terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Ibn Sina e a natureza de Deus



"Aquilo cuja essência (haqiqah) é outra que sua existência (anniyat) não é o Ser necessário. É evidente que em tudo aquilo em que a essência é outra que a existência, esta é algo acidental. (...) A substância é aquilo que tem uma essência, tal como 'corporeidade', 'espiritualidade', 'humanidade', 'cavalidade'. A essência tem a seguinte característica: enquanto sua existência não é realizada  em um sujeito, não podes saber se ela possui a realidade existencial ou não. Tudo aquilo que é assim tem a essência outra que a realidade existencial. Por conseguinte, tudo aquilo cuja essência não é outra que a realidade existencial não é substância."

ABU ALI HUSSAIN IBN SINA, Danesh Nama, Metafísica

Após determinar metafisicamente a existência de Deus a partir das noções de contingência, necessidade e possibilidade (*), o falasifa persa Ibn Sina, em seu Danesh Nama, discute uma importante consequência daquilo que foi demonstrado.

Todo ente contingente pode ou não existir concretamente. Contudo, tudo aquilo que existe, possui uma essência (haqiqah) cuja existência (anniyat) pode ou não vir a se concretizar. Por exemplo, a essência do cavalo - chamemos de "cavalidade" - é uma estrutura formal que não exige que haja cavalos realmente existentes no mundo. Seria possível jamais ter havido sequer um cavalo.

Todavia, todo cavalo existente é um exemplar concreto dessa "cavalidade", isto é, é a "cavalidade" singularizada em indivíduos realmente existentes. O cavalo concreto é o exercício da "cavalidade" como entes singulares. 

E o cavalo existente é uma substância - um ente singular - justamente porque nele há essência e uma distinção real entre essa essência e a sua existência concreta. Ibn Sina assinala que a existência é como um acidente para ressaltar essa distinção que se encontra nas substâncias. 

Os entes contingentes apresentam em sua constituição ontológica a distinção entre sua essência e sua existência. A existência concreta não é algo que lhes seja próprio, algo que lhes pertença essencialmente. Nada na "humanidade", tomada como a essência do homem, exige que tal gênero de ente fosse concretamente realizado em existências singulares. 

Não vindo essencialmente de si mesmos a sua realidade existencial, os entes contingentes só podem existir na medida em que recebem a existência "de fora", de uma causa que lhes ocasione o existir concreto. Tomados em si mesmos, os entes contingentes são como se não fossem. Tomados a partir de suas causas - em particular, de sua Causa Última -, eles são realmente existentes.

Ora, argumenta Ibn Sina, o Ser necessário, a causa das causas, não pode ter em si mesmo essa distinção entre essência e existência que caracteriza as substâncias contingentes. Ele não é uma essência "à espera" de ser concretizada pela existência. Caso houvesse tal distinção, Ele seria contingente e não necessário, pois sua existência seria obra de uma causa a Ele exterior.

No Ser necessário não há distinção de essência existência. Dito de outro modo, sua essência é existência. Existência pura, simples e necessária. Nenhuma divisão interna, portanto, Lhe é atribuível. 

Ora, se assim é, então a conclusão inevitável, afirma Ibn Sina, é a de que Deus não é uma substância. Ele não faz parte de nenhuma categoria, pois todas as categorias são acidentais, exteriores à essência, por assim dizer.

"De tudo o que foi dito, assevera o sábio persa, torna-se evidente que o Ser necessário não possui gênero e, por consequência, não possui diferença específica e, logo, não possui definição.Torna-se evidente também que Ele não está em um receptáculo e nem em um sujeito. Então, não tem contrário. Evidentemente, não possui espécie. Portanto é incomparável e não possui semelhante."

O Ser necessário não cabe nas distinções e determinações próprias dos seres contingentes. Está para além até mesmo da substancialidade, aquilo que nos é mais próximo. Nele a essência é existência, ou seja, Ele é existência par excellence. Nele toda diferença não se diferencia.


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