Descartes e Isaac Beeckman
"As disciplinas matemáticas demonstram e justificam pelas mais sólidas razõestudo aquilo a que se dedicam a examinar,de tal forma que elas verdadeiramente geram ciência e expulsam completamente todas as dúvidas na mente do estudante. Dificilmente o mesmo pode ser dito de outras ciências, onde, na maior parte do tempo, o intelecto permanece hesitante e inseguro sobre a verdade das conclusões, tal é a multidão das opiniões e o quão conflituosos são os juízos. Deixando de lado outros filósofos, as muitas seitas dos Peripatéticos são suficientes para provar isso. (...) Suponho que todos sejam capazes de perceber o quão distante isso está das demonstrações matemáticas. Os teoremas de Euclides, tanto quanto aqueles de outros matemáticos, são tão verdadeiros hoje, tão seguros em seus resultados, tão firmes e sólidos em suas demonstrações, quanto eles eram já nas escolas muitos séculos atrás. (...) Assim sendo, uma vez que as disciplinas matemáticas são dedicatas tão exclusivamente ao amor e ao cultivo da verdade, que nada é ali recebido que seja falso, nem mesmo aquilo que é meramente provável, não há dúvida alguma que o primeiro lugar entre as ciências deva ser concedido à Matemática."
CLAVIUS, Opera Mathematica
Étienne Gilson, no capítulo V de sua obra The Unity of Philosophical Experience, ao analisar a filosofia de René Descartes, aponta para dois acontecimentos interessantes dos primórdios do desenvolvimento do pensamento cartesiano.
O primeiro deles é a influência de Cristóvão Clavius, o famoso matemático, geômetra e astrônomo jesuíta cujas obras reinavam absolutas na educação matemática dentro do currículo de ensino da escola de La Flèche, onde o Descartes fez seus estudos.
Gilson aponta para o impacto que a passagem acima, retirada da introdução da edição de 1611 do Opera Mathematica, pode ter tido sobre a inteligência do jovem francês. Nela nada é mais claro do que a afirmação da superioridade da matemática frente às outras ciências.
Ao contrário do amargo conflito de opiniões e de doutrinas e das incertezas que se estendiam por séculos e séculos (algo que já havia conduzido tantos ao ceticismo abraçado por Montaigne, outra grande influência na mente de Descartes), a matemática parecia atravessar os tempos como uma plácida região de certeza e solidez inabalável em meio ao tumulto incessante e febril das teorias e hipóteses das demais ciências.
Na matemática existiam verdadeiras demonstrações, raciocínio límpido, claro e indubitável, cujos resultados permaneceriam para sempre como um cabedal de verdades adquiridas pelo intelecto humano de uma vez por todas.
O que Clavius ali afirma é a superioridade científica da matemática. O que Descartes ouviu, ensina Gilson, foi a exclusividade da matemática como método de conhecimento científico.
Ora, os medievais, seguindo Aristóteles, conheciam e defendiam o caráter de certeza da matemática. O que eles jamais afirmariam seria a aplicação da matemática para a solução de quaisquer problemas científicas. Cada ciência trata de um conjunto de objetos determinados no real e o grau de certeza dessas ciências varia de acordo com a natureza desses mesmos objetos.
Por conseguinte, seria estulto aquele que quisesse exigir de objetos não matemáticos a certeza possível para objetos matemáticos. Diz Aristóteles na Metafísica, Livro XI, 3, 1061a [25-35], 1061b [5]:
"(...) o matemático investiga abstrações (pois antes de começar sua investigação, ele retira todas as qualidades sensíveis, como por exemplo: peso e leveza, dureza e seu contrário, e também calor e frio e outras contrariedades sensíveis, e deixa somente o quantitativo e o contínuo, às vezes em uma, duas ou três dimensões e os atributos quantitativos e contínuos destas. Ele não os considera em nenhum outro aspecto e examina as posições relativas de uns e seus atributos, as comensurabilidades e incomensurabilidades de outros e as proporções de outros. Contudo, atribuímos a uma só e mesma ciência todas essas coisas: geometria)."
A matemática tem sua certeza ancorada no fato de que investiga abstrações, relações quantitativo-formais tomadas como subsistentes em si mesmas. Todavia, embora encaradas dessa maneira, essas mesmas relações não são, no mundo real, jamais encontradas a não ser como acidentes de coisas singulares e materiais. Como dizia Koyré, o mundo que os sentidos nos apresentam é um mundo do "mais ou menos", do "quase", do aproximativo, jamais o mundo da precisão.
A matemática era uma das três ciências teoréticas, junto com a Física e a Metafísica. Nesse bem ordenado esquema das ciências cada uma delas ocupava um lugar determinado pela natureza de seu objeto de estudo. Assim sendo, somente uma mudança na concepção da natureza desses mesmos objetos poderia fazer com que a matemática se tornasse um método universal.
Pois bem, Descartes leu em Clavius o que Clavius não afirmou, mas Gilson afirma que o segundo acontecimento determinante no desenvolvimento da filosofia cartesiana se deu no encontro do jovem francês com um jovem holandês chamado Isaac Beeckman em 1618.
Beeckman, em seu diário, relata entusiamado como era bom ter encontrado alguém que se dedicasse, como ele, a "resolver problemas físicos por meio de demonstrações puramente matemáticas." Os dois tornaram-se de pronto amigos e trocaram correspondências nas quais tentavam resolver problemas de geometria e informavam um ao outro acerca de seus progressos nessa área.
O jovem e talentoso matemático holandês considerava-se, como Descartes, um físico-matemático. Mas se o ponto aqui é a aplicação da matemática ao mundo sensível, os escolásticos, seguindo novamente Aristóteles, haviam reservado um lugar para essa aplicação no que se convencionou chamar as "ciências médias".
Postadas entre a Física e a Matemática, as ciências médias ou intermediárias se caracterizavam pelo estudo das relações matemáticas nas coisas concretas. Ao invés de considerar os aspectos quantitativos das coisas como relações abstratas, separadas e subsistentes, como fazia a Matemática, essas ciências (p.ex. astronomia, harmonia, ótica) consideravam esses aspectos quantitativos como ainda pertencendo às coisas.
Todavia, a Física ainda era a ciência do mundo sensível, pois tratava das naturezas das coisas, ou seja, daquilo que elas são em si mesmas.
Mais uma vez, as idéias cartesianas parecem interpretar de forma sui generis doutrinas já conhecidas pelos escolásticos. ''É possível tratar matematicamente inúmeros fenômenos, como quer o senhor Descartes, mas certamente não todos e não exclusivamente por tal método", disseram os escolásticos.
A descoberta cartesiana da geometria analítica (definição e representação de formas geométricas de modo numérico) tornou seu autor ainda mais confiante nas potencialidades da matemática. Se era possível reduzir a geometria à álgebra, porque não seria também possível estender o método matemático a todos os âmbitos? Eis o projeto da Matemática Universal.
A matemática é exata justamente pelo fato de ser uma abstração de toda e qualquer matéria da coisa considerada. Jamais testemunhamos números ou formas geométricas no mundo, mas sempre seres com cor, sabor, cheiro, etc. Como dizia Aristóteles, é possível se enganar com a forma de algo à distância, mas não com a cor. A evidência primeira dos sentidos está longe de ter a simplicidade abstrata dos objetos matemáticos.
E se, como lembra Gilson, o mais importante numa abstração não é que se deixa, mas o que se toma em consideração, então deveria ser claro que aquilo que se afirma de um aspecto particular de um objeto real é verdadeiro daquele aspecto e não daquilo que é deixado de fora dessa consideração.
Dada a ambição cartesiana, nenhuma outra solução há senão a de reduzir tudo a noções tão simples quanto as dos números e, concomitantemente, solapar todas as diferenças que os objetos apresentassem no caminho desse projeto.
Se o método universal é matemático, então ele deve ser tão exato e tão convincente quanto as demonstrações matemáticas. Uma vez que se tenham compreendido as premissas e se tenha raciocinado corretamente, as demonstrações se apresentam sempre como indubitáveis e certas.
Ora, então há que se encontrar conteúdos cuja verdade seja indubitável e que servirão de premissas para as deduções rigorosas dessa matemática universal. Mas onde conseguí-los? Não nos sentidos, é claro. Eles fornecem sempre esse conjunto múltiplo de seres em contínua mutação.
A matemática trabalha com idéias abstratas, por conseguinte é só nas idéias que se podem encontrar as premissas indubitáveis que servirão como fundamento de toda a ciência. Elas serão somente idéias claras e distintas, ou seja, idéias cujo conteúdo verdadeiro, uma vez compreendido pela meditação persistente, não pode estar sujeito a qualquer dúvida.
"Tudo o que puder ser conhecido clara e distintamente da idéia de uma coisa pode ser dito dessa mesma coisa.", eis o princípio diretor dessa Matemática Universal. Tudo o que preciso saber sobre um triângulo está contido em sua definição. Defina-se "triângulo" e se saberá o que é um triângulo.
Da mesma forma, ao se alcançar as idéias claras e distintas de "pensamento", "Deus" e "matéria", conhece-se a natureza do pensamento, de Deus e da matéria. Tudo mais será rigorosamente deduzido de tais fundamentos.
Não mais o homem partirá das coisas para as idéias, mas das idéias para as coisas. E relações entre idéias.