quinta-feira, 13 de julho de 2023

Alvin Plantinga e a teoria evolucionista da religião como ilusão natural

"Na visão de Freud (e aqui ele está pensando especialmente nas religiões teístas) é uma ilusão, em seu sentido técnico. Tal sentido não é suficiente para inferir a falsidade da crença teísta, embora de fato Freud pense que o teísmo é falso: não há uma pessoa como Deus. Não obstante, ilusões têm seus usos e mesmo suas funções. A função ou propósito da crença religiosa é realmente tornar os crentes capazes de suportar este frio e hostil, ou ao menos indiferente, mundo no qual nos encontramos."

ALVIN PLANTINGA, Where the Conflict Really Lies, p.148

O livro Where the Conflict Really Lies é o livro mais recente trabalho do filósofo americano Alvin Plantinga. A obra versa sobre os alegados conflitos entre a ciência e a religião, e almeja, a partir de uma análise lógica detida, desfazer esses conflitos mostrando que eles não passam de uma compreensão equivocada do alcance epistêmico de determinadas teorias científicas modernas. 

Plantinga é muito conhecido e respeitado academicamente por seus trabalhos no campo da filosofia analítica, em particular na lógica e na epistemologia. Ocorre que, além de filósofo analítico, Plantinga é um devoto cristão reformado. Suas obras epistemológicas mais famosas compõem uma trilogia (Warrant: The Current Debate, Warrant and Proper Function e Warranted Christian Belief) onde ele aborda os conceitos tradicionais de conhecimento e de justificação racional, traçando as suas relações com a metafísica e com a fé cristã. 

Para quem gosta de argumentos rigorosos, clareza conceitual e respeito à lógica, características da filosofia analítica, o texto de Plantinga não decepciona. No capítulo 5 do livro, o autor apresenta algumas teses sobre a origem da religião para depois criticá-las. Talvez a mais simples e conhecida dessas teorias seja a de que a religião nasce do medo (defendida por Freud, entre outros). Os homens têm medo dos perigos cotidianos da vida e, a fim de controlar ou eliminar essa ansiedade, concebem deuses capazes de serem convencidos por orações, oferendas e rituais.

A tese não é nova, e Plantinga corretamente assinala que apontar a origem de uma crença não é dizer algo acerca de sua veracidade. Sim, os homens podem ter concebido os deuses por medo e, ainda assim, os deuses podem ser reais. Uma coisa não impede a outra logicamente. Imagine que alguém afirme que os ateus só são ateus por medo do Juízo Final. A motivação de alguém para sustentar uma crença não diz nada sobre a verdade ou a falsidade do ateísmo.

Essa versão do argumento do medo é bem fraca. Hoje há outras teorias mais sofisticadas, como aquelas da nova psicologia evolutiva. Plantinga mostra como a psicologia evolutiva, desde os trabalhos pioneiros de Edward O. Wilson, principalmente em Sociobiology: The New Synthesis, tem se esforçado para explicar o comportamento humano em seus mais diversos aspectos a partir de uma perspectiva francamente darwinista, isto é, em termos de seu valor adaptativo para a espécie.

O filósofo cita inclusive a curiosa (ou cômica) explicação de Steven Pinker para a quase ausência da música em seu calhamaço How the Mind Works. Segundo Pinker, a música seria "inútil" em termos de evolução humana e desenvolvimento, sendo somente uma espécie de auditory cheesecake, um doce que dá muito prazer sem trazer lá muitos benefícios. Com razão, Plantinga considera surpreendente ver algo tão importante como a música ser rebaixado desse jeito. Bach morreria de desgosto se morto já não estivesse, creio.

A redução darwinista não se restringe à música. Michael Ruse, autor de Taking Darwin Seriously, e Edward O. Wilson, defendem em artigos como Moral Philosophy as Applied Science que, literalmente, a ética é uma ilusão implantada nos homens a fim de fazê-los cooperar entre si, e que "humanos funcionam melhor se eles são enganados pelos seus genes para pensar que há uma moralidade objetiva desinteressada vinculante à qual devemos obedecer". O famoso Du sollst kantiano seria um truque genético.

Ainda mais surpreendente é a teoria de Herbert Simon, que Plantinga apresenta em seguida, segundo a qual o altruísmo não seria um comportamento concordante com nosso passado evolutivo, o qual exigiria que um ser humano racional funcionando perfeitamente deveria agir de modo a aumentar sempre as possibilidades de passar à frente seus próprios genes. Pessoas como Madre Teresa, cujo comportamento em favor do próximo em nada contribui para a passagem de seus genes adiante, só pode ser explicado por uma certa "docilidade" ou "racionalidade limitada" que as impede de distinguir o que realmente aumenta a "aptidão" para a sobrevivência. 

A psicologia evolutiva também busca explicar a origem da religião. Plantinga admite que não há consenso entre os evolucionistas sobre esse tema. Alguns tentam encontrar vantagens adaptativas na religião, enquanto outros defendem que ela só traz malefícios à espécie. Steven Pinker, por exemplo, parece ressuscitar o argumento do medo quando defende que a religião aparece como resposta ao desespero de quem vê todas as suas formas usuais de lida com o mundo hostil falharem. 

O historiador Rodney Stark defende a tese de que a religião uma espécie de "tapeação" (spandrel) para alcançar bens imaginários por meio de negociações com entes igualmente imaginários. Pinker e Stark estão sujeitos às mesmas críticas que a teoria de Freud. Mostrar a origem de uma crença não é demonstrar que ela é verdadeira ou que é falsa. Afirmar dogmaticamente que a religião lida com "entes imaginários" não torna a tese mais persuasiva.

A partir de toda a discussão das teorias evolutivas sobre a origem da religião empreendida por Alvin Plantinga nesse capítulo de seu livro, cremos ser possível inferir uma estrutura formal-argumentativa interessante que parece estar subjacente a todas ou à maioria delas. A estrutura seria a seguinte:

“X cria a ilusão da religião nos seres humanos com o objetivo de assegurar Y.”

Sendo X um conjunto qualquer de forças naturais irracionais, como os genes, a evolução, o subconsciente, etc, e Y sendo quaisquer efeitos benéficos tais como maior adaptabilidade, criação e manutenção da coesão social do grupo, propagação dos genes, etc. O argumento seria que, por exemplo, os genes “enganam” o ser humano fazendo-o acreditar na realidade de algo que não existe (os deuses) a fim de assegurar uma maior adaptabilidade ao meio circundante. Isto é, uma força natural irracional, os genes, “enganam” o ser humano racional com o objetivo de beneficiá-lo ao final com uma maior aptidão adaptativa.

Não é preciso pensar muito para ver que o pecado original desse gênero de argumentos é conceder algum tipo de intencionalidade e racionalidade prática meios-fins a forças naturais que, a princípio, são completamente destituídas de consciência. A questão é que as formulações desses argumentos científicos, como os da psicologia evolutiva apresentados por Plantinga, parecem não poder passar sem o uso desses termos intencionais. Contudo, há outros problemas. 

O argumento que defendia que a origem da religião estaria no medo tinha o defeito de que, como assinalamos acima, a origem de uma crença não diz nada acerca da veracidade da crença. A tese teria no seu centro uma falácia genética, isto é, a afirmação de que a verdade ou a falsidade de uma proposição pode ser determinada somente pelo conhecimento de sua origem. Porém, os argumentos apresentados por Plantinga fazem muito mais do que somente atribuir ao medo o surgimento da religião. Eles defendem que a religião é uma ilusão implantada no homem pelos genes, por exemplo. Não se trata do gênio enganador de Descartes, mas sim do gene enganador.

A intencionalidade parece sempre estar suposta nessas teses. Entretanto, é sabido, a teoria darwiniana concebe que a evolução é não-intencional, ou, como sintetizou Richard Dawkins, a evolução é um processo constituído por “mutação aleatória somado à seleção cumulativa não-aleatória”. Há dois problemas com essas formulações teóricas sobre a origem da religião que nascem do uso ambíguo da ideia de ilusão. 

O primeiro problema é que essas teses só fazem algum sentido na suposição prévia de que Deus não existe. O próprio Plantinga chama a atenção para isso quando examina as teorias de Steven Pinker e Rodney Stark. Retirando essa adição indevida, a tese se reduz a uma versão nova do antigo argumento sobre a origem da religião no medo. Substitui-se o medo por alguma outra força irracional, mas o resultado final é o mesmo, com os mesmos problemas lógicos.

A questão é que o argumento depende de um outro argumento para funcionar. A não ser que se prove antes que Deus não existe, o termo ilusão não pode ter o significado que se deseja dar a ele na tese. Na ausência de tal prova, a inexistência de Deus é apenas pressuposta como dada. Seria um tipo de petitio principii. Ou seja, toma-se por demonstrado aquilo mesmo que se deseja demonstrar. A bem da verdade, o argumento não pretende demonstrar que Deus não existe, somente apresentar a origem da religião como uma ilusão de origem natural que atende a determinados fins. 

Por outro lado, ele claramente supõe a verdade da inexistência de Deus para que o termo ilusão faça o sentido desejado de algo que se crê como verdadeiro, mas que é falso na realidade. Sendo ou não uma petitio principii, está claro que a formulação desse argumento carece de um complemento que deveria ser dado pelo próprio argumento ou por uma prova à parte. Na ausência dessa prova da inexistência divina, o argumento resta capenga, e no máximo, pode defender que na hipótese da inexistência de Deus, então os genes iludem os seres humanos, etc.

O segundo problema não é mencionado por Alvin Plantinga em seu livro. Ele mesmo não apresenta a objeção que vamos propor a seguir. Considere o sentido de ilusão. Iludir-se é se enganar em um juízo sobre a realidade. Tomamos como X algo que é Y. Julgamos que é uma cobra o que é na realidade uma corda, como no clássico exemplo vedantino. Repare que, no argumento citado, a “ilusão” é criada (intencionalmente?) por uma força natural e irracional.

Ora, quem ilude alguém necessariamente sabe que aquilo que diz ou apresenta se trata de uma ilusão. O ilusionista tem que saber que não é possível retirar magicamente um coelho da cartola para que ele possa iludir o público. Isto é, quem ilude sabe que está iludindo, sabe qual é a verdade. Quando aplicamos isso ao argumento de que “X cria a ilusão da religião nos seres humanos para assegurar Y”, parece haver uma só interpretação possível: X ilude os seres humanos sabendo que a religião é falsa, fazendo os mesmos seres humanos acreditarem que é verdadeira. Aí está o cerne do problema.

Ao dizer que X ilude os seres humanos, não está subentendido que, para que X possa enganar os humanos, X tem que saber que o que X diz é falso? No caso de X não saber que ilude, X também será um iludido. Se X é um iludido, será ele iludido por um outro? E este por outro anterior e, assim ad infinitum? É difícil enxergar como uma regressão ao infinito possa ser uma explicação para qualquer coisa. Afirmar um regresso ao infinito e dizer que não se conhece a causa do fenômeno que se quer explicar parece ser exatamente a mesma coisa.

De todo modo, se todos são iludidos, não há quem iluda. Nesse caso, que força explicativa teria o argumento se não puder identificar a origem da ilusão? Se a tese repousa inteiramente sobre a pretensa capacidade genética de criar no homem, por qualquer que seja o modo, a ilusão de que há deuses, reafirmar que o processo adaptativo inteiro não é teleológico e consciente não elimina o problema do sentido do uso termo ilusão. Haverá algum significado nesse termo quando utilizado em um contexto em que não há nenhuma consciência envolvida no ato mesmo de iludir?

Como se trata de um argumento naturalista, ou seja, um argumento que almeja reduzir a religião a um produto da mera Natureza, a causa da ilusão tem que ser uma entidade natural. É assumido de antemão que Deus não existe, e que não há nenhum sensus divinitatis que explique a origem da religião. O homem não possui nenhum sentimento inato e confuso da existência do Ser Supremo, dado que isso non ecziste! Sem Deus, a religião não passa de uma ilusão produzida por meios naturais para assegurar algum benefício adaptativo ao homem.

Acima foi mostrado como a tese parece recorrer a termos intencionais: "X cria ilusão com o objetivo Y". Se quem ilude tem que saber que está iludindo, então tem que saber qual é a verdade. Se a teoria diz que "X cria a ilusão da religião nos homens para assegurar Y", então, sendo X o que for, para que o termo ilusão tenha algum sentido, X tem que saber que ilude para alcançar determinado objetivo.

Em outros termos, se X é um ente natural irracional, então X tem que saber que está iludindo. Saber que se ilude alguém é saber que aquilo que se diz ao iludido é falso. Se só há duas alternativas, "Deus existe" ou "Deus não existe", então saber que "Deus existe" é falso é saber que "Deus não existe" é verdadeiro. Se X é um ente natural irracional que cria a ilusão da religião nos seres humanos, então X tem que saber que a religião é falsa, pois Deus não existe. 

O problema é: será possível atribuir a criação nos seres humanos da ilusão da religião a algum ente natural irracional sem atribuir a esse ente natural irracional, ainda que sub-repticiamente, o conhecimento da inexistência de Deus? Se sim, os defensores do argumento precisam explicar em qual sentido devemos entender essa ilusão a fim de evitar o problema acima aludido. Se não, o argumento é autocontraditório, pois atribui a entes naturais irracionais o conhecimento da inexistência de Deus, algo que só seria possível a um ser natural racional. 

Retornamos ao ponto inicial no qual o problema com teorias desse tipo era de que elas tomam como certa, e só podem ter sentido se tomarem como certa, a inexistência de Deus. Novamente, afirmar que a origem da religião é o medo (como Freud) não serve como refutação da religião e nem da existência de Deus. Se, para fins argumentativos, admitimos que Ele não existe, então a religião de fato é algum tipo estranho de ilusão e precisa ser explicada de algum modo, sendo os genes hoje o caminho mais em voga.

Desacompanhada da certeza da inexistência divina, a tese da origem ilusória da religião, contudo, resta hipotética na sua raiz. Trata-se de uma teoria científica que depende de uma tese metafísica que escapa muito ao âmbito próprio da psicologia evolutiva ou da biologia evolutiva. Toda ciência particular se dedica a um conjunto mais ou menos delimitado de objetos de estudo, e seus resultados se referem somente a esse campo restrito da realidade. Obviamente, é possível se discutir certas consequências filosóficas de teorias científicas, mas, por definição, isso se dá fora da própria ciência.

O cientista adota nas suas pesquisas um naturalismo metodológico, ou seja, tanto quanto possível, o cientista deve se limitar a propor explicações que invoquem somente entidades naturais ou consideradas naturais. As coisas naturais devem ser explicadas por processos ou entidades naturais. Daí não se segue logicamente que o cientista esteja obrigado a esposar um naturalismo metafísico segundo o qual tudo pode ser explicado por meio de entidades naturais. Pessoalmente, um cientista pode muito bem crer em anjos e demônios, só não pode utilizá-los como explicações para a queda dos corpos graves.

As teorias evolutivas acima expostas dependem do naturalismo metafísico para sustentar, em primeiro lugar, que a religião é uma ilusão, pois Deus não existe, e, em segundo lugar, para afirmar a necessidade de explicar como essa ilusão foi criada evolutivamente. Note-se que não se trata somente de explicar como a religião surgiu na espécie humana de um ponto de vista evolutivo, havendo ou não Deus, limitando-se ao âmbito biológico, antropológico ou psicológico. Antes, a teoria assume a negação metafísico-naturalista de Deus e, por conta disso, a religião tem que aparecer inevitavelmente como uma ilusão a ser explicada naturalmente.

Quem é o ente natural racional que sabe que Deus não existe, e que pode assegurar que a religião é uma ilusão? O próprio cientista que formula a tese da origem ilusória da religião. É ele que sabe, ou pretende saber, que nada há na realidade que esteja para além do natural e que garante que a religião só pode ser um tipo singular de ilusão. Decorre daí que, havendo só o natural na realidade, só elementos naturais irracionais podem explicar a produção da ilusão religiosa na mente consciente e racional do homem.*

Ça va sans dire, o cientista que pressupõe a metafísica naturalista e, por conseguinte, a inexistência de Deus, pode muito bem estar certo, como pode muito bem estar errado. A questão é que a suposição sobre a qual está fundada a teoria da ilusão da religião não é ela mesma científica, e sim metafísica. De todo modo, escapa ao âmbito mesmo de pesquisa e de estudo da biologia, da antropologia ou da psicologia. A inexistência de Deus é, no máximo, uma pressuposição metafísica, não um dado objetivo dessas ciências.

Quando analisadas filosoficamente, essas teorias evolutivas da origem ilusória da religião apresentam uma estrutura lógica que parece pressupor algumas condições metafísicas prévias para a sua inteligibilidade. E mesmo quando essas condições são assumidas, restam problemas acerca do próprio sentido do uso do termo ilusão no contexto de processos evolutivos inconscientes que produziriam na consciência humana a religião como elemento de aptidão adaptativa.

...

*É curioso como teorias desse tipo sempre colocam seus defensores em um patamar epistemológico muito acima da quase totalidade dos seres humanos desde Adão. "Todos sempre foram (como são muitos ainda hoje) iludidos por essas crenças primitivas da religião plantadas pelo inconsciente ou pelos genes. Nós, os cientistas, somos racionais, e temos que explicar esse comportamento aberrativo." 

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Leia também:

Νεκρομαντεῖον: Alvin Plantinga (oleniski.blogspot.com)

2 comentários:

Mauricio disse...

Interssante no budismo mahayana e no hinduismo adavaita temos o conceito de
"verdade relativa" e "verdade absoluta"
Pessoal da filosia ocidental seja ateu ou não adora uma "verdade absoluta"

Anônimo disse...

Da hora dms slk