"Penso que essa 'terceira posição' não é muito assustadora ou mesmo surpreendente. Ela preserva a doutrina galileana de que o cientista busca uma descrição verdadeira do mundo, ou de alguns de seus aspectos, e uma explicação verdadeira dos fatos observados; e ela combina essa doutrina com a visão não-galileana que - não obstante isso permaneça o objetivo do cientista - ele não pode jamais saber com certeza se suas descobertas são verdadeiras, embora ele possa algumas vezes estabelecer com razoável certeza que uma teoria é falsa. Pode-se formular brevemente essa 'terceira visão' das teorias científicas dizendo que elas são genuínas conjecturas - palpites altamente informativos sobre o mundo que, embora não verificáveis (isto é, capazes de serem provados verdadeiros) podem ser submetidos a severos testes. Eles são tentativas sérias de descobrir a verdade." (Tradução minha do original em inglês. Itálicos no original).
KARL POPPER, Conjectures and Refutations, p. 154
No texto intitulado Three Views Concerning Human Knowledge, o filósofo da ciência austríaco Karl Popper argumenta a favor de um retorno à "tradição de Galileu" que, segundo sua visão, havia fundado a ciência moderna. Essa tradição tinha sua origem na audaciosa recusa de Galileu em considerar o copernicanismo como uma mera hipótese matemática cujo valor se ligava precipuamente à sua simplicidade e a seus efeitos preditivos e práticos.
A tese de Popper sobre a atitude de Galileu frente às teorias copernicanas repete - conscientemente ou não - a análise do físico, historiador e filósofo da ciência Pierre Duhem, segundo a qual, a querela em torno do heliocentrismo deveu-se ao realismo de Galileu. Ou seja, ao invés de seguir a tradição da astronomia clássica que considerava as teorias matemáticas como engenhos que - embora concordantes com o comportamento observável dos astros - não eram capazes de fornecer uma explicação real dos fenômenos celestes, Galileu insistiu não somente na adequação empírica e preditiva do sistema heliocêntrico, como também afirmou sua verdade como explicação do que realmente se dava nos céus.
Entretanto, a concordância entre Popper e Duhem na análise do caso Galileu termina aí. Se Duhem reprova a idéia de Galileu e diz que o cientista pisano não compreendeu a natureza da teoria física, uma classificação matemática das leis observacionais sem pretensões explicativas, Popper, ao contrário, dirá que Galileu estava rigorosamente certo e que seu ideal é o ideal de todo cientista.
Popper, então, volta suas armas contra o que ele chama de "instrumentalismo", no qual ele aloca Ossiander, Roberto Bellarmino, Berkeley, Duhem, Mach e Poincaré. O instrumentalismo seria a doutrina segundo a qual as teorias científicas seriam não mais do que instrumentos, nem falsos e nem verdadeiros, mas mais adequados ou menos adequados, mais úteis ou menos úteis.
Popper afirma que os cientistas que são adeptos desse instrumentalismo só se interessam pelo domínio do formalismo matemático e por suas aplicações. Em outros termos, os cientistas estariam comprometidos somente com a construção de um conjunto manejável de descrições matemáticas dos fenômenos que seja útil para a predição, sem pretensões à verdade sobre a constituição última do mundo.
É certo que Popper oblitera as diferenças que existem entre os pensadores que ele chama de instrumentalistas, como as críticas de Duhem a Poincaré facilmente mostram. Mas o ponto central é claro: teorias científicas não podem ser somente um aparato matemático-preditivo sem pretensão de verdade.
Popper então afirma que a 'Tradição de Galileu" é caracterizada por três teses básicas:
1) "O cientista almeja encontrar uma teoria verdadeira ou descrição do mundo, a qual deve também ser uma explicação dos fatos observados."
2) "O cientista é capaz de estabelecer com sucesso a verdade de tais teorias além de qualquer dúvida."
3) "As verdadeiras teorias científicas, descrevem as 'essências' ou as 'naturezas essenciais' das coisas. - as realidades que residem por trás das aparências."
Popper aceitará somente a tese (1) e rejeitará a (2) e a (3).
Contra a tese (3), Popper une forças com os instrumentalistas Mach, Poincaré e Duhem e argumenta, com eles, que a teoria física não é capaz de descobrir essências, afinal ela só conhece o que é observável. Ele acrescenta, contudo, que sua crítica se dirige somente à doutrina segundo a qual o objetivo da ciência é encontrar uma explicação última, uma que não pode ser explicada por nenhuma outra.
Com isso Popper não está dizendo que não haja essências, mas que o cientista não tem porque assumir que elas existem. Do contrário, a crença em essências pode ser um obstáculo para a busca de explicações ulteriores, pois a curiosidade do cientista irá parar no momento em que identificar nos fenômenos estudados aquelas propriedades que ele considera como essenciais às coisas.
Contra a tese (2) Popper afirma que jamais uma teoria científica pode ser conclusivamente verificada ou provada. Por maior que seja o número de verificações empíricas que a teoria acumule, nada impede que no futuro ela encontre instâncias que não se adequam às suas predições e que, por conseguinte, a refutem.
Depurado do essencialismo através das refutações oferecidas, a "Tradição de Galileu" é representada somente pela tese (1): "O cientista almeja encontrar uma teoria verdadeira ou descrição ou descrição do mundo, a qual deve também ser uma explicação dos fatos observados."
A "Tradição de Galileu" se afirmava precipuamente por seu realismo e por suas consequente rejeição do instrumentalismo. Este é refutado por Popper, por seu turno, pelo fato de que é tão obscurantista quanto o essencialismo.
Para o instrumentalista, segundo Popper, as teorias científicas são meros instrumentos, mais ou menos adequados e convenientes, e jamais explicações verdadeiras do mundo. Ora, conceber as teorias científicas dessa forma seria criar obstáculos para o progresso do conhecimento, pois se elas são instrumentos, elas permanecem úteis dentro de dterminados âmbitos, mesmo que suas predições já não se apliquem a fatos fora de seu domínio.
Na medida em que a teoria é aplicada a campos mais vastos do que aqueles para os quais ela foi originalmente concebida, podem acontecer duas coisas: a teoria pode ter sucesso ou pode fracassar. Se tiver sucesso, ótimo!, permanece-se com ela. Se fracassar, conheceremos seus limites de aplicação. De certa forma, isso fomenta mais a acomodação do que a inovação. Esta só se impõe na medida em que o que se tem é considerado falso e se tem a urgência de uma nova solução.
A questão que se impõe é então: qual a posição de Popper? Ele rejeita a idéia de teorias científicas como meros instrumentos úteis e se alinha com o realismo de Galileu. Ao mesmo tempo, contudo, nele rejeita o essencialismo e a idéia de verificação definitiva das teorias. O que sobra?
Popper responde que a sua posição é uma alternativa tanto ao essencialismo quanto ao instrumentalismo. É uma "terceira posição" na qual as teorias científicas são tentativas ousadas cujo objetivo é descobrir a verdade, mas que nunca podem ser provadas definitivamente, só refutadas. Teoria científica é aquela de cujo conjunto de afirmações é possível derivar predições testáveis empiricamente.
As teorias científicas não são epistemé, conhecimento indubitável,e nem techné, técnica. elas são doxai, opiniões, conjecturas, controladas por testes empíricos. Não importa o quanto uma teoria seja confirmada, ela jamais será uma certeza. Todavia, quando suas predições são refutadas, sabemos algo do mundo. O mundo disse "não". O real foi tocado nesse ponto.
E se uma teoria é refutada, uma outra deve ser pensada para substituí-la. Ela deve, por sua vez, explicar o que a anterior explicava e, ao mesmo tempo, resolver os problemas nos quais a outra fracassou. A nova teoria será apenas uma conjectura, como sua predecessora foi, e jamais será provada conclusivamente. Mas ela estará, como as outras, sendo constantemente testada.
A concepção de ciência de Popper é um realismo não-essencialista no qual o real é tocado somente na negação empírica das expectativas oriundas das teorias. O cientista pode manter seu ideal de conhecer o real, mas ao preço de só conhecê-lo no momento mesmo em que erra.