"O que é importante, na ciência, não é a ausência de hipóteses se referindo a Deus, ou à metafísica como tal, ou a outras idéias filosóficas, mas sim a ausência de visões e de asserções que nos dividam. Se existem visões metafísicas que todos nós compartilhamos, então não haveria razão, desse ponto de vista, de banir tais visões metafísicas da ciência. (...) Até onde a sugestão de Duhem vai, a ciência pode empregar qualquer proposição ou asserção universal seja ela qual for, mesmo que ela seja de fato uma peça de metafísica ou de teologia. Talvez seja metafísica acreditar que realmente haja existido um passado, ou que existem realmente objetos materiais independentemente do pensamento humano. Se essas são asserções que todos ou quase todos fazemos, então nessa perspectiva, elas podem ser incluídas na ciência."(tradução minha do original em inglês)
ALVIN PLANTINGA, Methodological Naturalism?
Os pressupostos metafísicos determinam nossa relação com os fenômenos da experiência, informando toda e qualquer atividade cognitiva posterior. Se isso é assim, pressupostos metafísicos diferentes darão origem a metodologias e teorias diferentes entre si.
Um pesquisador que aceita um conjunto C de pressupostos metafísicos poderá trabalhar junto, numa mesma pesquisa, a um outro pesquisador que aceita um conjunto P de pressupostos diferentes ?
Para lidar com essa questão, o filósofo americano Alvin Plantinga desenvolveu os conceitos de “ciência duhemiana” e de “ciência augustiniana”, em parte reinterpretando as idéias desenvolvidas pelo físico e filósofo francês do início do séc. XX Pierre Duhem a respeito das relações entre ciência e metafísica. Segundo ele, Duhem afirma que toda explicação implica em asserções acerca da constituição última do fenômeno a ser explicado.
Um newtoniano conceberá a natureza do movimento, por exemplo, de forma diversa de um cartesiano que, por sua vez, terá conceitos diversos dos de um aristotélico. As diferenças aqui serão metafísicas. E se essas diferenças são importantes, então a física será subordinada à metafísica.
Segundo Duhem, “se a física teórica é subordinada à metafísica, as divisões separando os diversos sistemas metafísicos vão se estender ao domínio da física. Uma teoria física aceita como satisfatória pelos seguidores de uma escola metafísica vai ser rejeitada pelos partidários de outra.”
Ora, em posts anteriores já mostramos o cerne das idéias de Duhem sobre a teoria física a qual não será uma teoria acerca da natureza última dos fenômenos físicos, mas uma descrição matemática do comportamento observável das magnitudes físicas.
Inspirando-se nessa concepção e reinterpretando-a, Plantinga defenderá a idéia de uma atividade científica que se caracterizaria pelo uso exclusivo de pressupostos metafísicos aceitos de forma consensual e pragmática por todos os participantes de um campo de pesquisa científica.
Plantinga assevera que essa perspectiva, batizada por ele de "ciência duhemiana" envolve um certo “naturalismo metodológico” assim definido: “A doutrina filosófica do naturalismo metodológico sustenta que, para todo estudo sobre o mundo que se classifique como científico, não se deve fazer referência à atividade criadora de Deus (ou qualquer tipo de atividade divina).”
Ainda segundo Plantinga, o “naturalismo metodológico” é apenas a menor parte de uma atividade muito mais inclusiva. Se hipóteses sobre Deus não são usadas, também não são permitidas, por exemplo, hipóteses que tomem por necessária a verdade do naturalismo metafísico, segundo o qual nada há no mundo que tenha sido obra da atividade divina.
O naturalismo da “ciência duhemiana” é somente metodológico, tem cunho somente prático, instrumental e pragmático. Talvez então, Plantinga sugere, devêssemos chamá-lo de “methodological neutralism” ou de “metaphysical neutralism”.
Entendido nesses termos, o “naturalismo metodológico” não endossaria a posição metafísica chamada de teísmo nem a versão metafísica do naturalismo ou do materialismo. A “ciência duhemiana” seria, assim, uma atividade amplamente inclusiva baseada em pressupostos obtidos através de um consenso de cunho pragmático.
Então, Plantinga afirma, todos poderiam trabalhar juntos na “ciência duhemiana”. Entretanto, cada um dos grupos envolvidos – naturalistas e teístas, por exemplo (e outros também) – poderiam por sua vez incorporar a “ciência duhemiana” a um contexto mais amplo que inclui os princípios metafísicos e religiosos específicos de cada grupo. Chame essa ciência mais ampla de “ciência augustiniana”.
A “ciência augustiniana” é referência ao filósofo e teólogo da virada dos séculos IV/V, Agostinho de Hipona, responsável por uma robusta tentativa sistemática de harmonização da fé cristã com princípios da filosofia grega.
Plantinga admite que a motivação para fazer essa “ciência augustiniana” vai variar muito de área à área. Ela seria particularmente útil, segundo ele, nas ciências humanas e não tão útil na física e na química.
Respondendo então à pergunta se a comunidade científica cristã deve ou não observar os limites impostos pela “ciência duhemiana”, Plantinga responde: “Sim, é claro. Naquelas áreas onde a ‘ciência duhemiana’ é possível e valiosa.
Mas nada aqui sugere que a comunidade científica cristã não deva também se engajar em uma ‘ciência augustiniana’ onde isso for relevante. Não há nada aqui para sugerir que se não for duhemiana, não é ciência.”
Assim, para Plantinga, nada há de errado, numa perspectiva de “ciência augustiniana”, em um cientista cristão que use “tudo o que ele sabe sobre Deus e o homem por via da Revelação divina” na construção de teorias científicas.
Aqui de novo, a questão é de premissas e pressupostos metafísicos muito gerais, que vão determinar que tipo de teorias serão adequadas para lidar com os fenômenos daquilo que (parcialmente à luz desses mesmos pressupostos) se considera real.