Richard Fumerton, ao apresentar as características essenciais do coerentismo no
Oxford Handbook of Epistemology, assevera que o seu aspecto mais peculiar é a negação da tese básica do fundacionalismo clássico, a saber, que a justificação das crenças que se possui deve ser linear. Tanto internalistas quanto externalistas, a despeito de suas diferenças em outras questões, mantém a visão tradicional, que remonta a Aristóteles, de que o conhecimento não pode admitir circularidades.
O coerentista, ao contrário, está plenamente convencido de que a circularidade é inescapável e de que ela está de facto incluída no conhecimento. Sendo assim, a justificação das crenças não obedecerá aos princípios clássicos do fundacionalismo, mas terá de ser concebida a partir de outro princípio. A justificação epistêmica de uma crença qualquer, segundo o coerentismo, deve ser entendida em termos do quão coerente é uma crença em relação com as outras crenças admitidas.
O que justifica S em crer que P (uma proposição qualquer) é que P é coerente com alguma série de proposições na qual S correntemente ou disposicionalmente acredita (ou acreditaria se S refletisse de determinada forma). O que justifica você em crer em P é a coerência de P com outras proposições que você acredita ou acreditaria.
Os filósofos coerentistas usualmente dividem-se entre aqueles que defendem que a coerência é o critério de justificação para toda e qualquer crença e aqueles para quem a coerência é uma condição exigida somente das crenças de natureza empírica. O mais famoso pensador deste último grupo é o americano Laurence Bonjour. Para Bonjour o dever do sujeito conhecedor é sempre buscar a verdade e para alcançar seu intento ele deve se conformar com os padrões fornecidos pela teoria epistemológica. Há uma exigência deontológica intrínseca à empresa do conhecimento e que só é cumprida no esforço contínuo em formar e manter somente crenças as quais se coadunam com determinados critérios epistemológicos.
O dever do investigador é buscar voluntariamente formar e manter crenças de uma forma responsável e isso significa que ele só pode manter crenças para as quais encontre boas razões para acreditar que sejam verdadeiras. O critério último de identificação dessas crenças é a coerência. Ou seja, uma crença é justificada quando ela é um elemento de um sistema coerente de crenças. Mas não é suficiente que ela o seja de facto, é necessário que o sujeito tenha consciência de que ela o é. A coerência justifica na medida em que é um critério epistemológico acessível ao sujeito conhecedor que cumpre seu dever epistêmico observando suas exigências.
A questão central para todo coerentista é definir da forma mais clara e adequada possível no que consiste a coerência. A característica mais evidente e sobre a qual a maioria dos defensores do coerentismo concorda é que a coerência exige, no mínimo, consistência lógica. Para serem coerentes, as crenças de um sistema devem ser consistentes. Bonjour enfatiza o fato de que a consistência é uma condição necessária, mas não suficiente, e adiciona outras exigências e condições: a coerência de um sistema de crenças é proporcional ao grau de consistência probabilística, a coerência aumenta proporcionalmente ao número e força das conexões inferenciais entre as crenças componentes e diminui na medida em que existam subsistemas desconectados inferencialmente entre si e também decai na proporção da presença de anomalias inexplicadas dentro do sistema.
Em sua interpretação primária o coerentismo refere-se precipuamente às crenças de um indivíduo, mas há espaço para uma teoria coerentista social. De acordo com esta, o que conferiria justificação a uma crença qualquer não seria o grau de coerência que ela apresentaria com respeito ao conjunto das crenças esposadas por um indivíduo isolado, mas pela maioria de uma determinada comunidade. A consequência mais evidente dessa perspectiva é a absoluta relatividade da justificação de qualquer crença, pois o que é coerente com o que acredita o grupo A não será igualmente coerente com o que acredita o grupo B.
Todavia, o caráter relativista do coerentismo não se apresenta somente quando aplicado como uma teoria social. O mesmo indivíduo pode pensar em uma série coerente de crenças que, no entanto, é inteiramente incompatível com a série que ele sustenta agora. Ele pode, inclusive, diante de uma crença qualquer que não seja coerente com a série que no presente momento ele sustenta, substituir essa série por outra que acomode a crença recalcitrante.
Além disso, se só a coerência é necessária para a justificação, então não há nenhuma garantia de que o que aquilo que o sujeito S ou a comunidade B crêem é verdadeiro, ou seja, que corresponda ao que é real em alguma instância. Afinal, todo conto de fadas é internamente coerente e estando o coerentista correto, não existe nenhuma garantia de que tudo o que cremos não seja semelhante a um conto dos irmãos Grimm.
Alvin Plantinga oferece um exemplo hipotético para demonstrar a insuficiência do coerentismo apelando justamente para o tema da auto-ilusão. Considere-se que o sujeito S esteja sob efeito de um demônio maligno (sim, de novo!) e que este o tenha programado para que toda vez em que S vê algo vermelho creia que ninguém antes dele jamais viu algo dessa cor. Seguindo o exemplo, é dito que essa crença de S, embora estranha e bizarra, é coerente com a sua estrutura noética, isto é, com a série de crenças que ele normalmente sustenta. Não obstante o fato de que lhe seja facultado pelos parâmetros coerentistas assumir tal crença bizarra, ninguém diria que S tem realmente conhecimento.
O exemplo mais radical desse gênero de auto-ilusão é o que Plantinga denominou como Caso do Alpinista Epistemicamente Inflexível. Depois de haver escalado uma montanha até seu topo, Ric, um alpinista, senta-se e contempla o cenário que se descortina diante de seus olhos. Ele acredita que abaixo há um canyon, topos de outras montanhas à frente e uma águia sobrevoando em círculos o lugar onde ele se encontra. Todas as suas crenças são coerentes entre si e ele não duvida de nenhuma delas.
O problema é que Ric está sob os efeitos danosos da radiação cósmica e, por causa disso, seu cérebro não responde mais aos estímulos externos e se limita a repetir aquelas mesmas crenças não importando quais sejam as modificações externas objetivas. Ele permanece acreditando estar no topo da montanha ainda que seja levado a uma ópera. Mais uma vez, as crenças que Ric possui são perfeitamente coerentes, mas não configuram conhecimento.
Fumerton, por seu turno, argumenta que o coerentismo sofre de um problema epistemológico ainda mais grave. Corretamente compreendido, o coerentismo levaria a um regresso ao infinito. Para S saber que suas crenças são coerentes umas com as outras ele deve primeiro saber quais são essas crenças. Todavia, para descobrir isso S só tem como critério a coerência de sua crença de que tem certas crenças com o todo o resto de suas crenças. Consequentemente, para descobrir essa mesma coerência, uma vez mais S deverá descobrir no que crê afinal e para isso nenhum critério outro há (nem acesso privilegiado a proposições sobre os próprios estados internos) que não a coerência e assim ad infinitum.
O conhecimento não-anulável
A teoria do “conhecimento não-anulável” baseia-se na idéia de que se o sujeito S tem crenças que são verdadeiras e justificadas, mas desconhece a existência de uma verdade P qualquer que tem a força de anular suas crenças, então S não tem conhecimento. O que está subentendido nessa tese é a pressuposição de que se S soubesse que P, ele não mais consideraria suas crenças como justificadas. Assim, S poderia estar deontologicamente justificado em sua crenças, ou seja, ele faz tudo de acordo com seu dever de investigador honesto, mas o desconhecimento de P anula toda sua empreitada.
Desde seu aparecimento, no final da década de 60, até os dias atuais, a perspectiva do conhecimento não-anulável foi defendida por diversos pensadores e sofreu importantes modificações e emendas. Keith Lehrer e Thomas Paxson Jr foram dois pensadores pioneiros nessa teoria que foi constantemente modificada para responder às críticas e objeções de outros filósofos. A primeira formulação do conhecimento é dada por eles nos seguintes termos:
(i) S tem conhecimento que h se e somente se h é verdadeiro, (ii) S crê que h, e (iii) há alguma sentença P que justifica completamente S em crer que h e nenhuma outra sentença anula essa justificação.
Para ilustrar a definição, Lehrer e Paxson citam um exemplo hipotético formulado por Brian Skyrms. Imagine-se um piromaníaco que tem certeza que o fósforo que tem na mão vai acender quando friccionado da mesma forma que todos os outros que já usou anteriormente. Entretanto, sem que o piromaníaco saiba, esse fósforo contém impurezas tais que o impedirão de acender e que, além disso, uma explosão de raios Q acende o fósforo no momento em que é friccionado. Nesse caso, o piromaníaco está indutivamente justificado em crer que o fósforo em suas mãos acenderá da mesma forma que todos os outros o fizeram no passado, mas a informação que lhe falta torna sua pretensão ao conhecimento inválida.
O exemplo hipotético de Skyrms, um caso-Gettier, ilustra bem a tese de Lehrer e Paxson. Entretanto, é necessário esclarecer como um “anulador” invalida uma justificação. A primeira definição simples afirma que “quando P justifica completamente S em crer que h, essa justificação é anulada por Q se e somente se (i) Q é verdadeiro, e (ii) a conjunção de P e Q não justifica completamente S em crer que h.” Uma outra formulação do mesmo princípio seria: “não há nenhum corpo de evidência e’ tal que a conjunção de e com e’ falhe em justificar h.”
Ora, os mesmos autores admitem que essa formulação é restritiva demais e apresentam outro exemplo hipotético, um novo caso-Gettier, para demonstrar a inadequação de sua primeira tentativa. Suponha-se que S esteja na biblioteca e testemunhe o roubo de um livro. S reconhece o ladrão como Tom Grabit, alguém que ele conhece muito bem e isso lhe dá segurança para afirmar categoricamente que Tom Grabit é o ladrão de livros.
Contudo, sem que S saiba, a Sra. Grabit afirmou que Tom, no momento do roubo, estava em um lugar completamente diferente e que, na verdade, quem estava na biblioteca era o irmão gêmeo de Tom, John Grabit. Essa informação é suficiente para anular as pretensões de conhecimento do sujeito S. Mas, como todo caso-Gettier, a história não termina aí. A Sra. Grabit é louca e o irmão gêmeo de Tom é produto de uma das suas alucinações.
No cenário tal como é descrito, a justificação da crença de S de que Tom é o ladrão de livros não depende de seu conhecimento do que disse a Sra.Grabit e do fato de que ela tem problemas mentais. Na verdade, S não tem nenhuma crença sobre a Sra.Grabit. O conhecimento desses fatos sobre a mãe de Tom não influenciaria a inferência de S. Não é suficiente para que a justificação de S seja anulada o fato de haver fatos potencialmente anuladores fora do seu conhecimento. É necessário que o anulador seja verdadeiro e que S tenha razões para nele crer.
A primeira formulação sobre os anuladores deve ser emendada para dar conta dos casos do gênero apontado acima. A justificação da crença de S em h será anulada por Q se e somente se “(i) Q é verdadeiro, (ii) S está completamente justificado em crer que Q é falso e (iii) a conjunção de P e Q não justifica completamente S em crer que h.”. Porém, o filósofo americano Marshall Swain criou um novo exemplo hipotético para mostrar que mesmo essa definição é inadequada. Supondo-se que S esteja em frente a uma janela e vê uma pedra sendo lançada contra ela. Sua expectativa natural é que a janela irá quebrar-se no impacto e que haverá um grande barulho no momento em que isso acontecer. Ninguém poderá negar que S esteja completamente justificado em sua crença.
O caso se complica quando se fica sabendo que S, no instante do impacto, sofrerá uma desordem fisiológica súbita que o impedirá de perceber o estilhaçamento da janela e ouvir o barulho concomitante. Para S será como se a janela jamais houvesse sido quebrada. Toda a evidência de S aponta para um evento que, no fim, não se dará. Por outro lado, a evidência verdadeira do súbito mal fisiológico, se fosse conhecida por S, anularia sua justificação. Swain introduz, por meio desse exemplo, o conceito de um sujeito conhecedor “idealmente situado”. Em outros termos, uma crença é completamente imune à anulação se o sujeito S estiver situado de tal forma que nenhuma das informações necessárias para a justificação de suas crenças esteja fora do seu conhecimento.
Evidentemente, essa situação ideal é uma abstração que não se realiza jamais no confuso mundo real. Mas ela pode ser melhor compreendida a partir da admissão de uma gradação. Se um conhecimento completo não é possível, pelo menos há a possibilidade de um acréscimo contínuo de conhecimento. Esse acréscimo gradativo não pode diminuir fundamentalmente a força das bases das crenças de S, mas ao contrário, deve aumentá-la. No limite, uma justificação não-anulável seria então aquela em que o sujeito S permanecesse justificado em crer em h mesmo quando estivesse “idealmente situado”.