domingo, 15 de janeiro de 2012

Pierre Duhem, Física e Metafísica


"Ora, essas duas questões: 'existe uma realidade material distinta das aparências sensíveis?' e 'de qual natureza é tal realidade?' não pertencem de forma alguma ao método experimental. Este só conhece as aparências sensíveis e não pode descobrir nada que as ultrapasse. A natureza dessas questões transcende os métodos de observação empregados pela Física. Ela é objeto da Metafísica. Então, se as teorias físicas têm por objetivo explicar as leis experimentais, a Física teórica não é uma disciplina autônoma. Ela está subordinanda à Metafísica." (tradução minha do original em francês)

PIERRE DUHEM, La Théorie Physique: son objet, sa structure, p. 31 (itálicos no original)

Segundo o físico, matemático, filósofo e historiador da ciência francês Pierre Duhem,  as teorias físicas não são explicações do real, ou seja, elas não revelam uma suposta natureza última por trás das leis experimentais. Estas, por sua vez, não são mais do que o comportamento manifesto das magnitudes físicas. A Física, então, trata somente de descrever essas leis experimentais em uma estrutura rigidamente matemática, na qual as leis mais periféricas e particulares são deduzidas de um conjunto limitado de leis mais gerais.

No trecho acima citado, Duhem mostra que a tentativa de fazer da teoria física uma explicação esbarra em duas perguntas cruciais. A primeira delas é a divisão entre aparência e realidade. Toda a filosofia, desde seus primórdios, discutiu o problema da aparência e da realidade. Por trás daquilo que percebemos usualmente há algo que constitui realmente aquilo que existe. Em outros termos, para alcançar a verdade dever-se-ia ultrapassar os dados imediatos da sensibilidade. Alguns filósofos vão mesmo negar que haja tal distinção entre aparência e realidade. 

O importante, contudo, é notar que essa diferença (ou sua negação) é algo a ser determinado de forma anterior à pesquisa física. Esta somente lida com o que aparece empiricamente, com aquilo que é manifesto aos sentidos ou aos aparelhos de medição. Se há uma estrutura última do real distinta do que aparece aos sentidos, essa realidade está fora do alcance da física.

A segunda pergunta é, logicamente, acerca da natureza dessa realidade última. Novamente, a teoria física não tem nada a dizer sobre isso, pois, como foi visto acima, ela parte das aparências, do comportamento manifesto dos corpos. 

A natureza última das coisas é determinada não pelos meios empregados no método de observação da teoria física, mas pelas discussões e teses da metafísica. Se a Física quiser ser uma explicação do real, ela terá de submeter-se à uma metafísica. Seus princípios deverão ser os postulados fundamentais dessa metafísica e  todas as leis particulares deverão ser rigidamente deduzidas deles.

Descartes, por exemplo, sumarizava no Discours de la Méthode sua posição sobre a construção de uma física dizendo que, em primeiro lugar, buscava em geral "os princípios, ou causas primeiras, de tudo aquilo que há, ou que pode haver, no mundo". Em segundo lugar, examinava quais eram "os primeiros e mais ordinários efeitos que se podiam deduzir dessas causas". E, por fim, na consideração dos efeitos mais particulares, a única dificuldade era saber de quais princípios gerais e simples se deveriam deduzí-los, pois, em geral, eles poderiam sê-lo de diversos deles.

A estrutura cartesiana dá o exemplo perfeito da fundamentação da Física na Metafísica. Esta determina as causas últimas do que existe, ou seja, distingue a aparência da realidade e dá a conhecer a natureza dessa realidade que reside além das aparências. Desses postulados fundamentais deduzem-se leis gerais que, por sua vez, servirão como base para a dedução das leis particulares, as leis experimentais do comportamento ordinário dos corpos.

Ocorre que se a Física estiver subordinada à Metafísica, então surgirão dois problemas. O primeiro deles é que o critério de avaliação de teorias não será só o sucesso preditivo e a adequação empírica, mas também, e precipuamente, a sua concordância com os postulados metafísicos de sua base teórica.

Ora, o sucesso preditivo não pode ser suficiente para a determinação da verdade de uma teoria pelo simples fato lógico de que de premissas falsas podem ser deduzidas conclusões absolutamente verdadeiras. A mera adequação não será suficiente pelo mesmo motivo, isto é, o fato de que as equações  concordam com o que se observa logicamente não garante a verdade da teoria.

O único modo de garantir a verdade da teoria que explica um determinado conjunto de fenômenos físicos é mostrar que ela pode ser deduzida dos princípios fundamentais da metafísica geral esposada pelo cientista. Não é suficiente que a teoria física não esteja em contradição com tais princípios, mas que ela seja rigorosamente deduzida deles.

Com isso, uma teoria física que descreve matematicamente um conjunto determinado de fenômenos de forma adequada e que permite predições acuradas pode ser rejeitada por não se deduzir dos princípios metafísicos ou por contrariá-los frontalmente.

O segundo problema decorrente da subordinação da Física à Metafísica é a escolha entre as escolas metafísicas. Qual delas escolher? Nenhum dado empírico ou experimental pode ajudar aqui porque, afinal,  a teoria física depende de antemão de uma metafísica.

O único jeito é discutir e argumentar. Em outros termos, é necessário filosofar. Isso significa que a física deverá ser acompanhada sempre da discussão de seus pressupostos metafísicos mais gerais e que o mero sucesso preditivo ou tecnológico não representará vantagem nessa discussão racional.

Para o físico/filósofo cartesiano, por exemplo, as leis de Newton serão absurdas, pois fazem uso de forças atrativas e repulsivas, o que não se pode admitir dentro de uma teoria mecânica que deve fazer uso somente da extensão e de suas propriedades, como largura, comprimento, profundidade e movimento por choque ou tração. Para os atomistas, ambos, cartesianos e newtonianos, estão errados, uma vez que tudo o que há são átomos dotados de massa, figura e dureza movimentando-se no vácuo. 

Atrelada à Metafísica, a Física deverá lidar com essas discussões e querelas. Duhem, contudo, não aceita essa subordinação e pretende mostrar que a Física pode ser uma ciência autônoma e o caminho para isso é limitar-se ao âmbito permitido por seus métodos próprios, isto é, ser uma classificação natural das leis experimentais regida pela mera adequação empírica e sem qualquer pretensão à explicação da natureza última dos fenômenos físicos.

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