quinta-feira, 28 de março de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo III)

"Mateticamente, podemos expressar que a 'unidade é a propriedade que resulta da completude em si da entidade de alguma coisa'."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p. 14

No terceiro capítulo de A Sabedoria da Unidade, o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos trata dos temas da unidade e da divisão. Se a unidade inclui a negação da divisão, pois tudo o que é unidade é indiviso, o sentido dessa negação não é o da inexistência da multiplicidade. Tudo o que é múltiplo é constituído de unidades que, em si mesmas, são indivisíveis. A unidade não é uma privação de multiplicidade, mas, ao contrário, o seu fundamento.

A unidade é, mateticamente, a completude em si da entidade de alguma coisa, isto é, a coisa é completa em seu ser, em sua própria entidade. A unidade per se é aquela na qual as partes nascem em torno da realização do Todo, tal qual uma célula viva. A unidade per accidens é aquela na qual as partes são unidades que estão organizadas segundo um plano que é imposto do exterior, tal qual uma cadeira que resulta da imposição de uma ordem extrínseca a materiais preexistentes e independentes entre si.

A unidade per accidens, como a expressão latina indica, é uma unidade por acidente, ou seja, a sua completude é dada de fora para dentro, na junção de partes independentes (as verdadeiras unidades per se) segundo uma ordem imposta extrinsecamente, e que, por isso, nunca formam uma unidade real, substancial, ou, em outros termos, nunca formam um Todo de verdade. É apenas uma conjunção, uma união de entes reais, uma multiplicidade reunida artificialmente sob uma unidade.

Mário Ferreira toca aqui em uma questão tradicional da filosofia: o que torna um ente uma substância real? A coisa que se constitui em um Todo real é aquela na qual a sua unidade é natural, nasce de si mesma, e não de uma junção acidental de partes independentes. Seres humanos, por exemplo, são seres naturais, reais unidades. Um exército, embora formado de humanos, não pode ser uma real unidade, dado que é a junção de partes independentes entre si, e que não necessariamente estariam unidas não fosse, nesse caso, um objetivo externo comum, a defesa e o ataque em conjunto.

Não há uma unidade real onde as partes que compõem um Todo são elementos que existem de forma independente uns dos outros, e que são reunidos por uma força ordenadora externa ou por um fim externo às próprias partes. No artefato, as partes são unidas de fora para dentro como no caso de um relógio que é montado pelo relojoeiro com peças preexistentes. No organismo, as "partes" nascem em conjunto dentro do Todo, por diferenciações internas que nunca as tornam completamente independentes entre si.

Tudo quanto é, é um, afirma Mário Ferreira. Tudo o que tem ser é unidade. Ao afirmar a si mesmo, isto é, ao ser aquilo que ele é, o ente afirma a sua própria unidade. Portanto, ser e unidade são intercambiáveis. O princípio de não-contradição postula que não se pode afirmar e negar, ao mesmo tempo e no mesmo sentido, o mesmo atributo com relação a um mesmo objeto. No fundo, esse modo de expressão lógico-formal é meramente negativo, só nega que algo possa ser e não ser o que é ao mesmo tempo. 

Assim, afirmar que "João é pedreiro e João não é pedreiro" é contraditório, pois João não pode ser pedreiro ao mesmo tempo em que não é pedreiro (ao menos enquanto "pedreiro" tenha o mesmo significado nos dois casos). O princípio de não-contradição somente adverte que a afirmação e a negação realizadas simultaneamente ferem algo de absolutamente fundamental na estrutura da realidade. 

O que é isso de fundamental na estrutura da realidade que é ferido pela afirmação e pela negação simultâneas de um mesmo atributo a um mesmo objeto? É o fato primordial de que um ente, ao ser X, nega todas as outras possibilidades de ser não-X. Há, antes de tudo, uma afirmação em todo ente que existe: "sou X", e essa afirmação, essa positividade, é seu simples ato de ser aquilo que ele é. Qualquer coisa, sendo o que é, afirma a si mesma, e, por conseguinte, nega ser qualquer outra coisa. 

O princípio de não-contradição é apenas uma forma negativa de expressar uma verdade muito mais fundamental. Se não é possível afirmar e negar ao mesmo tempo e no mesmo sentido o mesmo atributo com relação a algo, isso se deve ao fato mais fundamental de que tudo o que existe, ao existir, coloca somente a si mesmo na realidade, e esse colocar-se na realidade já é uma limitação que, consequentemente, exclui tudo o que não é ele mesmo. 

Na verdade, é a afirmação de si que todo ente faz ao existir que exclui as outras possibilidades de ser. E ao afirmar a si, cada ente afirma a sua própria unidade, a sua integridade e completude. A indivisibilidade (conceito que é meramente negativo, isto é, que nega a divisão no seio de um ente), é derivada da unidade do ente que, ao existir, só afirma a ele mesmo. O fato verdadeiramente fundamental é que uma coisa, um ente, sendo o que é, afirma a sua unidade (e, portanto, seus limites próprios), o que implica necessariamente a negação de todas as outras possibilidades que ele não é.

Mário Ferreira mostra que uma unidade, qualquer que ela seja, afirma uma positividade, um ser que, pelo simples ato de se aquilo que ele é, possui a aptidão de distinguir-se de qualquer outro. O ser não precisa de outro para afirmar-se. Que algo seja distinto de outro não constitui a essência do ser e da unidade. 

Alguns esclarecimentos se fazem necessários. A distinção que diferencia um ente de outro não corresponde propriamente à essência da unidade no sentido de que a distinção não é primária, mas decorre do fato de que o ente é uma unidade. O fato fundamental é a unidade, que se constitui em uma completude que contém em si tudo o que a coisa é. A distinção deste ente com relação aos outros entes se segue necessariamente da unidade, e não o contrário. 

Não é a distinção que funda a unidade. Ao ser algo, o ente afirma a si mesmo, e, concomitantemente, se distingue de todo e qualquer outro ente. Então, não é a distinção que torna as coisas o que elas são. É a unidade, o ser da coisa, que torna um ente distinto de outro. Tampouco se pode dizer que primeiro o ente é uma unidade, e depois ele se torna distinto dos outros entes. Não. O fato mesmo de o ente ser o que é o torna necessariamente distinto de tudo aquilo que ele não é. 

A distinção é uma relação que se estabelece entre os entes por causa da unidade que cada um deles é. A melhor maneira, e a mais segura, de conceber a unidade é concebê-la como uma completude em si mesma. Dessa forma, o que caracteriza a unidade está contido no próprio ente, e não em uma possível relação de distinção com qualquer outro ente. É certo que quando se trata de seres limitados, a unidade é também limitada, afirmando positividades que se distinguem das positividades de outros seres.

A lei do Ser, o logos do Ser, é a afirmação de sua unidade, diz Mário Ferreira. Poderíamos resumir, cremos, a tese do filósofo brasileiro dizendo que um ente, qualquer que ele seja, pelo simples fato de ser, afirma a unidade. Ser já é afirmar uma completude que, pelo menos aptitudinalmente, e, portanto, secundariamente, se distingue de qualquer outro ser. 

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quinta-feira, 7 de março de 2024

Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro IV, sobre o Bem)


"No primeiro princípio das coisas a simples existência é ela mesma a bondade primordial e absoluta em si. Assim como o Sol, luminoso em sua essência, e o fogo, quente por essência, não necessitam de qualquer auxílio para agir além de seu próprio ser (e cada um ilumina e esquenta por meio de seu ser), assim também o Bem em si, cuja natureza é a absoluta bondade (bonitas), não carece, para além dessa bondade, de nenhuma deliberação ou escolha por auxílio da qual pudesse transmitir suas bênçãos."

MARSILIO FICINO, Comentário aos Nomes Divinos, capítulo LXXIX

O quarto livro de Os Nomes Divinos, de Dionísio Areopagita, trata do Bem e do Mal. O Princípio último de todas as coisas para o platonismo é o Bem, como apontavam Platão na República e Plotino nas Enéadas. Tudo o que há, houve ou pode haver é uma manifestação (imitação ou participação) do Bem eterno cuja natureza é indizível e incognoscível. O Bem, por ser o Princípio de tudo, não está submetido a qualquer uma das limitações das coisas. 

Dionísio afirma que o Bem, pelo simples fato de sua existência, traz todas as coisas à realidade, tal como o Sol, sem nenhuma escolha ou deliberação, ilumina todos aqueles que são capazes de serem iluminados. O poder do Princípio se manifesta não por uma decisão ou uma deliberação de criar as coisas. O ser humano precisa deliberar e decidir se fará ou não algo, se tomará ou não determinado curso. Esse aspecto calculativo e discursivo da vida humana é um sinal de sua natureza limitada. 

Precisamos escolher este ou aquele curso de ação. Cogitamos, imaginamos e discursamos sobre as possibilidades à nossa disposição a fim de termos uma maior certeza do que faremos. As limitações desse gênero estão ausentes do Princípio último de todas as coisas. Seria errôneo imaginar que Deus estivesse em algum momento em dúvida acerca da criação das coisas. 

Dionísio repete nesse início de capítulo um tema já enunciado por Plotino: o Princípio gera os entes por sua simples presença ou existência. O que existe no mundo é fruto direto do Princípio como (utilizando o exemplo de Plotino) o fogo gera o calor. Onde há fogo, há calor. Não por uma deliberação do fogo, mas simplesmente por conta da sua essência. Quando se acende o fogo, a emanação do calor é imediata e persiste enquanto o fogo estiver presente. 

O Sol é um símbolo platônico do Princípio. Ele ilumina todas as coisas capazes de receber a sua luz. Em termos metafísicos, o Princípio traz à existência tudo aquilo que é capaz de existir. Cada um dos entes deste mundo possui uma essência por conta da qual pertence a um determinado tipo de ser. Essa é a sua limitação ou determinação primeira e fundamental. Nesse sentido, ninguém escolhe ser o que é. As coisas simplesmente são o que elas são. Não há, e nunca haverá, um momento anterior à existência em que haja a escolha de ser isso ou aquilo.

Marsilio Ficino, comentando Dionísio, afirma que "em todas as coisas posteriores ao primeiro, essência é uma coisa e a bondade outra". O Bem é o fundamento de todas as coisas. Entretanto, cada coisa é diferente da outra por sua essência. Dito de outro modo, é a essência que diferencia e que limita as coisas tornando-as isso ou aquilo. O Bem é a fonte e o fundamento de todas essas diferenciações, e, exatamente por isso, está acima de qualquer limitação essencial.

Obviamente, o Bem não gera as coisas como um ser limitado gera ou age. O ser humano age segundo a sua vontade e a sua razão, que são potências diferentes e nem sempre em concordância. Porém, nenhuma diferença existe entre a vontade e a razão em Deus, pois não há diferenciações no Princípio. O Sol, imagem visível de Deus, simboliza a ação criadora do Princípio justamente por iluminar todos os seres imediatamente, sem necessidade da deliberação que caracteriza o modo humano de criar e de agir.

"Deus, como o Bem, cria por Sua própria existência pura, isto é, por Sua bondade, enquanto outras coisas realizam o que elas realizam por participação nesse Bem", ensina Ficino. O Bem, então, não é pensado aqui no sentido moral, mas é tomado no sentido ontológico. O bem moral se segue do Bem ontológico, fundamento de tudo. O Bem é a realidade quando encarada como algo desejável. E nada pode ser mais desejável do que o Princípio último de todas as coisas desejáveis. 

Como dito acima, o Bem é a fonte de todas as coisas e, por isso, consequentemente, está acima de todas elas e não possui quaisquer das limitações que caracterizam as coisas. Nesse sentido, é possível dizer que o Bem é Não-Ser, e que é Não-Mente. Então, o Bem não existe e não pensa? Para compreender esse ponto, é preciso retornar ao princípio do discurso apofático, isto é, afirmar a perfeição para negar a imperfeição, e negar a perfeição para não afirmar a imperfeição.

Ao tratar do Princípio Absoluto de todas as coisas, a linguagem utilizada não deve afirmar alguma imperfeição, como dizer que o Princípio Absoluto é inexistente. Alternativamente, tampouco é adequado afirmar que o Princípio Absoluto é existente. No primeiro caso, atribui-se uma falta, uma privação. No segundo, afirma-se uma perfeição. Porém, é uma perfeição limitada. Se é errado dizer que o Bem é inexistente (por se tratar de uma privação), por outro lado, é inadequado dizer que o Bem é existente (na medida limitada em que, por exemplo, uma maçã é existente).

Então, quando se afirma que o Bem é Não-Ser, o que se deseja expressar é a absoluta transcendência do Bem, e não a sua inexistência. Decerto o Bem existe, mas em uma razão tão transcendente que, de certo modo, seria mais correto dizer que o Bem é Não-Ser, a fim de que as limitações próprias dos seres não lhe sejam atribuídas. A negação aqui não tem o papel de indicar uma insuficiência ou uma ausência, mas, ao contrário, indica a absoluta transcendência com relação a todas as coisas, quaisquer que elas sejam.

O Bem dá origem a tudo e abraça tudo, das mais sublimes realidades até às mais humildes, como o Sol ilumina tudo o que alcança. Todos os entes existem por causa do Bem e, cada um a seu modo, deseja e busca o Bem. Os seres intelectuais, buscam por meio do intelecto, os seres irracionais buscam por sua vida, os seres inanimados buscam por sua mera existência. Em todos os casos, os entes existem por causa do Bem e permanecem na existência na medida em que estão "voltados" ao Bem.

Não é necessário entender isso em termos literais, como se uma pedra tivesse desejo tal qual um ser humano deseja algo. A pedra tem a sua existência graças ao Bem. De certa forma, ela "sai" do Bem para a existência. Mas a pedra não se torna ontologicamente autônoma, como se pudesse existir sem mais nenhuma relação com o Bem. Ela precisa estar continuamente sustentada na realidade pelo Bem, o que, em certo sentido, significa que a pedra está sempre "voltada" para o Bem. 

Analogamente, um objeto amarrado a uma corda presa no teto permanece suspenso somente pelo tempo em que a corda o sustenta. Ele está dependurado (pendendo de), isto é, dependendo da corda para permanecer suspenso. Nesse sentido, a dependência tem duas "direções": ela "desce" do teto até o objeto pela corda, e "sobe" do objeto até o teto pela corda. O teto sustenta o objeto de cima para baixo, mas o objeto precisa estar ligado ao teto pela corda para que esteja suspenso. Trata-se de um só e mesmo fenômeno enxergado de dois modos diferentes. 

No fundo, o que Dionísio deseja expressar é a absoluta dependência ontológica das coisas com relação ao Bem. Há como um circuito, a "saída" e o "retorno" simultâneos das coisas ao Bem. A existência das coisas jamais significa uma separação absoluta do Bem, uma vez que sua permanência na existência só pode se dar pela ação contínua do Bem. Semelhante ao movimento circular de um objeto que, embora distanciado do seu centro, jamais se separa totalmente do centro adquirindo uma trajetória independente.

O Bem é igualmente chamado de Beleza. O que poderia ser mais belo do que o Princípio de onde todos os entes provêm? Platão, no Timeu, afirma que tudo o que é um artista deriva de um modelo consistente é belo. A beleza do cosmos indica, então, a sua imitação de um modelo que é eternamente consistente. O Demiurgo, autor da ordenação do Cosmos, imita as Formas eternas, e dá existência às coisas. O Bem é o modelo ao qual todos os entes imitam, cada um na sua medida.

Ao fim e ao cabo, diz Dionísio, é o Bem, enquanto Belo, que "causa as harmonias, as simpatias e as comunidades de todas as coisas". O Belo reúne e ordena, mantém os entes na existência, é o fim (telos, τέλος) de tudo o que há e pode haver. Ele é paradigmático (πᾰρᾰδειγμᾰτῐκόν), o modelo de onde todas as coisas adquirem seus limites próprios. Dionísio ousadamente afirma que mesmo o Não-Ser é belo, quando se refere ao Bem enquanto princípio absolutamente transcendente.

O Belo é o poder harmonizador de todas as coisas, realiza a coordenação universal, reúne por ligações eternas as misturas dos elementos. Proclo, comentando o Timeu, afirma que Atena possui um aspecto filosófico e um aspecto filopolêmico. Pelo aspecto filosófico, a deusa realiza a virtude, que está na ordem do formal. Pelo aspecto filopolêmico, ela realiza a harmonia entre os contrários no mundo. A polêmica (polemos, πόλεμος) é a guerra, a oposição sem conciliação. O Belo, tal qual Atena filopolêmica, é a conciliação daquilo que não estava unido e que não se manteria unido não fosse por sua ação.

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