"Está demonstrado que coisas que não podem ser percebidas ou imaginadas, e que seriam consideradas impossíveis se fossem testadas somente pela imaginação, no entanto possuem real existência. A inexistência de coisas as quais são representadas pela imaginação como possíveis foi igualmente estabelecida por prova, como, por exemplo, a corporeidade de Deus, e Sua existência como uma força residindo em um corpo. A imaginação não percebe nada exceto corpos ou propriedades inerentes aos corpos."
RABBI MOISÉS BEN MAIMÔNIDES, O Guia dos Perplexos, cap. LXXII
O grande filósofo e teólogo judeu do Al Andalus medieval, Rabbi Moisés ben Maimônides, também conhecido pelo acrônimo Rambam, no capítulo LXXII de sua obra maior O Guia dos Perplexos, escrito em árabe, apresenta as principais teses que compunham à época o Kalam, uma corrente teológica islâmica que apresentava argumentos pretendidamente racionais para provar suas teses centrais. Tais teólogos não devem ser confundidos com os falasifas, os filósofos islâmicos, como Al Farabi, Al Kindi, Ibn Sina ou Ibn Rushid, que apoiavam suas teses na herança filosófica grega. Ao contrário, eles rejeitavam explicitamente o recurso a teorias filosóficas gregas.
Conhecidos em seu conjunto como Mutakallemin, embora divididos em correntes como os Mu'tazillah e Asha'ariyah, os teólogos do Kalam influenciaram também o judaísmo. Maimônides cita Saadia Gaon e seus discípulos como exemplos de um Kalam judaico. É interessante notar que Maimônides salienta que os doutos judeus da Andalusia não adotaram os métodos desse Kalam judaico, mas acolheram dos filósofos gregos aquelas opiniões que não contradiziam os princípios da sua religião.
Apresentando as doze proposições básicas dos Mutakallemin, o rabbi de Córdoba, tece ao mesmo tempo alguns comentários sobre os seus óbvios problemas filosóficos. A primeira proposição ou postulado do Kalam é que o universo é composto inteiramente por átomos sem magnitude, adimensionais e absolutamente homogêneos criados por Allah segundo Sua vontade. As coisas não são mais do que configurações passageiras formadas pela junção desses átomos, e a sua destruição não passa da separação dos mesmos átomos.
Embora o Rabbi não comente diretamente essa primeira proposição, não é difícil perceber as suas dificuldades intrínsecas. Se os átomos são adimensionais, ou seja, são desprovidos de qualquer uma das dimensões corporais-geométricas (comprimento, largura, altura, profundidade, superfície) como eles podem se unir a outros átomos igualmente adimensionais para formar algo dimensional? Como diz Aristóteles na Física, para que duas coisas possam se unir, é preciso contato, e contato pressupõe limite de algum tipo. Algo que não possui nenhum limite justamente porque não possui nenhuma extensão não pode entrar em contato com nada, menos ainda com algo que seja igualmente adimensional.
As dificuldades, no entanto, só aumentam, pois na segunda proposição é afirmado que, a fim de que os átomos se movimentem livremente, há que haver um espaço absolutamente vazio, destituído de qualquer substância. Mais uma vez, o Rabbi não comenta as dificuldades da tese, mas, de novo, não é difícil perceber onde elas residem. Se já era problemático admitir que átomos adimensionais pudessem se juntar e gerar entes dimensionais, agora esses mesmos átomos se movimentam e, portanto, mudam de lugar em um vazio absoluto.
A questão é que, se algo é adimensional, como foi demonstrado por Aristóteles na Física, não pode, por definição, ocupar um lugar no espaço, e menos ainda mudar de um lugar a outro. Só o que possui magnitude pode se deslocar, pois ocupa um lugar graças à sua extensão, por exemplo. Retirada toda a dimensionalidade, não há como apontar um lugar de partida e um lugar de chegada.
Quanto ao vazio, resta saber o que os Mutakallemin querem significar com esse termo. Pelo que a proposição assevera, a interpretação mais provável é que eles estejam realmente tratando de um nada, e não somente de uma espécie de continente sem conteúdos (como um cântaro sem água), já que o Rabbi diz que o vazio do Kalam implica a ausência de toda substância. Se for o caso, então junta-se o adimensional com o nada para formar tudo o que existe.
A questão é que, se não há nenhum medium real que separe um átomo e outro, não se vê por qual razão eles não coincidam. Se entre o ponto A e o ponto B não existe rigorosamente nada, então nada separa A e B, e, por conseguinte, eles devem coincidir. Os teólogos do Kalam são obrigados a postular o vazio, como observa o Rabbi, por causa da necessidade dos átomos de se juntarem e de se separarem a fim de formar ou desfazer as coisas. Não haveria como essas mudanças acontecerem se houvesse somente átomos, eles pensam. Como tudo poderia ser ocupado por entes adimensionais é algo que escapa à compreensão.
Na terceira proposição é afirmado que o tempo é formado por átomos-tempo, cuja duração curta não pode ser medida. Maimônides diz que essa é uma consequência lógica da primeira proposição. O tempo, então, seria meramente uma extensão de momentos indivisíveis ordenados segundo sua posição anterior ou posterior na sequência. No fundo, isso é uma negação do tempo, pois o que o Kalam está dizendo é que não há permanência ou duração das coisas, mas somente a passagem de um átomo-tempo ao átomo-tempo subsequente. Sendo assim, eles admitem que nenhum movimento pode ser mais veloz que outro. Não é preciso expor as contradições disso com a realidade visível.
A quarta proposição diz que os acidentes são reais e que eles existem na substância, o que o Rabbi reputa como verdadeiro. O que o Kalam quer expressar é que, os átomos sendo absolutamente idênticos, o que vai diferenciá-los uns dos outros são os acidentes como cor, cheiro, sabor, vida, força, inteligência, etc. Em suma, todas as características das coisas apresentam não pertencem aos átomos dos quais elas são feitas, mas sim aos acidentes que são adicionados ou "colocados" neles por Deus. Se todos os átomos são igualmente sem características distintivas, o mundo formado por eles também não abrigaria entes com características distintivas.
É exatamente por essa razão que a quinta proposição afirma que os átomos são sempre providos com esses acidentes, e não podem existir sem eles. Nunca há e nem nunca haverá o átomo nu, sem acidentes e, consequentemente, sem qualidades distintivas. Mas que se entenda aqui que o átomo em si mesmo não possui traços próprios de nenhum gênero. Ele é como uma base indiferenciada sobre a qual são depositados os acidentes que distinguem as coisas umas das outras.
A sexta proposição é crucial para tudo o que vai ser dito adiante. Ela ensina que os acidentes não existem entre dois átomos-tempo. O que caracteriza o acidente é sua incapacidade de permanecer na existência logo após ter sido trazido à existência. Em outros termos, recordando que os átomos-tempo são indivisíveis como os átomos que formam as coisas são adimensionais, a cada ínfimo momento, Deus cria todos os acidentes de uma substância novamente. Não há nenhuma continuidade entre um momento e outro, de modo que para que um cachorro permaneça na realidade, por exemplo, é necessário que Deus crie a cada momento que passa todos os acidentes relativos ao cachorro.
O detalhe é que, não havendo nenhuma necessidade que ligue um momento a outro, todos os acidentes do mundo estão sendo criados e recriados continuamente a cada passagem de um átomo-tempo ao seguinte. A consequência lógica é que está absolutamente nas mãos de Deus criar ou não criar, a cada momento, os acidentes que farão um ente permanecer ou não na realidade, ou ainda, permanecer o que ele é/esteve sendo até aquele momento. Os Mutakallemin não têm peias em afirmar que, se Deus assim o desejar, pode descontinuar a existência de qualquer ente a qualquer momento simplesmente não recriando nele o acidente da vida, por exemplo.
Eles não só admitem, como também defendem como parte essencial de sua doutrina, que Deus pode a qualquer momento mudar os acidentes de um determinado ente, acrescentando alguma característica que ele usualmente não possuía ou retirando alguma característica da qual até ali o ente gozava. A razão disso, o Rabbi comenta, é que os seguidores do Kalam não querem atribuir às coisas nenhuma capacidade natural da qual os entes derivam suas propriedades. A consequência lógica é negar às coisas qualquer capacidade causal na realidade.
A tese segundo a qual somente Deus é o real agente causal em tudo o que acontece no mundo é conhecida como ocasionalismo divino. Na verdade, não há relações de causa e efeito no mundo que não sejam efetuadas direta e exclusivamente por Deus. Todos os acontecimentos são ocasiões nas quais o poder causal divino age no mundo, muito embora os homens pensem que uma coisa age sobre a outra ou mesmo que eles agem sobre essas coisas ou que agem sobre outros homens.
Não há ordem no mundo no sentido de um curso natural no comportamento manifesto das coisas. Há somente a vontade absolutamente livre de Deus que realiza todas as ações causais, e que pode mudar a qualquer momento os acidentes usuais de um ser, adicionando ou retirando propriedades, e até transformando-o em algo completamente diferente daquilo que foi até ali. O homem pensa que tinge um tecido com um pigmento escuro quando, na realidade, é só Allah que realiza a criação do acidente da cor escura no tecido onde estava antes o acidente da cor clara.
Na sétima proposição, os teólogos islâmicos afirmam que a ausência de uma propriedade é ela mesma uma propriedade. As estranhezas não terminam, pois, com essa tese, os Mutakallemin afirmam literalmente a existência real da ausência, da privação e do nada. Por exemplo, se um corpo interrompe o seu movimento, ele não somente deixa de movimentar-se, priva-se do ato de se movimentar, mas, segundo o Kalam, o corpo pára porque Allah cria nele o acidente do repouso. Isto é, aquilo que é mera ausência de uma propriedade é entendido pelos Mutakallemin como um acidente tão real quanto a presença dessa mesma propriedade.
É como se alguém que dissesse que "o cavalo não está no estábulo" imaginasse que em um momento o cavalo estava no estábulo e que, no seguinte, ele foi substituído por sua ausência, da mesma forma que coisas físicas trocam de lugar umas com as outras. A consequência dessa proposição é que, quando um ser vivo morre, a morte não será só a simples ausência ou privação da vida, mas terá de ser um acidente real criado por Deus em substituição ao acidente da vida, e, pior, terá de ser recriado indefinidamente a cada momento.
A oitava proposição diz que não há nada além de átomo e acidente, e que a forma física é também um acidente. A forma física de algo, com suas características sensíveis, é meramente um acidente adicionado aos átomos indiferenciados. Isso significa que a aparência de um gato é acidental, não é uma estrutura fixa que caracterize os gatos. Como todo acidente, a forma física não se mantém de um momento a outro, e tem de ser recriada ou mudada livremente por Deus. A nona proposição proíbe que um acidente seja acidente de outro acidente.
Na décima proposição alcança-se o corolário de tudo o que foi postulado até aqui. Não sem razão, o Rabbi Maimônides dedica à ela seu comentário mais extenso. Segundo a proposição, que seria uma "teoria da admissibilidade", tudo aquilo que é imaginável deve ser admitido como possível. Observamos que as coisas que vemos no mundo possuem certas características constantes. Contudo, nada impede que imaginemos que essas características pudessem ser diferentes. Por exemplo, podemos imaginar que animais que são pequenos pudessem ser gigantes e vice-versa.
Ora, se nada nos impede de imaginar que certas propriedades poderiam estar presentes ou ausentes, ou mesmo serem diferentes, nos entes que conhecemos na realidade, então não haveria motivo para negar a possibilidade real de existência de qualquer coisa que imaginemos. Portanto, se é possível imaginar, é possível na realidade. A objeção óbvia a esse raciocínio é que podemos combinar ou separar imaginativamente coisas que na realidade não podem ser combinadas ou separadas.
O Rabbi não dá os exemplos a seguir, mas cremos que ilustram facilmente a objeção. Ninguém duvida que é perfeitamente possível imaginar uma fogueira no fundo do mar ou um homem vivo sem cabeça, mas daí não se segue logicamente que qualquer uma das duas situações seja possível na realidade. A razão é simples: as coisas se apresentam na realidade com determinadas características que expressam uma ordenação fixa que define o que elas são, o que podem ou não fazer e o que podem ou não sofrer.
Sabemos que o fogo e a água, tais como se apresentam neste mundo, possuem propriedades essenciais que se anulam mutuamente. Não há como acender uma fogueira no fundo do mar justamente porque a água apaga ou inibe o surgimento do fogo. Do mesmo modo, o ser humano, tal como se apresenta neste mundo, não comporta a possibilidade de permanecer vivo quando está ausente ou foi decepada a sua cabeça. Só sabemos isso tudo porque compreendemos que há nas coisas uma estrutura fixa de propriedades que definem o que é cada coisa.
Não parece haver nada de intrinsecamente contraditório na imagem de um cavalo alado. Embora não se trate de uma impossibilidade lógica (como um triângulo quadrado), daí não se segue que essa seja uma possibilidade empírica. Dado como as coisas são na realidade, um cavalo alado é impossível sem que muitas outras condições não tenham também que ser mudadas. Mas os Mutakallemin defendem que não importa se um ente pertence a uma classe de coisas que possui um determinado conjunto de propriedades, a verdade é que nenhuma forma é mais provável do que outra.
Tudo o que se pode afirmar é que a estrutura permanente e constante de propriedades que um ser qualquer exibe neste mundo é comparável ao passeio a cavalo habitual de um rei pelas ruas de uma cidade. Ele pode repetir sempre o mesmo trajeto sem nunca perder a capacidade de mudar a sua rotina quando assim o desejar. Deus é esse rei que habitualmente recria os mesmos acidentes de acordo com cada tipo de ser sem que jamais esteja preso a qualquer forma ou modo de ação.
A implicação lógica é a de que Deus não está comprometido com a continuação de nenhuma estrutura constante na realidade. Sendo Ele o único que cria ou recria os acidentes das coisas a cada ínfimo momento, não há nenhuma ligação necessária entre um instante e o instante seguinte. O que equivale dizer que não há naturezas. Nenhum conjunto constante de propriedades caracterizam nenhum tipo de ser na realidade.
Consideramos que o cachorro tem certas características essenciais e fixas, e que definem o que é ser um cachorro distinguindo-o de todos os outros tipos de seres. Na realidade, o cachorro é somente o resultado do comportamento habitual de Deus que discernimos até este momento. Nada, absolutamente nada, exige ou obriga que o cachorro deva continuar existindo, ou mesmo que ele deva continuar exibindo as características que até agora exibiu. Tudo depende da decisão e da agência da única causa real no mundo: Deus.
O Rabbi Maimônides mostra que os Mutakallemin negam que haja uma Forma substancial (ou essência ou natureza) nas coisas e atribuem toda diferença entre os seres aos acidentes. Como os átomos são absolutamente idênticos e sem qualidades, eles podem receber a qualquer momento quaisquer acidentes que Deus deseje impor sobre eles, e como os acidentes são criados ou recriados a cada instante por Deus, eles podem ser adicionados ou retirados das coisas sem nenhuma contradição.
O resultado de tudo o que vai acima é que, segundo o próprio Rabbi, por exemplo, o ser humano não seria melhor constituído para se tornar sábio do que um morcego. Uma vez que os átomos são uma base indiferente e uniforme, que os acidentes são criados livremente a cada instante, e que não há nenhuma estrutura formal/essencial que defina os entes, tudo pode ser tudo (em que pese o fato de que mesmo os Mutakallemin admitam a impossibilidade de certas coisas). Com essa teoria da admissibilidade, os adeptos do Kalam podem provar o que quer que desejem provar.
Após expor a décima proposição, o Rabbi Maimônides escreve uma nota ao leitor onde explica o cerne do erro dos Mutakallemin. Aquele que conhece a alma e suas propriedades sabe que os homens e os animais possuem imaginação. A diferença entre os dois está em que o ser humano é capaz não só de imaginação, mas também de intelecção. O intelecto forma ideias abstratas das coisas, concebendo-as em suas formas verdadeiras, bem como deriva dos objetos muitos fatos, distingue aquilo que pertence ao gênero daquilo que pertence somente ao indivíduo, e determina se certas qualidades de uma coisa são essenciais ou não.
A imaginação, por seu turno, não realiza nenhuma dessas funções do intelecto. Ela só percebe o individual, o composto, o composto, o que se apresenta aos sentidos e é recolhido pela memória. Ela combina, une e separa aquilo que na realidade aparece unido ou separado. É assim que podemos imaginar um homem com cabeça de cavalo, com asas, e coisas desse tipo. A imaginação cria ficções, fantasmas. Não é capaz de fornecer uma concepção puramente imaterial de um objeto. Não produz teste para a realidade de uma coisa.
Muito há que a imaginação considera impossível e que, no entanto, é demonstravelmente verdadeiro. Se imaginarmos uma esfera tão grande quando queiramos, e colocarmos uma pessoa de pé no topo e outra de pé no lado de baixo, a pessoa de cima permanecerá de pé e a outra cairá. Não obstante, sabemos muito bem por demonstração racional que a Terra é esférica, e que o em cima e o em baixo são posições meramente relativas, de modo que nenhuma pessoa sobre a Terra cai por supostamente se encontrar na parte de baixo.
Resta demonstrado que há no homem uma certa faculdade que é de todo distinta da imaginação, e pela qual o necessário, o possível e o impossível podem ser distinguidos uns dos outros. Rabbi Maimônides refere-se à intelecção, a capacidade de abstrair, separar, a estrutura formal que define um determinado tipo de ser. É essa estrutura, que os antigos e os medievais denominavam Forma (eidos, essência, natureza), que permanece a mesma e que delimita o que é (quidditas, quid est?) aquele ser, o que ele pode ou não fazer e o que pode ou não sofrer.
Maimônides assume a posição aristotélica de que o mundo, embora tendo sua causa última em Deus, é composto por seres que exibem naturezas invariáveis pelas quais recebem seu ser e suas delimitações essenciais. Não fosse essa ordenação inscrita na própria estrutura da realidade física, nenhum conhecimento e nenhuma ciência seriam possíveis, pois todas as coisas estariam sujeitas às mais extravagantes transformações a cada momento. Em certo sentido, as coisas jamais seriam coisas.
Nenhuma ciência verdadeira do mundo pode ter sua base e limite na imaginação. Isto é, os meros dados dos sentidos, unidos na memória e compilados na imaginação, nunca ultrapassam o âmbito do individual. A ciência, contudo, só trata do que é universal, daquilo que vale para todos ou para a maioria, como já ensinava Aristóteles. O homem de ciência busca descobrir o que vale não para este caso particular, e sim o que vale para todos os casos análogos.
Necessariamente, ele busca uma estrutura comum a todos os casos a fim de poder derivar com certeza as propriedades, as capacidades, os poderes e as limitações daquele tipo de ser como um todo. Ao reduzir todo conhecimento humano das coisas aos acidentes sensíveis e observáveis que são criados e recriados de instante a instante por Deus, o Kalam destruiu de antemão a possibilidade de qualquer conhecimento comum ou científico da realidade.
O mesmo acontece com qualquer filosofia que reduza o conhecimento humano às informações sensíveis e à imaginação. Caso todo nosso conhecimento se limite ao que testemunhamos pelos sentidos, recolhemos pela memória e recompomos pela imaginação, nenhuma conexão necessária poderá ser estabelecida entre uma percepção e outra, entre um fato e outro, entre um acontecimento e outro. Isso se deve ao fato simples de que nem os sentidos e nem a imaginação (que deles depende) são capazes determinar ou captar uma ligação entre os fenômenos que não está diretamente à mostra sensivelmente.
O que nos permite captar uma ligação necessária entre os fenômenos, bem como entre as propriedades das coisas que observamos, é a intelecção de uma estrutura formal fixa que constitui a natureza daquele tipo de ser. Não inteligimos ou compreendemos essa natureza da coisa diretamente pelos sentidos. Vemos uma coisa que se apresenta a nós sensivelmente com determinadas características. Mas isso nada diz sobre a permanência ou não dessas características no futuro imediato, e nem é possível distinguir o que é essencial e o que não é essencial.
O intelecto é capaz de, a partir dos dados dos sentidos, mas para além deles, captar nas coisas uma estrutura subjacente que permanece a mesma, e que explica e garante que todos os membros daquele gênero terão basicamente as mesmas características, propriedades, capacidades e limitações. Sem conhecer as naturezas intrínsecas das coisas, torna-se impraticável qualquer distinção entre o possível e o impossível que não tenha a mera imaginação como único critério. O resultado é que o cavalo alado Pégaso será perfeitamente possível, e a Terra esférica será irremediavelmente impossível.
Não é de se espantar que, séculos depois dos Mutakallemin, uma filosofia como a defendida por David Hume, que reduz todo o conhecimento humano a impressões, percepções sensíveis, e ideias, cópias menos vivazes de impressões, não tenha condições de garantir que o pão que me alimentou ontem vai me alimentar hoje, e talvez também amanhã. Ao negar qualquer possibilidade de conhecimento empírico que ultrapasse os sentidos e a imaginação, Hume se coloca na mesma situação dos Mutakallemin (só que sem Deus). Não deve ser por pura coincidência que ambos falem do hábito ao tratar das regularidades naturais.
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Leia também: Νεκρομαντεῖον: Maimônides (oleniski.blogspot.com)
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