domingo, 11 de dezembro de 2022

Tomás de Aquino e o modo do conhecimento divino


"O conhecimento se dá de acordo com o modo daquele que conhece, pois a coisa conhecida está no conhecedor de acordo com o modo do conhecedor. Dado que o modo da divina essência é mais alto do que o das criaturas, o conhecimento divino não existe em Deus de acordo com o modo do conhecimento criado, tal sendo universal ou particular, habitual, potencial ou existindo de acordo com qualquer desses modos."

TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Questão XIV, artigo 1

Tomás de Aquino, na Questão XIV da Suma Teológica, discute o conhecimento de Deus. A primeira pergunta é saber se Deus possui conhecimento. Se Deus é onisciente, pareceria ocioso se perguntar se Ele possui conhecimento. O ponto é que Tomás deseja provar racionalmente a onisciência divina e não somente tomá-la como certa a partir da fé. 

O conhecimento humano é adventício, parte da ignorância ao saber, exige tempo e esforço, e, no fim das contas, não está assegurado o sucesso das tentativas de conhecer as coisas. Nesse sentido, o conhecimento é um hábito, o que na linguagem filosófica medieval significa uma disposição adquirida para algo. Nosso saber é habitual no sentido de que temos de adquiri-lo, o que é uma mudança temporal, e, já o tendo adquirido, ele permanece em nós como uma potencialidade a ser atualizada a qualquer momento. Por exemplo, o estudante não sabe álgebra, leva tempo para aprender, e, tendo aprendido, aquele saber fica à sua disposição para ser utilizado no momento em que desejar.

Obviamente, o conhecimento divino não pode ser desse gênero, dado que implicaria que em algum momento Deus foi ignorante, e, pior, que as coisas de algum modo antecedem a Deus. Para responder a essa dificuldade, Tomás inicia distinguindo os seres cognoscentes dos seres não-cognoscentes. O que os distingue é o fato de que os seres não-cognoscentes (os que não possuem capacidade de conhecer) só têm neles mesmos a sua Forma, enquanto que os seres cognoscentes podem abrigar outras Formas.

O que Tomás está dizendo é que o ser que conhece é capaz de receber em si mesmo, de alguma forma, as informações provenientes dos entes que o cercam. Por exemplo, nós percebemos as coisas a nosso redor, e nossa percepção é um ato de receber certas informações enviadas pelo objeto que percebemos. Se vejo uma cadeira, recebo em mim as imagens de seu formato, tamanho, cor, etc. Mas em nenhum momento eu posso dizer que essas informações sejam a própria cadeira que fisicamente se transfere para a minha cabeça. Isso seria absurdo.

Então, o que percebemos são aquilo que os medievais chamavam de espécies, as informações sensíveis das coisas que percebemos pelos sentidos. Essas espécies não são as coisas fisicamente. A cadeira não vem para a minha cabeça quando a vejo. Se ela viesse, ocuparia espaço, e não caberia na extensão da minha cabeça. Mais ainda, se a cadeira viesse à minha cabeça, ela se deslocaria no espaço e não poderia ser percebido por ninguém mais. O que ocorre, no entanto, é que a mesma cadeira é vista por muitos ao mesmo tempo.

Se muitos a vêem ao mesmo tempo, isso mostra que não é a cadeira que vem à minha cabeça como um ser físico, mas que algo é transmitido da cadeira ao observador, e que o que é transmitido não é físico, dado que não ocupa espaço. Isso que é transmitido são as espécies sensíveis da coisa física que percebemos pelos sentidos. Todo o conhecimento dos seres cognoscentes inicia justamente pelos sentidos. 

Os sentidos nunca percebem tudo o que há ao mesmo tempo. Não posso perceber pela visão todos os seres sensíveis que existem na realidade. Só percebo aqueles que estão a uma determinada proximidade. Quando estou na rua, não vejo mais a minha casa. Estando no Brasil, não posso ver a Torre Eiffel. Segue-se que nunca posso perceber todas as coisas perceptíveis ao mesmo tempo. A razão é que eu sou material, portanto ocupo espaço, e não posso estar próximo daquilo que está distante de mim.

A coisa tem que se apresentar a mim para que eu possa percebê-la pelos sentidos. Entretanto, o modo como as percebo não é espacial, no sentido de que as espécies vêm a mim e são captadas pelos sentidos sem que a própria coisa venha localizar-se fisicamente e localmente na minha cabeça (ou em qualquer parte do corpo). Vejo as espécies da cadeira sem que a própria cadeira venha se alocar fisicamente nos meus olhos.

Os seres cognoscentes possuem naturalmente essa capacidade de receber e reter em si mesmos essas espécies, informações dos outros entes a seu redor. As pedras, por exemplo, não são cognoscentes. Elas não recebem e retêm nelas mesmas as informações sensíveis do mundo a seu redor. Elas possuem sua própria Forma, ou seja, elas são pedras e nada mais que isso. Os seres cognoscentes possuem sua própria Forma, e esta inclui a capacidade de receber e reter as Formas dos outros entes. 

Por isso Aristóteteles diz no De Anima que "a alma é, de certo modo, todas as coisas". Não significa que a alma seja todas as coisas realmente. Isso seria absurdo. Algo não pode ser ele mesmo e algum outro ente ao mesmo tempo. O gato não pode ser cadeira ao mesmo tempo em que é gato. A alma é todas as coisas somente no sentido de que é capaz de receber e de reter as espécies advindas das coisas a seu redor. A natureza dos seres cognoscentes é a de ser capaz de acolher em si mesma aquilo que não pertence a ela naturalmente.

Um ser humano pode perceber um gato sem se tornar um gato e vice-versa. As espécies sensíveis do gato são captadas pelos sentidos do homem sem que ele mesmo se torne um gato. A pedra, em certo sentido, é impermeável, contida em si mesma, sem "aberturas" para os outros entes. Os seres cognoscentes, ao contrário, são permeáveis, podem ser afetados pelas na sua interioridade pelas coisas ao seu redor. Essa interioridade, é preciso reforçar, não é exatamente física. Um gato pode morder um homem, penetrando fisicamente com seus dentes na carne, no interior do corpo do homem. A cor do gato é percebida pelo homem sem que ele seja penetrado fisicamente.

Tomás assevera que tudo isso mostra que o conhecimento é possível por causa da imaterialidade. Ou ainda, o conhecimento é uma captação imaterial, poderíamos dizer. Daí se segue que quanto maior é a imaterialidade, maior é o conhecimento. A cor que vejo não é o próprio gato materialmente presente em meus olhos. É a captação visual de uma das espécies do gato. E essa cor não ocupa minha alma (ou mente) de modo material/físico. A pedra não é capaz disso por conta da ausência dessa capacidade de captação imaterial.

Recebemos as espécies sem a matéria, diz Tomás citando Aristóteles. A cor do gato é ainda algo que pertence ao seu corpo. Quando dizemos que um ente é um gato, o que queremos expressar é algo que vai muito além da sua cor. Gatos podem ter muitas cores. Todo gato tem que ter cor, mas nem todo gato tem a mesma cor. Alguns são pretos, outros brancos, outros são mesclados, etc. Mas nada disso importa quando dizemos "isso é um gato". O que interessa não é sua cor, que é variável, mas sim aquilo que é invariável em todos os gatos e que os torna exatamente gatos.

A gatidade do gato, por assim dizer, é sua Forma (eidos, εἶδος, essência), aquele conjunto mínimo de características que fazem de um gato um gato e não outra coisa. A Forma não é o formato externo da coisa (embora implique o formato), mas sim aquilo sem o quê um ente não pode ser um gato. Quando afirmo "isso é um gato", estou apontando não para seu tamanho, sua cor, sua idade, características variáveis, e sim para a classe a que aquele ente pertence. Estou dizendo que tipo de ser ele é.

Ora, essa informação não é exatamente captada pelos sentidos. O que sabemos dos seres sensíveis é inicialmente captado por meio dos sentidos, embora não se restrinja aos sentidos. Dizer a que classe ou tipo de ser algo pertence vai além do que cada sentido pode informar. Os olhos podem perceber a cor e o formato do objeto, o olfato percebe o cheiro, o tato capta o formato e a superfície do objeto. Nenhum deles diz o que é o objeto.

Saber o que é o objeto é, a partir desse conjunto de informações sensíveis, separando o que é invariável do que é variável, captar aquilo que é próprio e característico de um certo tipo de ser.  Gatos são diferentes de pedras. O que distingue essencialmente um gato de uma pedra é justamente aquilo que indicamos quando dizemos o que é o objeto. Eles podem ser até do mesmo tamanho, peso, largura, etc. Não é isso que os distingue. Gatos são entes animados e pedras são entes inanimados. 

Gatos e cachorros são ambos seres animados e mesmo assim são distintos. As características típicas de um cachorro não são as mesmas daquelas dos gatos. Captar o que torna um ser vivo um gato e não um cachorro é saber o que é um gato. Essa captação vai além daquilo que os sentidos informam. É apreender um conjunto invariável de características que está presente em todos os gatos, mesmo aqueles que eu jamais observei. Essa é a Forma do gato, o que é um gato.

No ser humano, essa apreensão da Forma, chamada de abstração (separar), é realizada pelo intelecto. Assim como as espécies sensíveis de um gato não implicam o gato físico ocupando espaço nos meus olhos ou na minha cabeça, a Forma também não é o gato fisicamente dentro do meu intelecto. O ato de intelecção, que é próprio do intelecto, é ainda mais imaterial do que as espécies sensíveis.

A intelecção intelige aquilo que no objeto é inteligível. Em outros termos, é o ato de compreender aquilo que há de compreensível na coisa. Inteligir é captar o que é a coisa, e o que é a coisa é aquilo que nela é capaz de ser compreendido. O fato de que as coisas possuem uma Forma é o que as torna inteligíveis, compreensíveis. E é por causa do intelecto que o homem pode inteligir aquilo que nas coisas é inteligível.

Se o ser humano não possuísse intelecto, aquilo que é inteligível nas coisas passaria despercebido. Se o ser humano tivesse intelecto e as coisas não fossem inteligíveis, não haveria conhecimento. O caso é que felizmente o ser humano possui intelecto e as coisas possuem Forma, o que as torna inteligíveis. As duas condições têm de estar presentes para que haja conhecimento: o inteligente e o inteligível.

O intelecto apreende a Forma do objeto, o que é o objeto. Conhecer perfeitamente é conhecer a Forma do objeto. Mas o ser humano só alcança a Forma a partir das espécies sensíveis. O que implica que para o homem o conhecimento é algo que só acontece na presença ou na memória da presença do objeto. Não estando ou tendo estado o objeto presente, o conhecimento não se realiza. E o ato de conhecer também implica uma extensão temporal para a sua aquisição e, uma vez adquirido, uma potencialidade para a sua utilização.

Ora, nada disso cabe em Deus. Como pode Ele possuir conhecimento? Obviamente, o conhecimento divino não é idêntico ao conhecimento humano. O ser humano, dado que é um ente limitado corporalmente, necessita de sentidos para obter informações dos entes ao seu redor. Deus não é limitado corporalmente, não tem necessidade de sentidos. Ele conhece as coisas em Si mesmo, e não como algo externo e espacialmente separado.

O conhecimento é uma captação imaterial, como dito antes. Quanto maior a imaterialidade, mais perfeito é o conhecimento. Conhecer algo perfeitamente é conhecer a Forma. Dado que Deus é puramente imaterial, Seu conhecimento não vem pelos sentidos e nem implica tempo. Deus conhece imaterialmente e, portanto, conhece do modo mais perfeito todas as coisas. Por conseguinte, o conhecimento em Deus não é um hábito, é um ato puro atemporal.

O conhecimento, Tomás arremata, se dá de acordo com o modo do conhecedor, pois a coisa conhecida está no conhecedor de acordo com o modo do conhecedor. Deus sendo imaterial, seu conhecimento é imaterial. Nenhuma das limitações do conhecimento humano se aplicam a Deus.

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Νεκρομαντεῖον: Tomás de Aquino (oleniski.blogspot.com)

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