"A idéia de validade - nomeadamente a validade do argumento ou a crítica - também emana do nível argumentativo ou crítico. E também funciona como idéia reguladora, mas diz respeito a argumentos e à crítica e não a histórias ou teorias. Contudo, opera de modo totalmente análogo àquele em que a verdade se refere a histórias e teorias. Tal como procuramos avaliar criticamente uma história ou uma teoria, também procedemos assim para apreciar um argumento crítico a favor ou contra uma história ou uma teoria."
KARL POPPER, Knowledge and the Body-Mind Problem
A linguagem humana reveste-se na epistemologia popperiana de uma importância capital, pois é através dela que torna-se possível o chamado mundo 3 * de teorias, argumentos e problemas tomados em seu conteúdo objetivo.
Inspirado na teoria das funções da linguagem de Karl Bühler, Popper afirma que a linguagem tem diversas funções e que algumas delas os seres humanos compartilham com os animais. Entretanto, existem duas funções específicas da linguagem humana, uma descritiva e outra argumentativa.
Animais e homens compartilham as funções inferiores da linguagem, a função (auto) expressiva e a função comunicativa. Na primeira os organismos expressam sintomaticamente seus estados fisiológicos tal como o bocejo de um leão expressa seu estado de sonolência.
Na segunda, a comunicação ocorre sempre que o movimento expressivo de um indivíduo atua sobre outro na qualidade de sinal libertador da resposta deste último. Por exemplo, o bocejo em companhia contagia os outros e os induz a bocejar ou o rugido do leão induz uma resposta de amedrontamento em seu oponente.
A linguagem humana, apesar de compartilhar essas funções inferiores com a linguagem dos outros organismos, tem ainda, segundo Bühler e Popper, a função superior descritiva. O homem descreve diversos fenômenos, desde de estados de coisas até argumentos e teorias de outros homens.
É através dessa função que emerge a possibilidade de descrições que correspondam ou não aos fatos, ou seja, que sejam ou não verdadeiras. A idéia reguladora que atua aqui é a idéia de verdade. Sendo possível ao homem contar histórias falsas, enganar seus semelhantes, nasceu cedo a necessidade de critérios pelos quais determinar a verdade, a correspondência com os fatos, das descrições alheias.
A partir dessa necessidade nasceu outra função superior (um acréscimo popperiano à teoria de Bühler), a saber, a função argumentativa da linguagem humana. Intimamente ligada às descrições, a função argumentativa é o passo determinante no surgimento do mundo 3.
Na argumentação, as descrições, as teorias e hipóteses são avaliadas em seu conteúdo objetivo. A postura crítica se torna possível somente na função argumentativa onde a idéia de validade dos argumentos surge como idéia reguladora.
Certamente, as funções inferiores estão presentes mesmo quando fatos são descritos e argumentos avaliados. Numa palestra não se pode evitar que o palestrante expresse seus estados fisiológicos ou que comunique sentimentos aos ouvintes que liberarão certos tipos de respostas.
Contudo, a descrição feita pelo palestrante vai ser avaliada segundo critérios de verdade e validade, ou seja, segundo um objeto do mundo 3. Não se pode rejeitar uma teoria simplesmente por que o seu proponente expressa medo em sua explanação e seus ouvintes têm sensações de antipatia ao ouví-lo. O que importa é a verdade da teoria, se ela é uma descrição correta dos fatos que pretende descrever, e se seus argumentos são válidos e convincentes.
A linguagem humana, no mundo 3 ultrapassa as linguagens dos animais e torna possível a postura crítica que deve caracterizar a racionalidade. Dessa forma, é possível distinguir o conhecimento puramente subjetivo e o conhecimento objetivo.
O primeiro se constituirá basicamente de conhecimento disposicional, pois o que queremos dizer quando afirmamos que alguém sabe cálculo diferencial ou sabe o nome da rainha da Inglaterra é que a referida pessoa têm a tendência ou disposição de fazer os cálculos adequadamente quando solicitada ou responder “Elizabeth II” quando questionada.
O conhecimento objetivo, ao contrário, não se liga a disposições e estados mentais de qualquer sujeito. Ele se compõe das situações de problemas, das soluções e teorias verdadeiras e falsas, dos argumentos válidos e inválidos considerados como tais em seu conteúdo informativo e suas relações lógicas.
Ainda que o mundo 3 influencie o mundo 1 através do mundo 2, os produtos da mente humana não dependem de mentes humanas para conservar seu valor epistemológico, pois ainda que ninguém jamais leia a solução de um teorema escrito num livro numa biblioteca, essa solução permanecerá sendo objetivamente válida em suas relações lógicas e terá conseqüências não-pretendidas por seu proponente.
Popper assevera que, ainda que alguns filósofos neguem o mundo 3 e tentem reduzí-lo ao mundo 2 ou mesmo ao mundo 1, suas teorias e argumentos serão avaliados segundo critérios que não são subjetivos ou físicos, mas segundo as idéias reguladoras de verdade e validade das funções superiores da linguagem.
Assim também acontece com as teorias científicas que são avaliadas intersubjetivamente segundo critérios de conhecimento objetivo. Em suma, a epistemologia deve concentrar-se no valor objetivo das teorias e dos problemas científicos e na discussão crítica dos mesmos segundo valores de verdade e validade.
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* Sobre os três mundos de Popper, leia:
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