domingo, 4 de dezembro de 2022

Leibniz e a reformulação do argumento ontológico

"Denomino Perfeição toda qualidade simples que é positiva e absoluta, ou que exprime sem limite algum tudo aquilo que ela exprime."

G.W. LEIBNIZ, Quod Ens perfectissimum existit

O filósofo, físico e matemático alemão Gottfried Wilhelm Leibniz escreveu em 1676 um curto texto, Quod Ens perfectissimum existit, em que apresenta a sua tentativa de reconstrução do famoso argumento ontológico. À época, Leibniz estava retornado de Paris e se aprofundava durante o caminho nas obras de René Descartes. É nessa viagem que ele se encontra com Baruch Spinoza.

O argumento ontológico, em sua formulação clássica, fora formulado primeiramente pelo pensador medieval Anselmo de Cantuária em sua obra Proslogion. O argumento era a resposta a um pedido de alguns monges que instavam Anselmo a apresentar uma prova puramente racional da existência de Deus. O filósofo apresentou a eles uma demonstração a priori, por pura lógica e sem remissão aos sentidos, da realidade de Deus.

Anselmo diz que "o ser do qual não se pode conceber nada maior" não pode existir somente como um conceito na mente de quem o concebe, pois nesse caso ele não seria "o ser do qual não se pode pensar nada maior". Haveria contradição em afirmar ao mesmo tempo que ao "ser do qual não se pode pensar nada maior" nenhuma perfeição está ausente e que, no entanto, ele não existe. Se não existe, então não é "o ser do qual não se pode pensar nada maior", pois a existência seria uma perfeição que lhe faltaria.

Assim, dada a definição de Deus como o "ser do qual não se pode pensar nada maior", negar sua existência seria uma contradição lógica. O argumento de Anselmo não é um raciocínio no sentido de um encadeamento de premissas das quais se deduz uma conclusão. É uma operação de análise do conceito pela qual se compreende tudo o que nele está implicado logicamente. 

Se digo que "todo solteiro não tem sogra", nada mais afirmo do que o que já está implicado no próprio conceito de "solteiro". Do mesmo modo, o argumento anselmiano é menos um argumento do que uma análise do conceito de Deus. Isto é, o próprio conceito de Deus como "o ser do qual não se pode pensar nada maior" inclui logicamente a existência como uma de suas notas.

Descartes, já no século XVII, reformula o argumento em suas Meditações Metafísicas postulando como uma idéia clara e distinta que Deus é o ser soberanamente perfeito e ilimitado e que tudo o que posso demonstrar clara e distintamente de algo pertence necessariamente a esse algo. Um ser perfeito e ilimitado não pode estar privado da existência, pois tal seria uma limitação e uma imperfeição. Então, necessariamente Ele existe.

Há diversas objeções ao argumento ontológico que remontam até ao tempo de Anselmo. O mesmo acontece com as tentativas de sua reformulação. Leibniz tenta reformular o argumento começando por definir o que ele entende como perfeição:

"A Perfeição é toda qualidade simples que é positiva e absoluta, ou que exprime sem limite algum tudo aquilo que ela exprime. Ora, tal qualidade, dado que é simples, é irresolúvel ou indefinível, pois, de outro modo, não seria uma, mas agregado de muitas. Ou, sendo uma, seria circunscrita dentro de limites, contra a hipótese que a colocou como puramente positiva. A partir daí, não é difícil mostrar que todas as qualidades são compatíveis entre elas ou podem estar em um só sujeito.

Cabem aqui alguns comentários interpretativos dessa primeira parte do argumento. O texto de Leibniz se restringe a formular a prova sem esclarecimentos mais detalhados. Mas creio que podemos facilitar sua compreensão. Primeiramente, o filósofo define a Perfeição como uma qualidade simples, absoluta e que exprime sem limites o que ela exprime. Depreende-se disso que a Perfeição é uma qualidade em manifestação infinita. 

Tomemos a qualidade "bondade". Segundo a definição acima, se a bondade é perfeita, então ela é infinita. Isto é, a perfeição da bondade não apresenta nenhum limite. Se não há limite, então não há lugar para nada que não seja ela. Sendo assim, onde não há limite, não há o outro, e, portanto, não pode haver multiplicidade, pois o múltiplo exige o limite. Não pode haver uma quantidade qualquer de qualquer coisa a não ser que haja limites que distingam uma coisa da outra.

A bondade infinita é irresolúvel e indefinível. Irresolúvel porque não se reduz a nada que não seja ela mesma. Em outros termos, ela não é composta por nada que não seja ela mesma. Indefinível porque a definição reúne em si o conjunto mínimo de características que fazem de algo o que ele é. A definição encontra e expressa os limites da coisa definida em uma fórmula única. É impossível definir algo sem dizer os seus limites próprios. Consequentemente, uma qualidade infinita é indefinível, posto que não possui limites.

Tendo definido a Perfeição, Leibniz julga que não será difícil mostrar que todas as qualidades são compatíveis entre si ou podem estar todas em um sujeito. Esse passo é crucial para Leibniz avançar na direção da existência de Deus. As qualidades, sendo perfeitas, podem todas estar em um sujeito (no sentido de "em algo") ao mesmo tempo, no mesmo nível e sem contradições? Para responder a essa pergunta, Leibniz apresenta a segunda parte de sua argumentação.

Tomemos a seguinte proposição: A et B são incompatíveis. A e B são qualidades perfeitas no sentido acima definido. Está claro que não se pode demonstrar essa proposição sem a resolução dos termos A ou B ou dos dois. Se for possível demonstrar a verdade dessa proposição, então seria fácil mostrar a incompatibilidade de quaisquer outras qualidades ou dessas mesmas. Mas sabemos que A e B são irresolúveis. Então, não se pode demonstrar essa proposição.

Eis o ponto crucial. Leibniz criticou o argumento de Descartes por ele supor sem demonstração de que todas as perfeiçoes estão em Deus de modo infinito e de que elas não são incompatíveis entre si. O alemão tem que mostrar que é possível que as qualidades não se excluam mutuamente. Para isso, ele apresenta a proposição "A e B são incompatíveis", tendo as letras como representações de qualidades perfeitas. A pergunta, então, é se qualidades infinitas, quaisquer que sejam, podem ser incompatíveis.

O caminho tomado por Leibniz é muito elegante. Ele diz que a proposição "A e B são incompatíveis", se verdadeira, tem de ser demonstrável, posto que não é evidente. Se essa proposição não é conhecida por si, então não é necessariamente verdadeira. Se não é necessariamente verdadeira, é logicamente possível que seja falsa. Isto é, nada impede que a proposição seja falsa. Por isso, é bem possível que qualidades perfeitas não sejam incompatíveis e que estejam todas em um só sujeito.

Nada impede que se conceba um ser no qual estejam presentes todas as qualidades de modo perfeito ou o ser todo perfeito. Donde está claro que ele existe, pois a existência está compreendida entre as perfeições.

Leibniz remove desse modo a dificuldade que encontrara no argumento de Descartes acerca do Ser Perfeito. Basta mostrar que as qualidades perfeitas não são necessariamente incompatíveis para permitir a concepção de um ser que as possua todas. O conceito de um Ser Perfeito não contém contradições, já que aquilo que não é necessariamente impossível é necessariamente possível. Não havendo impedimentos lógicos para a concepção de um ser absolutamente perfeito, é completamente possível afirmar que se um ser é perfeito, ele necessariamente existe.

Mais alguns comentários. O argumento de Leibniz não prova que Deus existe. Somente demonstra que um Ser Perfeito é concebível sem contradições. A presença de todas as qualidades de modo perfeito em um único sujeito é possível, dado que a incompatibilidade não é evidente/necessária. Se uma proposição não é evidentemente verdadeira, não é necessariamente verdadeira. É o mesmo que afirmar que ela pode ser falsa.

Quando digo que "todo solteiro não tem sogra" não necessito de nada além do significado dos termos para saber que ela é verdadeira. A razão disso é que o termo "solteiro" exclui o casamento. Quem não casa não tem sogra. Quando afirmo que "A e B são incompatíveis", sendo A e B perfeições, não digo nada de evidente/necessariamente verdadeiro. Logo, não há necessariamente incompatibilidade entre as perfeições. Significa que a proposição é falsa? Não, significa apenas que pode ser falsa. Significa que é verdadeira? Também não, significa somente que nada impede que ela seja falsa.

A e B são perfeições. Se nada evidente impede a conjunção, pelo menos sabemos que a proposição é possível. Leibniz não desenvolve no texto as razões pelas quais as perfeições não são necessariamente incompatíveis. Há algumas indicações, contudo. Tomemos o fato de que as perfeições, tal como definidas no início do raciocínio, são indefiníveis. Sua indefinibilidade se segue de sua infinitude. Por lógica, algo metafisicamente infinito não pode ser definido justamente porque o que é infinito não possui limites.

Ora, se as qualidades perfeitas são infinitas, elas são indefiníveis. Não resta obstáculo para a compatibilidade entre as qualidades na medida em que sua infinitude as destitui dos limites que as distinguem umas das outras. A incompatibilidade só existe na medida em que a presença de uma parte exclui a presença de outra. A indistinção que se segue da infinitude extingue a presença de partes que se excluiriam.

As qualidades neste mundo não são sempre compatíveis, ou pelo menos não no mesmo grau, por conta de sua finitude. Uma limita a presença da outra. Um exemplo simples disso é a impossibilidade de haver ao mesmo tempo e no mesmo grau a liberdade, a fraternidade e a igualdade. Se tentamos igualar as coisas, limitamos a liberdade. Se exigimos a fraternidade, limitamos a justiça, e assim por diante.

A totalidade das perfeições pode estar em Deus exatamente porque Nele tudo é uma e só realidade. A simplicidade divina se deve, por assim dizer, à sua infinitude. Deus, sendo infinito, não possui nenhuma limitação em nenhum sentido ou grau. Por isso Ele é simples, sem limites internos ou externos. Nós vemos as qualidades de modo limitado, onde cada uma difere da outra e, em certas situações, elas são incompatíveis entre si. Em Deus, porém, elas são uma e a mesma natureza simples.

Poderíamos enunciar uma lei: todas as infinitudes metafísicas se reduzem à uma unidade puramente simples ou não há e nem pode haver múltiplas infinitudes metafísicas. Na medida em que é perfeita, a qualidade se confunde com o próprio Ser de Deus. As qualidades, então, como definidas por Leibniz, seriam a própria natureza una e simples de Deus.

Como disse anteriormente, Leibniz não realiza esse desenvolvimento no texto a fim de mostrar que poderia haver um caminho para não só afirmar a ausência de incompatibilidade lógica e evidente entre as perfeições, mas também afirmar a necessidade de sua compatibilidade. A argumentação que apresento aqui estaria, creio, em harmonia com a metafísica da natureza divina tanto da tradição platônica (Anselmo de Cantuária, Nicolau de Cusa e Marsilio Ficino), quanto da tradição aristotélica (Tomás de Aquino).

O que percebemos como multiplicidade é em Deus pura unidade. Em certo sentido, poderíamos afirmar que não há perfeições a não ser a natureza divina diversamente captada pelo ser humano com seus limitados meios de cognição. O que é percebido é percebido na medida do percipiente. Desse modo, as perfeições não seriam somente compatíveis, mas seriam necessariamente uma só e mesma natureza divina metafisicamente simples e infinita. A infinitude metafísica poderia estar privada da perfeição da existência?

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