional (o terapeuta) de lidar com as potências caóticas que se manifestam e acabam por sobrepujá-lo, a afirmação do poder de uma certa ancestralidade sobre os atos humanos, entre outros aspectos sobre os quais não comentarei aqui.
Cabe ressaltar a excelente trilha sonora que, na sequência final do filme, em vez de optar por um tema musical de tensão e de horror, opta por um tema jubiloso, de ascensão espiritual, o que faz o espectador sentir que está diante de um milagre, de um acontecimento portentoso. Essa sensação causa enorme incômodo, pois sabemos que nada ali é divino, não obstante seja, sob certo aspecto, espantoso, maravilhoso. O belo no horror. O contraste entre a trilha e a natureza do evento tem um efeito perturbador que permanece mesmo depois de encerrada a película. É o que se espera de um bom filme de terror.
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Leia também: oleniski.blogspot.com/2017/09/the-vvitch-e-o-cerco-insidioso-do-mal.html
Um comentário:
muito interessante, está de parabéns!
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