"Idem velle et idem nolle vera amicitia est. Creio que é difícil bem amar Deus quando não se está na disposição de querer aquilo que Ele quer, quando se teria o poder de mudá-lo. Com efeito, aqueles que não estão satisfeitos com aquilo que Ele fez parecem-me semelhantes àqueles sujeitos descontentes cuja intenção não é muito diferente daquela dos rebeldes." (tradução minha)
G.W. LEIBNIZ, Discours de Mètaphysique, IV
As primeiras proposições da obra Discours de Métaphysique (1686), do filósofo, físico e matemático alemão Gottfried Wilhelm Leibniz, são dedicadas a teses acerca da natureza de Deus. Logo de início, Leibniz explica a noção de Deus como a de um Ser absolutamente perfeito, em quem residem, em grau soberano e simultaneamente, todas as muitas perfeições que há na Natureza.
As perfeições são aquelas que não implicam contradição quando elevadas a seu grau máximo. As naturezas dos números e das formas geométricas não podem ser perfeições, pois seria contraditório afirmar a existência de um número maior que todos ou uma figura maior que todas. A ciência e a onipotência em grau soberano, contudo, não implicam nenhuma contradição. Se Deus possui o poder e o saber infinitos, segue-se que Ele age sempre da forma mais perfeita moral e metafisicamente.
A segunda proposição se dedica a afirmar a bondade intrínseca de tudo o que Deus realiza. O ponto é que Leibniz deseja se distinguir daqueles que, como Descartes, pensam que as obras divinas são provenientes somente da vontade divina, de tal modo que o que é bom neste mundo é bom somente porque Deus quis que elas fossem do jeito que são. O que implicaria dizer que não há uma razão pela qual as coisas sejam boas a não ser pela livre vontade de Deus.
Se assim fosse, Deus poderia ter feito as coisas de tal modo que aquilo que é bem fosse mal e o que o que é mal fosse bem. Aqui se insinua uma distinção entre a vontade divina e a razão divina. Dado que a vontade é absolutamente livre, não há nenhuma necessidade racional intrínseca pela qual as coisas sejam do modo que são. Deus poderia muito bem ter feito o oposto de tudo o que fez sem que houvesse nenhuma contradição. As verdades eternas seriam essas que são e não outras por simples vontade divina e não por refletirem a razão divina.
Ora, afirma Leibniz, se em Deus não houvesse a colaboração da razão, as coisas não seriam boas intrinsecamente. E se as coisas não são boas, não haveria razão para louvar o Criador pela bondade e beleza da Criação, já que ela poderia ser o contrário daquilo que é. Deus seria como um tirano cuja vontade arbitrária é lei. Por outro lado, quem opta só pode optar na medida em que tem alguma razão que antecede sua vontade. As verdades eternas da metafísica, da geometria, do bem, da justiça e da perfeição não podem ser frutos só da vontade, mas sim do entendimento divino que precede a Sua vontade.
A terceira proposição afirma que estão errados os modernos que, por ignorância dos antigos, afirmam que Deus poderia ter feito um mundo melhor do que Ele o fez. Essa visão baseia-se no parco conhecimento que temos da harmonia geral do universo e das razões ocultas que Deus possui para fazer as coisas como as fez. Todas as ações de Deus são soberanamente boas e guiadas por Sua razão. Se diante das possibilidades A e de B, Ele escolhe A sem nenhuma razão para não escolher B, essa escolha não seria digna de louvor. E todas as ações divinas são louváveis.
Na quarta proposição, Leibniz assevera que a razão pela qual devemos a Deus o amor sobre todas as coisas reside justamente no conhecimento de que Ele sempre faz o melhor e o mais perfeito. Aquele que ama busca a sua satisfação na perfeição do ente amado. Não seria possível amar a Deus plenamente questionando-se se Ele poderia fazer algo mais perfeito do que efetivamente fez. Por esse motivo, não basta apenas ter uma paciência forçada, mas amar tudo aquilo que nos acontece segundo a Sua vontade.
Essa aquiescência refere-se ao passado. Quanto ao futuro, nada há que nos conduza ao quietismo. Ao contrário, devemos fazer de tudo a nosso alcance para contribuir ao bem geral. Embora os fatos não se dêem segundo a direção de nossos esforços, não se segue que Deus não quisesse que agíssemos como agimos. Como bom mestre, Ele não nos pede nada além da reta intenção, e é a Ele que pertence saber o momento propício para a realização dos anseios humanos.
A quinta proposição inicia afirmando que basta a nós ter confiança de que Deus sempre faz tudo da maneira mais excelente, mesmo que nosso intelecto finito não seja capaz de entender as razões divinas para fazer as coisas como as fez. Não obstante, podemos comparar Deus com um excelente geômetra, um bom arquiteto, um bom pai de família, um bom mecânico ou um bom sábio. Todos estes dispõem seus materiais de forma bela e conveniente.
Os seres mais mais perfeitos são justamente os espíritos, cuja perfeição é a virtude. Não se pode duvidar que a felicidade dos espíritos é o objetivo de Deus tanto quanto ela seja possível dentro da harmonia geral. As vias de Deus manifestam a Sua simplicidade, pois elas são poucas e, no entanto, seus efeitos são muitos. Há uma analogia entre o modo como o filósofo postula seus princípios e como Deus cria o mundo. Tanto um como o outro fazem uso de poucos postulados independentes entre si e a partir de eles constroem seus mundos. A diferença reside em que Deus decreta e o mundo existe.
Leibniz prossegue seu discurso na sexta proposição distinguindo entre as ações ordinárias e as ações extraordinárias de Deus. O filósofo adverte, entretanto, que Deus jamais age sem ordem. O que concebemos como extraordinário o é somente com relação a uma ordem particular estabelecida pelas criaturas. Na ordem geral, nada há de irregular.
A prova de que no mundo nada há de absolutamente irregular é que se alguém fizesse em um papel um conjunto aleatório de pontos, haveria uma linha geométrica cuja noção constante e uniforme passaria por todos esses mesmos pontos. Quando um movimento é muito composto, agora em uma direção e em seguida em outra, ele acaba passando por irregular. Deriva-se daí que qualquer que fossem as vias pelas quais Deus criasse o mundo, ele sempre seria regular e com uma ordem geral.
Como dito acima, Deus criou o mundo do modo mais perfeito, com poucos princípios dos quais as consequências são muitas e diversas. Leibniz diz que se serve de comparações imperfeitas para dar alguma idéia da criação divina. O mistério de como realmente Deus criou o mundo permanece intocado.
Aqui cabem alguns comentários. Leibniz, ao afirmar que nada há no mundo que seja realmente irregular, poderia ser interpretado em pelo menos dois sentidos. No primeiro, a regularidade seria evidência de que tudo é perfeitamente regulado de antemão por Deus, o que configuraria um tipo de determinismo cuja consequência lógica seria a obliteração da liberdade humana.
No outro sentido, Leibniz estaria afirmando somente que dada qualquer forma ou movimento, por mais irregular que possa parecer num primeiro momento, sempre haveria como descrever esse movimento ou forma de modo a encontrar ali certa expressão matemático-geométrica. Nesse caso, não estaria se afirmando que essa regularidade é imposta de antemão, como um determinismo, mas sim como uma evidência de que tudo no mundo pode se tornar regular.
Quando se pensa em regularidade, há sempre a suposição da repetibilidade, ou seja, aquilo que é regular se dá efetivamente em muitos entes ou situações ou pode se dar em muitos entes ou situações. Se descrevo o movimento regular de um corpo, tenho a convicção de que todos os corpos na mesma situação apresentaram, apresentam e apresentarão o mesmo padrão dadas as mesmas condições. É o princípio da regularidade da Natureza.
Isto é, extraí intelectualmente dos exemplos que observei uma regularidade que efetivamente já existe e que rege o comportamento daqueles entes em condições determinadas. Outra coisa seria criar uma forma e, tomando-a como um padrão, afirmar que ela poderia (no sentido de mera possibilidade) se tornar repetível. No primeiro caso, afirmo a existência de uma regularidade que efetivamente rege o comportamento de uma classe determinada de entes. No segundo, tudo o que se diz é que um movimento qualquer pode se tornar um padrão a ser repetido.
Há nesses dois casos uma diferença crucial: em um trata-se da intelecção de um comportamento universal (dentro de um grupo determinado) e no outro trata-se de um movimento singular (único e irrepetível) que poderia em tese se tornar universal. O problema está precisamente no conceito de regularidade. Seria suficiente para se falar em regularidade dizer que em um movimento ou em uma forma qualquer, a despeito de sua irregularidade aparente, seria sempre possível encontrar uma expressão matemático-geométrica que o descrevesse com exatidão?
A princípio, parece não ser suficiente. Talvez seja possível afirmar somente que qualquer movimento ou forma irregular pode ser sempre traduzido em termos matemáticos, operação que tornaria esse movimento ou forma singular passível de ser encarado como uma regra mesmo sem ser uma regra. Sendo assim, Leibniz estaria tratando não da impossibilidade de irregularidade, mas da simples possibilidade da tradução do irregular em termos matemáticos-geométricos. O que, aliás, não implica nenhuma forma de determinismo.
A sétima proposição segue tratando dos milagres. Tudo está dentro da ordem, mesmo os milagres que parecem contradizer as máximas subalternas que chamamos de natureza das coisas. Estas não são mais do que costumes de Deus que podem ser interrompidos por razões mais altas. Deus, na sua vontade geral, visa sempre a mais perfeita ordem universal. Mas isso não impede que Deus tenha vontades particulares que são exatamente as exceções às máximas subalternas. As leis mais gerais da ordem universal, no entanto, permanecem sem exceção.
Leibniz concebe então que as naturezas das coisas expressam ações costumeiras de Deus, e que essas ações podem ser mudadas segundo a necessidade de satisfação de leis mais fundamentais. Ele acrescenta que Deus sempre quer tudo o que é objeto de sua vontade particular. Quando se trata dos objetos de Sua vontade geral, é necessário fazer uma distinção. Aquilo que os seres racionais fazem de bom, Deus quer e manda fazer, ainda que não seja feito. Quando as ações dos seres racionais são más, Deus não as quer ou comanda, mas somente as permite, pois extrai delas um bem maior do que aquele que haveria sem a ação má.
Nessa distinção reside uma sutileza na compreensão do desejo divino. Deus sempre quer o bem, mas os seres racionais nem sempre fazem o que é certo. No caso em que fazem o bem, Deus quis o bem e mandou que fosse feito. Em outros termos, Deus quer o bem, e insta os seres humanos, por meio de Seus mandamentos, a conhecer e fazer o bem. Nesse sentido, Deus quis o bem na forma de um mandamento endereçado aos seres racionais que podem ou não obedecê-Lo.
A vontade de Deus com relação ao bem não muda mesmo quando o bem que ele ordena pelo mandamento não é realizado pelos seres racionais. E quando o mal é praticado, algo que Deus não deseja e nem ordena em um mandamento, ainda assim esse mal se torna um bem acidentalmente, pois Deus sempre tira um bem maior daquilo que é mal.
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