"Não houve portanto um tempo em que nada fizeste, porque o próprio tempo foi feito por ti. E se não há um tempo eterno contigo, porque tu és estável, e se o tempo fosse estável não seria tempo."
SANTO AGOSTINHO, Confissões, XI, 13
O livro XI de Confissões pertence ao grupo dos três últimos capítulos da famosa obra de Agostinho que são dedicados a uma reflexão que é mais característicamente filosófica do que os capítulos que os antecedem. Neles, o bispo de Hipona pretende meditar sobre os versos iniciais do Gênesis e, dentro de sua concepção do âmbito próprio da filosofia, utilizar a razão para compreender, até onde é possível, o sentido das Escrituras Sagradas.
A primeira pergunta que se impõe a Agostinho deriva-se diretamente do primeiro verso do Gênesis: "No princípio, Deus criou o céu e a terra."
Ora, se Deus criou o céu e a terra, que antes não existiam, então houve um tempo em que o mundo não existia? Ou, em outros termos, se Deus criou o mundo, que antes da criação não existia, então que fazia Deus antes de criar o mundo?
Mas, se Deus nada fazia e, de repente, em um determinado ponto, inicia a criação, então Ele claramente passa por mudança e se passa por mudança, só pode fazê-lo no tempo. A sucessão de dois momentos distintos, um no qual o mundo não existia e outro no qual passa a existir, constitui necessariamente tempo,
Deus estaria no tempo? Se Ele está no tempo, então é limitado, já que aquilo que está no tempo sofre mudança e mudança significa que algo que não era efetivo efetivou-se, passou a ser.
A resposta de Agostinho é que Deus não está no tempo, logo não sofre as vicissitudes dos entes temporais. A eternidade não é um mero recuo potencialmente infinito no passado ou um avanço potencialmente infinito no futuro, como é a eternidade do mundo em Aristóteles.
Dizer que algo é eterno não é dizer que esse algo sempre existiu, que não se pode encontrar nenhum ponto no passado antes do qual ele não existisse. O mundo bem pode ter sempre existido, como queria Aristóteles, mas, ainda assim, sempre existiu porque não há um ponto no passado que não seja antecedido por um ponto anterior.
Para Agostinho, a eternidade não é existir para sempre e desde sempre no tempo, mas algo radicalmente diferente disso. Longe de ser um gênero de permanência no tempo, a eternidade é a negação do tempo. Aquilo que é eterno não tem parte no tempo, não é tempo e não pode ser pensado em categorias temporais.
O que é, então, a eternidade? "Na eternidade nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente."
O eterno é aquilo que não passa, que tem a si mesmo inteiro todo presente de uma só vez e no qual nada jamais pode se atualizar. O ente temporal sempre está mudando, sempre está se tornando algo que, de certa forma, não era antes. Ele atualiza-se, para usar a terminologia aristotélica, atualiza potencialidades, passa constantemente do que não era para o que é agora.
O ser temporal realiza o que ele é no processo constante e ordenado de efetivação daquilo que ainda não é e pode ser. O ser eterno simplesmente é, sem nada para tornar-se.
Estudiosos apontam que a resposta de Agostinho pode provir de Plotino, já que o bispo de Hipona leu o sábio de Alexandria com admiração e respeito. Com efeito, na terceira Enéada, Plotino opõe o tempo à eternidade e define esta última nos seguintes termos:
"(...) uma vida que nunca varia, jamais se tornando o que anteriormente não era, a coisa imutavelmente ela mesma, não seccionada por nenhum intervalo. (...) Aquilo que nunca foi e nem vai ser, mas que simplesmente possui ser. Aquilo o qual possui existência estável, sem nunca estar em processo de mudança e sem ter jamais mudado - eis a Eternidade. Chegamos assim a um definição: a Vida - instantaneamente inteira, completa, em nenhum ponto seccionada em período ou parte - a qual pertence ao Autêntico Existente por sua própria existência, isso é o que procuramos - isso é Eternidade." Enéadas III, VII, 3
Ora, se Deus é eterno e, portanto, não muda, então a única resposta para a pergunta "o que fazia Deus antes de criar o mundo?" é a seguinte: Ele nada fazia. Por outro lado, uma vez que, no caso de Deus, fazer implica fazer uma criatura, que sentido poderá ter a afirmação de que Deus fazia algo antes de fazer algo?
No capítulo XI, capítulo 6, da Cidade de Deus, Agostinho afirma:
"Pois se eternidade e tempo são corretamente distinguidos pelo seguinte, que o tempo não existe sem algum movimento e transição, enquanto que na eternidade não há mudança, quem não vê que não poderia ter havido tempo não tivesse alguma criatura sido feita, a qual por algum movimento teria dado nascimento à mudança - as várias partes do qual movimento e mudança, não podendo ser simultâneos, sucedem um ao outro - e assim, nesses curtos e longos intervalos de duração, o tempo teria nascido?"
Mundo e tempo são intrinsecamente ligados, pois o mundo não é nada mais do que o conjunto total dos entes que mudam. Há tempo porque há seres que mudam. Por conseguinte, Deus não podia fazer nada antes de criar o mundo, já que ainda não havia criado o mundo. Mas, na verdade, nem sequer faz qualquer sentido dizer "antes da criação do mundo", já que só há tempo no mundo e o mundo implica tempo.
Portanto, a pergunta sobre o que Deus fazia antes de criar o mundo é, rigorosamente, sem sentido. Mundo implica tempo e tempo implica mundo. O que está fora do mundo não está no tempo e, obviamente, não pode ser pensado em termos de antes e depois.
Se não há nenhuma criatura cujo movimento possa ser medido, como falar de tempo? Não há um antes do mundo justamente porque não há um antes do tempo. Há Deus eterno, sem mudança ou passagem. Há o mundo, cuja existência implica tempo, dado que os entes mundanos mudam e passam.
Do mesmo modo, não faz sentido perguntar quando Deus criou o mundo. Perguntar quando Deus criou o mundo é supor um tempo anterior ao mundo e, por conseguinte, um tempo anterior ao tempo.
Nós, entes temporais, mundanos, só podemos intuir, de forma sempre parcial, fugidia e obscura, a natureza da eternidade na contemplação do instante, do átimo inextenso que logo se perde e torna-se tempo. Como indaga Agostinho, "quem poderá deter esse pensamento e fixá-lo um instante, a fim de que colha por um momento o esplendor da Tua sempre imutável eternidade?"
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Um comentário:
Peço licença para comentar.
No meu humilde entendimento, Deus é um ser sempiterno e atemporal. Foi, é, e sempre será. A causa primeira de todas as coisas. Como ele se revelou a Moisés: "Eu sou o que sou".
Mais uma vez parabenizo-o pela excelência dos seus textos. É sempre muito agradável lê-los.
Saudações!
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