terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Deus, ordem e milagres no 'Discurso de Metafísica' de G. W. Leibniz

"Idem velle et idem nolle vera amicitia est. Creio que é difícil bem amar Deus quando não se está na disposição de querer aquilo que Ele quer, quando se teria o poder de mudá-lo. Com efeito, aqueles que não estão satisfeitos com aquilo que Ele fez parecem-me semelhantes àqueles sujeitos descontentes cuja intenção não é muito diferente daquela dos rebeldes." (tradução minha)

G.W. LEIBNIZ, Discours de Mètaphysique, IV

As primeiras proposições da obra Discours de Métaphysique (1686), do filósofo, físico e matemático alemão Gottfried Wilhelm Leibniz, são dedicadas a teses acerca da natureza de Deus. Logo de início, Leibniz explica a noção de Deus como a de um Ser absolutamente perfeito, em quem residem, em grau soberano e simultaneamente, todas as muitas perfeições que há na Natureza. 

As perfeições são aquelas que não implicam contradição quando elevadas a seu grau máximo. As naturezas dos números e das formas geométricas não podem ser perfeições, pois seria contraditório afirmar a existência de um número maior que todos ou uma figura maior que todas. A ciência e a onipotência em grau soberano, contudo, não implicam nenhuma contradição. Se Deus possui o poder e o saber infinitos, segue-se que Ele age sempre da forma mais perfeita moral e metafisicamente.

A segunda proposição se dedica a afirmar a bondade intrínseca de tudo o que Deus realiza. O ponto é que Leibniz deseja se distinguir daqueles que, como Descartes, pensam que as obras divinas são provenientes somente da vontade divina, de tal modo que o que é bom neste mundo é bom somente porque Deus quis que elas fossem do jeito que são. O que implicaria dizer que não há uma razão pela qual as coisas sejam boas a não ser pela livre vontade de Deus.

Se assim fosse, Deus poderia ter feito as coisas de tal modo que aquilo que é bem fosse mal e o que o que é mal fosse bem. Aqui se insinua uma distinção entre a vontade divina e a razão divina. Dado que a vontade é absolutamente livre, não há nenhuma necessidade racional intrínseca pela qual as coisas sejam do modo que são. Deus poderia muito bem ter feito o oposto de tudo o que fez sem que houvesse nenhuma contradição. As verdades eternas seriam essas que são e não outras por simples vontade divina e não por refletirem a razão divina.

Ora, afirma Leibniz, se em Deus não houvesse a colaboração da razão, as coisas não seriam boas intrinsecamente. E se as coisas não são boas, não haveria razão para louvar o Criador pela bondade e beleza da Criação, já que ela poderia ser o contrário daquilo que é. Deus seria como um tirano cuja vontade arbitrária é lei. Por outro lado, quem opta só pode optar na medida em que tem alguma razão que antecede sua vontade. As verdades eternas da metafísica, da geometria, do bem, da justiça e da perfeição não podem ser frutos só da vontade, mas sim do entendimento divino que precede a Sua vontade.

A terceira proposição afirma que estão errados os modernos que, por ignorância dos antigos, afirmam que Deus poderia ter feito um mundo melhor do que Ele o fez. Essa visão baseia-se no parco conhecimento que temos da harmonia geral do universo e das razões ocultas que Deus possui para fazer as coisas como as fez. Todas as ações de Deus são soberanamente boas e guiadas por Sua razão. Se diante das possibilidades A e de B, Ele escolhe A sem nenhuma razão para não escolher B, essa escolha não seria digna de louvor. E todas as ações divinas são louváveis.

Na quarta proposição, Leibniz assevera que a razão pela qual devemos a Deus o amor sobre todas as coisas reside justamente no conhecimento de que Ele sempre faz o melhor e o mais perfeito. Aquele que ama busca a sua satisfação na perfeição do ente amado. Não seria possível amar a Deus plenamente questionando-se se Ele poderia fazer algo mais perfeito do que efetivamente fez. Por esse motivo, não basta apenas ter uma paciência forçada, mas amar tudo aquilo que nos acontece segundo a Sua vontade.

Essa aquiescência refere-se ao passado. Quanto ao futuro, nada há que nos conduza ao quietismo. Ao contrário, devemos fazer de tudo a nosso alcance para contribuir ao bem geral. Embora os fatos não se dêem segundo a direção de nossos esforços, não se segue que Deus não quisesse que agíssemos como agimos. Como bom mestre, Ele não nos pede nada além da reta intenção, e é a Ele que pertence saber o momento propício para a realização dos anseios humanos.

A quinta proposição inicia afirmando que basta a nós ter confiança de que Deus sempre faz tudo da maneira mais excelente, mesmo que nosso intelecto finito não seja capaz de entender as razões divinas para fazer as coisas como as fez. Não obstante, podemos comparar Deus com um excelente geômetra, um bom arquiteto, um bom pai de família, um bom mecânico ou um bom sábio. Todos estes dispõem seus materiais de forma bela e conveniente.

Os seres mais mais perfeitos são justamente os espíritos, cuja perfeição é a virtude. Não se pode duvidar que a felicidade dos espíritos é o objetivo de Deus tanto quanto ela seja possível dentro da harmonia geral. As vias de Deus manifestam a Sua simplicidade, pois elas são poucas e, no entanto, seus efeitos são muitos. Há uma analogia entre o modo como o filósofo postula seus princípios e como Deus cria o mundo. Tanto um como o outro fazem uso de poucos postulados independentes entre si e a partir de eles constroem seus mundos. A diferença reside em que Deus decreta e o mundo existe. 

Leibniz prossegue seu discurso na sexta proposição distinguindo entre as ações ordinárias e as ações extraordinárias de Deus. O filósofo adverte, entretanto, que Deus jamais age sem ordem. O que concebemos como extraordinário o é somente com relação a uma ordem particular estabelecida pelas criaturas. Na ordem geral, nada há de irregular. 

A prova de que no mundo nada há de absolutamente irregular é que se alguém fizesse em um papel um conjunto aleatório de pontos, haveria uma linha geométrica cuja noção constante e uniforme passaria por todos esses mesmos pontos. Quando um movimento é muito composto, agora em uma direção e em seguida em outra, ele acaba passando por irregular. Deriva-se daí que qualquer que fossem as vias pelas quais Deus criasse o mundo, ele sempre seria regular e com uma ordem geral. 

Como dito acima, Deus criou o mundo do modo mais perfeito, com poucos princípios dos quais as consequências são muitas e diversas. Leibniz diz que se serve de comparações imperfeitas para dar alguma idéia da criação divina. O mistério de como realmente Deus criou o mundo permanece intocado.

Aqui cabem alguns comentários. Leibniz, ao afirmar que nada há no mundo que seja realmente irregular, poderia ser interpretado em pelo menos dois sentidos. No primeiro, a regularidade seria evidência de que tudo é perfeitamente regulado de antemão por Deus, o que configuraria um tipo de determinismo cuja consequência lógica seria a obliteração da liberdade humana. 

No outro sentido, Leibniz estaria afirmando somente que dada qualquer forma ou movimento, por mais irregular que possa parecer num primeiro momento, sempre haveria como descrever esse movimento ou forma de modo a encontrar ali certa expressão matemático-geométrica. Nesse caso, não estaria se afirmando que essa regularidade é imposta de antemão, como um determinismo, mas sim como uma evidência de que tudo no mundo pode se tornar regular.

Quando se pensa em regularidade, há sempre a suposição da repetibilidade, ou seja, aquilo que é regular se dá efetivamente em muitos entes ou situações ou pode se dar em muitos entes ou situações. Se descrevo o movimento regular de um corpo, tenho a convicção de que todos os corpos na mesma situação apresentaram, apresentam e apresentarão o mesmo padrão dadas as mesmas condições. É o princípio da regularidade da Natureza.

Isto é, extraí intelectualmente dos exemplos que observei uma regularidade que efetivamente já existe e que rege o comportamento daqueles entes em condições determinadas. Outra coisa seria criar uma forma e, tomando-a como um padrão, afirmar que ela poderia (no sentido de mera possibilidade) se tornar repetível. No primeiro caso, afirmo a existência de uma regularidade que efetivamente rege o comportamento de uma classe determinada de entes. No segundo, tudo o que se diz é que um movimento qualquer pode se tornar um padrão a ser repetido.

Há nesses dois casos uma diferença crucial: em um trata-se da intelecção de um comportamento universal (dentro de um grupo determinado) e no outro trata-se de um movimento singular (único e irrepetível) que poderia em tese se tornar universal. O problema está precisamente no conceito de regularidade. Seria suficiente para se falar em regularidade dizer que em um movimento ou em uma forma qualquer, a despeito de sua irregularidade aparente, seria sempre possível encontrar uma expressão matemático-geométrica que o descrevesse com exatidão? 

A princípio, parece não ser suficiente. Talvez seja possível afirmar somente que qualquer movimento ou forma irregular pode ser sempre traduzido em termos matemáticos, operação que tornaria esse movimento ou forma singular passível de ser encarado como uma regra mesmo sem ser uma regra. Sendo assim, Leibniz estaria tratando não da impossibilidade de irregularidade, mas da simples possibilidade da tradução do irregular em termos matemáticos-geométricos. O que, aliás, não implica nenhuma forma de determinismo.

A sétima proposição segue tratando dos milagres. Tudo está dentro da ordem, mesmo os milagres que parecem contradizer as máximas subalternas que chamamos de natureza das coisas. Estas não são mais do que costumes de Deus que podem ser interrompidos por razões mais altas. Deus, na sua vontade geral, visa sempre a mais perfeita ordem universal. Mas isso não impede que Deus tenha vontades particulares que são exatamente as exceções às máximas subalternas. As leis mais gerais da ordem universal, no entanto, permanecem sem exceção.

Leibniz concebe então que as naturezas das coisas expressam ações costumeiras de Deus, e que essas ações podem ser mudadas segundo a necessidade de satisfação de leis mais fundamentais. Ele acrescenta que Deus sempre quer tudo o que é objeto de sua vontade particular. Quando se trata dos objetos de Sua vontade geral, é necessário fazer uma distinção. Aquilo que os seres racionais fazem de bom, Deus quer e manda fazer, ainda que não seja feito. Quando as ações dos seres racionais são más, Deus não as quer ou comanda, mas somente as permite, pois extrai delas um bem maior do que aquele que haveria sem a ação má.

Nessa distinção reside uma sutileza na compreensão do desejo divino. Deus sempre quer o bem, mas os seres racionais nem sempre fazem o que é certo. No caso em que fazem o bem, Deus quis o bem e mandou que fosse feito. Em outros termos, Deus quer o bem, e insta os seres humanos, por meio de Seus mandamentos, a conhecer e fazer o bem. Nesse sentido, Deus quis o bem na forma de um mandamento endereçado aos seres racionais que podem ou não obedecê-Lo.

A vontade de Deus com relação ao bem não muda mesmo quando o bem que ele ordena pelo mandamento não é realizado pelos seres racionais. E quando o mal é praticado, algo que Deus não deseja e nem ordena em um mandamento, ainda assim esse mal se torna um bem acidentalmente, pois Deus sempre tira um bem maior daquilo que é mal. 

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domingo, 11 de dezembro de 2022

Tomás de Aquino e o modo do conhecimento divino


"O conhecimento se dá de acordo com o modo daquele que conhece, pois a coisa conhecida está no conhecedor de acordo com o modo do conhecedor. Dado que o modo da divina essência é mais alto do que o das criaturas, o conhecimento divino não existe em Deus de acordo com o modo do conhecimento criado, tal sendo universal ou particular, habitual, potencial ou existindo de acordo com qualquer desses modos."

TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Questão XIV, artigo 1

Tomás de Aquino, na Questão XIV da Suma Teológica, discute o conhecimento de Deus. A primeira pergunta é saber se Deus possui conhecimento. Se Deus é onisciente, pareceria ocioso se perguntar se Ele possui conhecimento. O ponto é que Tomás deseja provar racionalmente a onisciência divina e não somente tomá-la como certa a partir da fé. 

O conhecimento humano é adventício, parte da ignorância ao saber, exige tempo e esforço, e, no fim das contas, não está assegurado o sucesso das tentativas de conhecer as coisas. Nesse sentido, o conhecimento é um hábito, o que na linguagem filosófica medieval significa uma disposição adquirida para algo. Nosso saber é habitual no sentido de que temos de adquiri-lo, o que é uma mudança temporal, e, já o tendo adquirido, ele permanece em nós como uma potencialidade a ser atualizada a qualquer momento. Por exemplo, o estudante não sabe álgebra, leva tempo para aprender, e, tendo aprendido, aquele saber fica à sua disposição para ser utilizado no momento em que desejar.

Obviamente, o conhecimento divino não pode ser desse gênero, dado que implicaria que em algum momento Deus foi ignorante, e, pior, que as coisas de algum modo antecedem a Deus. Para responder a essa dificuldade, Tomás inicia distinguindo os seres cognoscentes dos seres não-cognoscentes. O que os distingue é o fato de que os seres não-cognoscentes (os que não possuem capacidade de conhecer) só têm neles mesmos a sua Forma, enquanto que os seres cognoscentes podem abrigar outras Formas.

O que Tomás está dizendo é que o ser que conhece é capaz de receber em si mesmo, de alguma forma, as informações provenientes dos entes que o cercam. Por exemplo, nós percebemos as coisas a nosso redor, e nossa percepção é um ato de receber certas informações enviadas pelo objeto que percebemos. Se vejo uma cadeira, recebo em mim as imagens de seu formato, tamanho, cor, etc. Mas em nenhum momento eu posso dizer que essas informações sejam a própria cadeira que fisicamente se transfere para a minha cabeça. Isso seria absurdo.

Então, o que percebemos são aquilo que os medievais chamavam de espécies, as informações sensíveis das coisas que percebemos pelos sentidos. Essas espécies não são as coisas fisicamente. A cadeira não vem para a minha cabeça quando a vejo. Se ela viesse, ocuparia espaço, e não caberia na extensão da minha cabeça. Mais ainda, se a cadeira viesse à minha cabeça, ela se deslocaria no espaço e não poderia ser percebido por ninguém mais. O que ocorre, no entanto, é que a mesma cadeira é vista por muitos ao mesmo tempo.

Se muitos a vêem ao mesmo tempo, isso mostra que não é a cadeira que vem à minha cabeça como um ser físico, mas que algo é transmitido da cadeira ao observador, e que o que é transmitido não é físico, dado que não ocupa espaço. Isso que é transmitido são as espécies sensíveis da coisa física que percebemos pelos sentidos. Todo o conhecimento dos seres cognoscentes inicia justamente pelos sentidos. 

Os sentidos nunca percebem tudo o que há ao mesmo tempo. Não posso perceber pela visão todos os seres sensíveis que existem na realidade. Só percebo aqueles que estão a uma determinada proximidade. Quando estou na rua, não vejo mais a minha casa. Estando no Brasil, não posso ver a Torre Eiffel. Segue-se que nunca posso perceber todas as coisas perceptíveis ao mesmo tempo. A razão é que eu sou material, portanto ocupo espaço, e não posso estar próximo daquilo que está distante de mim.

A coisa tem que se apresentar a mim para que eu possa percebê-la pelos sentidos. Entretanto, o modo como as percebo não é espacial, no sentido de que as espécies vêm a mim e são captadas pelos sentidos sem que a própria coisa venha localizar-se fisicamente e localmente na minha cabeça (ou em qualquer parte do corpo). Vejo as espécies da cadeira sem que a própria cadeira venha se alocar fisicamente nos meus olhos.

Os seres cognoscentes possuem naturalmente essa capacidade de receber e reter em si mesmos essas espécies, informações dos outros entes a seu redor. As pedras, por exemplo, não são cognoscentes. Elas não recebem e retêm nelas mesmas as informações sensíveis do mundo a seu redor. Elas possuem sua própria Forma, ou seja, elas são pedras e nada mais que isso. Os seres cognoscentes possuem sua própria Forma, e esta inclui a capacidade de receber e reter as Formas dos outros entes. 

Por isso Aristóteteles diz no De Anima que "a alma é, de certo modo, todas as coisas". Não significa que a alma seja todas as coisas realmente. Isso seria absurdo. Algo não pode ser ele mesmo e algum outro ente ao mesmo tempo. O gato não pode ser cadeira ao mesmo tempo em que é gato. A alma é todas as coisas somente no sentido de que é capaz de receber e de reter as espécies advindas das coisas a seu redor. A natureza dos seres cognoscentes é a de ser capaz de acolher em si mesma aquilo que não pertence a ela naturalmente.

Um ser humano pode perceber um gato sem se tornar um gato e vice-versa. As espécies sensíveis do gato são captadas pelos sentidos do homem sem que ele mesmo se torne um gato. A pedra, em certo sentido, é impermeável, contida em si mesma, sem "aberturas" para os outros entes. Os seres cognoscentes, ao contrário, são permeáveis, podem ser afetados pelas na sua interioridade pelas coisas ao seu redor. Essa interioridade, é preciso reforçar, não é exatamente física. Um gato pode morder um homem, penetrando fisicamente com seus dentes na carne, no interior do corpo do homem. A cor do gato é percebida pelo homem sem que ele seja penetrado fisicamente.

Tomás assevera que tudo isso mostra que o conhecimento é possível por causa da imaterialidade. Ou ainda, o conhecimento é uma captação imaterial, poderíamos dizer. Daí se segue que quanto maior é a imaterialidade, maior é o conhecimento. A cor que vejo não é o próprio gato materialmente presente em meus olhos. É a captação visual de uma das espécies do gato. E essa cor não ocupa minha alma (ou mente) de modo material/físico. A pedra não é capaz disso por conta da ausência dessa capacidade de captação imaterial.

Recebemos as espécies sem a matéria, diz Tomás citando Aristóteles. A cor do gato é ainda algo que pertence ao seu corpo. Quando dizemos que um ente é um gato, o que queremos expressar é algo que vai muito além da sua cor. Gatos podem ter muitas cores. Todo gato tem que ter cor, mas nem todo gato tem a mesma cor. Alguns são pretos, outros brancos, outros são mesclados, etc. Mas nada disso importa quando dizemos "isso é um gato". O que interessa não é sua cor, que é variável, mas sim aquilo que é invariável em todos os gatos e que os torna exatamente gatos.

A gatidade do gato, por assim dizer, é sua Forma (eidos, εἶδος, essência), aquele conjunto mínimo de características que fazem de um gato um gato e não outra coisa. A Forma não é o formato externo da coisa (embora implique o formato), mas sim aquilo sem o quê um ente não pode ser um gato. Quando afirmo "isso é um gato", estou apontando não para seu tamanho, sua cor, sua idade, características variáveis, e sim para a classe a que aquele ente pertence. Estou dizendo que tipo de ser ele é.

Ora, essa informação não é exatamente captada pelos sentidos. O que sabemos dos seres sensíveis é inicialmente captado por meio dos sentidos, embora não se restrinja aos sentidos. Dizer a que classe ou tipo de ser algo pertence vai além do que cada sentido pode informar. Os olhos podem perceber a cor e o formato do objeto, o olfato percebe o cheiro, o tato capta o formato e a superfície do objeto. Nenhum deles diz o que é o objeto.

Saber o que é o objeto é, a partir desse conjunto de informações sensíveis, separando o que é invariável do que é variável, captar aquilo que é próprio e característico de um certo tipo de ser.  Gatos são diferentes de pedras. O que distingue essencialmente um gato de uma pedra é justamente aquilo que indicamos quando dizemos o que é o objeto. Eles podem ser até do mesmo tamanho, peso, largura, etc. Não é isso que os distingue. Gatos são entes animados e pedras são entes inanimados. 

Gatos e cachorros são ambos seres animados e mesmo assim são distintos. As características típicas de um cachorro não são as mesmas daquelas dos gatos. Captar o que torna um ser vivo um gato e não um cachorro é saber o que é um gato. Essa captação vai além daquilo que os sentidos informam. É apreender um conjunto invariável de características que está presente em todos os gatos, mesmo aqueles que eu jamais observei. Essa é a Forma do gato, o que é um gato.

No ser humano, essa apreensão da Forma, chamada de abstração (separar), é realizada pelo intelecto. Assim como as espécies sensíveis de um gato não implicam o gato físico ocupando espaço nos meus olhos ou na minha cabeça, a Forma também não é o gato fisicamente dentro do meu intelecto. O ato de intelecção, que é próprio do intelecto, é ainda mais imaterial do que as espécies sensíveis.

A intelecção intelige aquilo que no objeto é inteligível. Em outros termos, é o ato de compreender aquilo que há de compreensível na coisa. Inteligir é captar o que é a coisa, e o que é a coisa é aquilo que nela é capaz de ser compreendido. O fato de que as coisas possuem uma Forma é o que as torna inteligíveis, compreensíveis. E é por causa do intelecto que o homem pode inteligir aquilo que nas coisas é inteligível.

Se o ser humano não possuísse intelecto, aquilo que é inteligível nas coisas passaria despercebido. Se o ser humano tivesse intelecto e as coisas não fossem inteligíveis, não haveria conhecimento. O caso é que felizmente o ser humano possui intelecto e as coisas possuem Forma, o que as torna inteligíveis. As duas condições têm de estar presentes para que haja conhecimento: o inteligente e o inteligível.

O intelecto apreende a Forma do objeto, o que é o objeto. Conhecer perfeitamente é conhecer a Forma do objeto. Mas o ser humano só alcança a Forma a partir das espécies sensíveis. O que implica que para o homem o conhecimento é algo que só acontece na presença ou na memória da presença do objeto. Não estando ou tendo estado o objeto presente, o conhecimento não se realiza. E o ato de conhecer também implica uma extensão temporal para a sua aquisição e, uma vez adquirido, uma potencialidade para a sua utilização.

Ora, nada disso cabe em Deus. Como pode Ele possuir conhecimento? Obviamente, o conhecimento divino não é idêntico ao conhecimento humano. O ser humano, dado que é um ente limitado corporalmente, necessita de sentidos para obter informações dos entes ao seu redor. Deus não é limitado corporalmente, não tem necessidade de sentidos. Ele conhece as coisas em Si mesmo, e não como algo externo e espacialmente separado.

O conhecimento é uma captação imaterial, como dito antes. Quanto maior a imaterialidade, mais perfeito é o conhecimento. Conhecer algo perfeitamente é conhecer a Forma. Dado que Deus é puramente imaterial, Seu conhecimento não vem pelos sentidos e nem implica tempo. Deus conhece imaterialmente e, portanto, conhece do modo mais perfeito todas as coisas. Por conseguinte, o conhecimento em Deus não é um hábito, é um ato puro atemporal.

O conhecimento, Tomás arremata, se dá de acordo com o modo do conhecedor, pois a coisa conhecida está no conhecedor de acordo com o modo do conhecedor. Deus sendo imaterial, seu conhecimento é imaterial. Nenhuma das limitações do conhecimento humano se aplicam a Deus.

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domingo, 4 de dezembro de 2022

Leibniz e a reformulação do argumento ontológico

"Denomino Perfeição toda qualidade simples que é positiva e absoluta, ou que exprime sem limite algum tudo aquilo que ela exprime."

G.W. LEIBNIZ, Quod Ens perfectissimum existit

O filósofo, físico e matemático alemão Gottfried Wilhelm Leibniz escreveu em 1676 um curto texto, Quod Ens perfectissimum existit, em que apresenta a sua tentativa de reconstrução do famoso argumento ontológico. À época, Leibniz estava retornado de Paris e se aprofundava durante o caminho nas obras de René Descartes. É nessa viagem que ele se encontra com Baruch Spinoza.

O argumento ontológico, em sua formulação clássica, fora formulado primeiramente pelo pensador medieval Anselmo de Cantuária em sua obra Proslogion. O argumento era a resposta a um pedido de alguns monges que instavam Anselmo a apresentar uma prova puramente racional da existência de Deus. O filósofo apresentou a eles uma demonstração a priori, por pura lógica e sem remissão aos sentidos, da realidade de Deus.

Anselmo diz que "o ser do qual não se pode conceber nada maior" não pode existir somente como um conceito na mente de quem o concebe, pois nesse caso ele não seria "o ser do qual não se pode pensar nada maior". Haveria contradição em afirmar ao mesmo tempo que ao "ser do qual não se pode pensar nada maior" nenhuma perfeição está ausente e que, no entanto, ele não existe. Se não existe, então não é "o ser do qual não se pode pensar nada maior", pois a existência seria uma perfeição que lhe faltaria.

Assim, dada a definição de Deus como o "ser do qual não se pode pensar nada maior", negar sua existência seria uma contradição lógica. O argumento de Anselmo não é um raciocínio no sentido de um encadeamento de premissas das quais se deduz uma conclusão. É uma operação de análise do conceito pela qual se compreende tudo o que nele está implicado logicamente. 

Se digo que "todo solteiro não tem sogra", nada mais afirmo do que o que já está implicado no próprio conceito de "solteiro". Do mesmo modo, o argumento anselmiano é menos um argumento do que uma análise do conceito de Deus. Isto é, o próprio conceito de Deus como "o ser do qual não se pode pensar nada maior" inclui logicamente a existência como uma de suas notas.

Descartes, já no século XVII, reformula o argumento em suas Meditações Metafísicas postulando como uma idéia clara e distinta que Deus é o ser soberanamente perfeito e ilimitado e que tudo o que posso demonstrar clara e distintamente de algo pertence necessariamente a esse algo. Um ser perfeito e ilimitado não pode estar privado da existência, pois tal seria uma limitação e uma imperfeição. Então, necessariamente Ele existe.

Há diversas objeções ao argumento ontológico que remontam até ao tempo de Anselmo. O mesmo acontece com as tentativas de sua reformulação. Leibniz tenta reformular o argumento começando por definir o que ele entende como perfeição:

"A Perfeição é toda qualidade simples que é positiva e absoluta, ou que exprime sem limite algum tudo aquilo que ela exprime. Ora, tal qualidade, dado que é simples, é irresolúvel ou indefinível, pois, de outro modo, não seria uma, mas agregado de muitas. Ou, sendo uma, seria circunscrita dentro de limites, contra a hipótese que a colocou como puramente positiva. A partir daí, não é difícil mostrar que todas as qualidades são compatíveis entre elas ou podem estar em um só sujeito.

Cabem aqui alguns comentários interpretativos dessa primeira parte do argumento. O texto de Leibniz se restringe a formular a prova sem esclarecimentos mais detalhados. Mas creio que podemos facilitar sua compreensão. Primeiramente, o filósofo define a Perfeição como uma qualidade simples, absoluta e que exprime sem limites o que ela exprime. Depreende-se disso que a Perfeição é uma qualidade em manifestação infinita. 

Tomemos a qualidade "bondade". Segundo a definição acima, se a bondade é perfeita, então ela é infinita. Isto é, a perfeição da bondade não apresenta nenhum limite. Se não há limite, então não há lugar para nada que não seja ela. Sendo assim, onde não há limite, não há o outro, e, portanto, não pode haver multiplicidade, pois o múltiplo exige o limite. Não pode haver uma quantidade qualquer de qualquer coisa a não ser que haja limites que distingam uma coisa da outra.

A bondade infinita é irresolúvel e indefinível. Irresolúvel porque não se reduz a nada que não seja ela mesma. Em outros termos, ela não é composta por nada que não seja ela mesma. Indefinível porque a definição reúne em si o conjunto mínimo de características que fazem de algo o que ele é. A definição encontra e expressa os limites da coisa definida em uma fórmula única. É impossível definir algo sem dizer os seus limites próprios. Consequentemente, uma qualidade infinita é indefinível, posto que não possui limites.

Tendo definido a Perfeição, Leibniz julga que não será difícil mostrar que todas as qualidades são compatíveis entre si ou podem estar todas em um sujeito. Esse passo é crucial para Leibniz avançar na direção da existência de Deus. As qualidades, sendo perfeitas, podem todas estar em um sujeito (no sentido de "em algo") ao mesmo tempo, no mesmo nível e sem contradições? Para responder a essa pergunta, Leibniz apresenta a segunda parte de sua argumentação.

Tomemos a seguinte proposição: A et B são incompatíveis. A e B são qualidades perfeitas no sentido acima definido. Está claro que não se pode demonstrar essa proposição sem a resolução dos termos A ou B ou dos dois. Se for possível demonstrar a verdade dessa proposição, então seria fácil mostrar a incompatibilidade de quaisquer outras qualidades ou dessas mesmas. Mas sabemos que A e B são irresolúveis. Então, não se pode demonstrar essa proposição.

Eis o ponto crucial. Leibniz criticou o argumento de Descartes por ele supor sem demonstração de que todas as perfeiçoes estão em Deus de modo infinito e de que elas não são incompatíveis entre si. O alemão tem que mostrar que é possível que as qualidades não se excluam mutuamente. Para isso, ele apresenta a proposição "A e B são incompatíveis", tendo as letras como representações de qualidades perfeitas. A pergunta, então, é se qualidades infinitas, quaisquer que sejam, podem ser incompatíveis.

O caminho tomado por Leibniz é muito elegante. Ele diz que a proposição "A e B são incompatíveis", se verdadeira, tem de ser demonstrável, posto que não é evidente. Se essa proposição não é conhecida por si, então não é necessariamente verdadeira. Se não é necessariamente verdadeira, é logicamente possível que seja falsa. Isto é, nada impede que a proposição seja falsa. Por isso, é bem possível que qualidades perfeitas não sejam incompatíveis e que estejam todas em um só sujeito.

Nada impede que se conceba um ser no qual estejam presentes todas as qualidades de modo perfeito ou o ser todo perfeito. Donde está claro que ele existe, pois a existência está compreendida entre as perfeições.

Leibniz remove desse modo a dificuldade que encontrara no argumento de Descartes acerca do Ser Perfeito. Basta mostrar que as qualidades perfeitas não são necessariamente incompatíveis para permitir a concepção de um ser que as possua todas. O conceito de um Ser Perfeito não contém contradições, já que aquilo que não é necessariamente impossível é necessariamente possível. Não havendo impedimentos lógicos para a concepção de um ser absolutamente perfeito, é completamente possível afirmar que se um ser é perfeito, ele necessariamente existe.

Mais alguns comentários. O argumento de Leibniz não prova que Deus existe. Somente demonstra que um Ser Perfeito é concebível sem contradições. A presença de todas as qualidades de modo perfeito em um único sujeito é possível, dado que a incompatibilidade não é evidente/necessária. Se uma proposição não é evidentemente verdadeira, não é necessariamente verdadeira. É o mesmo que afirmar que ela pode ser falsa.

Quando digo que "todo solteiro não tem sogra" não necessito de nada além do significado dos termos para saber que ela é verdadeira. A razão disso é que o termo "solteiro" exclui o casamento. Quem não casa não tem sogra. Quando afirmo que "A e B são incompatíveis", sendo A e B perfeições, não digo nada de evidente/necessariamente verdadeiro. Logo, não há necessariamente incompatibilidade entre as perfeições. Significa que a proposição é falsa? Não, significa apenas que pode ser falsa. Significa que é verdadeira? Também não, significa somente que nada impede que ela seja falsa.

A e B são perfeições. Se nada evidente impede a conjunção, pelo menos sabemos que a proposição é possível. Leibniz não desenvolve no texto as razões pelas quais as perfeições não são necessariamente incompatíveis. Há algumas indicações, contudo. Tomemos o fato de que as perfeições, tal como definidas no início do raciocínio, são indefiníveis. Sua indefinibilidade se segue de sua infinitude. Por lógica, algo metafisicamente infinito não pode ser definido justamente porque o que é infinito não possui limites.

Ora, se as qualidades perfeitas são infinitas, elas são indefiníveis. Não resta obstáculo para a compatibilidade entre as qualidades na medida em que sua infinitude as destitui dos limites que as distinguem umas das outras. A incompatibilidade só existe na medida em que a presença de uma parte exclui a presença de outra. A indistinção que se segue da infinitude extingue a presença de partes que se excluiriam.

As qualidades neste mundo não são sempre compatíveis, ou pelo menos não no mesmo grau, por conta de sua finitude. Uma limita a presença da outra. Um exemplo simples disso é a impossibilidade de haver ao mesmo tempo e no mesmo grau a liberdade, a fraternidade e a igualdade. Se tentamos igualar as coisas, limitamos a liberdade. Se exigimos a fraternidade, limitamos a justiça, e assim por diante.

A totalidade das perfeições pode estar em Deus exatamente porque Nele tudo é uma e só realidade. A simplicidade divina se deve, por assim dizer, à sua infinitude. Deus, sendo infinito, não possui nenhuma limitação em nenhum sentido ou grau. Por isso Ele é simples, sem limites internos ou externos. Nós vemos as qualidades de modo limitado, onde cada uma difere da outra e, em certas situações, elas são incompatíveis entre si. Em Deus, porém, elas são uma e a mesma natureza simples.

Poderíamos enunciar uma lei: todas as infinitudes metafísicas se reduzem à uma unidade puramente simples ou não há e nem pode haver múltiplas infinitudes metafísicas. Na medida em que é perfeita, a qualidade se confunde com o próprio Ser de Deus. As qualidades, então, como definidas por Leibniz, seriam a própria natureza una e simples de Deus.

Como disse anteriormente, Leibniz não realiza esse desenvolvimento no texto a fim de mostrar que poderia haver um caminho para não só afirmar a ausência de incompatibilidade lógica e evidente entre as perfeições, mas também afirmar a necessidade de sua compatibilidade. A argumentação que apresento aqui estaria, creio, em harmonia com a metafísica da natureza divina tanto da tradição platônica (Anselmo de Cantuária, Nicolau de Cusa e Marsilio Ficino), quanto da tradição aristotélica (Tomás de Aquino).

O que percebemos como multiplicidade é em Deus pura unidade. Em certo sentido, poderíamos afirmar que não há perfeições a não ser a natureza divina diversamente captada pelo ser humano com seus limitados meios de cognição. O que é percebido é percebido na medida do percipiente. Desse modo, as perfeições não seriam somente compatíveis, mas seriam necessariamente uma só e mesma natureza divina metafisicamente simples e infinita. A infinitude metafísica poderia estar privada da perfeição da existência?

Leia também:

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sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Nicolau de Cusa e a Possibilidade Absoluta

"O mais excelso nível da reflexão contemplativa é a Possibilidade em si mesma, a Possibilidade de toda possibilidade, sem a qual nada possui a capacidade de ser contemplado. Pois, como a contemplação seria possível sem a Possibilidade?"

NICOLAU DE CUSA, De Apice Theoriae

Em um curto diálogo intitulado De Apice Theoriae, de 1469, o cardeal e filósofo neoplatônico renascentista alemão Nicolau de Cusa trata da questão da natureza divina. Os personagens do diálogo são um Cardeal (suponho que o próprio Cusano) e seu jovem amigo, também sacerdote, de nome Pedro. A conversa inicia quando os dois se encontram após o Cardeal haver passado longo tempo em meditação.

Pedro pergunta ao Cardeal qual havia sido o objeto de sua meditação naquele tempo, e o prelado responde que nem São Paulo, alçado ao terceiro Céu pôde compreender o Incompreensível. Pedro, então, indaga: "O senhor está buscando o quê?". Para a confusão do jovem, o Cardeal responde "você está certo". A resposta parece ser um gracejo, mas o prelado esclarece que está jogando com os sentidos de quid, no latim. Quid pode significar "o quê", como era o sentido original da pergunta, ou significar "o que é", o sentido empregado na resposta.

Em outros termos, o Cardeal não está buscando algo, mas sim o que é a natureza do objeto de sua contemplação, Deus. A questão seguinte é saber se há como conhecer a quididade (quidditas), o "o que é?", a natureza de Deus. Muitos tentaram no passado e fracassaram. O próprio Cardeal passou anos meditando sobre o tema, tendo compreendido que a quididade está para além de toda cognição e antes de toda variação e de toda a oposição.

Agora, porém, o Cardeal compreendeu que a quididade que existe em si e por si mesma é o ser subsistente invariável de toda e qualquer substância, de tal modo que só há uma quididade e uma só base de todas as coisas. Isto é, Deus é a realidade última e fonte de tudo o que há. Ocorre que, o Cardeal prossegue, se há a realidade última e fonte de todas as coisas, obviamente ela era possível. E se há uma possibilidade, ela não pode estar separada da Possibilidade em si mesma. 

Ora, o Cardeal conclui, a quididade divina é a própria Possibilidade Absoluta sem a qual nada existe ou pode existir. Nenhum outro nome é mais adequado a Deus, posto que Ele é a possibilidade última e fundante de tudo o que há e pode haver. A possibilidade é inegável, pois está em tudo e no cotidiano. Sabemos que podemos beber, podemos andar, podemos comer, etc. É óbvio que aquilo que é impossível não pode existir. Igualmente, ninguém duvida que sem possiblidade nada pode existir, possuir, agir ou sofrer ação.

As possibilidades dos entes relativos só podem advir de uma Possibilidade que as reúne todas e é seu fundamento: a Possibilidade Absoluta, pois não há e nem pode haver nada mais alto do que ela que possibilita todas as coisas. Ela é a quididade e a base de todas as coisas que existem, que podem existir e daquelas que não existem e nem existirão. Sendo a realidade mais excelsa, os santos a chamaram de Luz, porque a luz é em si mesma invisível e só se manifesta nas coisas que ilumina. Ausentando-se a luz, as coisas somem de vista.

Assim, a luz é condição da visibilidade das coisas, embora jamais apareça tal como é, da mesma forma que a Possibilidade Absoluta é a condição de existência de todas as coisas, sem que jamais ela se manifeste tal como é. Os diversos seres não são mais do que modos de manifestação dessa Possibilidade que é a mesma em todos eles. Os poderes que as coisas manifestam só são diferentes em modos e em graus, tendo todos origem na Possibilidade Absoluta que se mostra mais perfeitamente naquilo que é mais forte.

Em tudo o que vemos, vemos modos de manifestação de uma só e mesma Possibilidade. O intelecto capta aquilo que compreende. Diante de algo que ultrapassa os poderes de compreensão do intelecto, como a Possibilidade Absoluta, a mente, de certo modo, ultrapassa essas limitações tal como um garoto percebe que uma pedra é mais pesada do que ele é capaz de carregar. A mente vê o que o intelecto não pode compreender.

Nenhuma dúvida pode pairar sobre a Possibilidade Absoluta, já que toda dúvida tem de ser possível para ser formulada. Nada pode ser adicionado a ela e nada pode ser subtraído. Não há o que possa ser mais perfeito do que ela, pois tudo é precedido pela possibilidade. Se alguém buscasse a possibilidade da unicidade, facilmente perceberia que em todo número e em toda pluralidade somente o poder da unicidade se manifesta, dado que todo número não é mais do que um modo de manifestação da unicidade.

Tendo chegado ao final do seu discurso, o Cardeal enuncia doze teses que servirão a Pedro como um memorandum daquilo que foi dito.

I. Nada pode ser adicionado à Possibilidade, já que ela é a possibilidade de tudo.

II. Existe efetivamente só o que pode existir. Isso significa que a existência nada adiciona à possibilidade de existir. A existência como isto ou aquilo não adiciona nada à Possibilidade.

III. Nada pode existir antes da Possibilidade. Tampouco pode existir algo que seja mais perfeito, simples, claro, conhecido, verdadeiro, suficiente, forte, estável, etc. E como a Possibilidade antecede todas as possibilidades de ser isto ou aquilo, ela não pode existir como as coisas, nem ser nomeada, percebida, imaginada ou compreendida. 

IV. A possibilidade de ser isso ou aquilo é uma imagem da Possibilidade Absoluta. Todas as coisas são manifestações da Possibilidade.

V. Assim como a mente de Aristóteles se manifesta livremente por meio de seus livros, a Possibilidade se manifesta em todas as coisas.

VI. Embora não haja nada além da Possibilidade, o ignorante não sabe disso. A mente enxerga dentro de si mesma a Possibilidade. Assim, todas as coisas existem para a mente e a mente existe para enxergar a Possibilidade.

VII. A possibilidade de escolher, o poder do livre arbítrio, não cessa e nem envelhece como o corpo. A Possibilidade se manifesta no poder da mente.

VIII. As coisas inteligíveis são captadas pela mente, e são ontologicamente anteriores aos objetos sensíveis. A mente vê a si mesma, e vê que é uma imagem da Possibilidade por meio de sua própria possibilidade.

IX. Tudo o que a mente vê do objeto material são seus acidentes. Aquilo que é material possui comprimento, largura e profundidade. Esses três acidentes sempre se encontram juntos. A mente enxerga no objeto material triuno a Possibilidade, e essa triunidade se manifesta também em coisas mais elevadas, como revelou Santo Agostinho.

X. A Possibilidade se manifesta de modo mais certo na possibilidade de fazer do artífice, na possibilidade de ser feito daquilo que será feito e na possibilidade da união indissolúvel entre os dois primeiros. Ou seja, o artífice só pode produzir algo porque tem a possibilidade de fazer, aquilo que ele faz tem a possibilidade de ser feito, e o processo de fazer reúne indissoluvelmente os dois. O mesmo se dá com relação à sensação, à visão, ao gosto, à intelecção, à volição, à escolha, à contemplação, e a todas as obras boas e virtuosas.

XI.  Não pode haver outro Princípio que não a Possibilidade. Todos os que falaram diferentes disso não perceberam como a Possibilidade se manifesta em diferentes modos de ser, sejam genéricos ou específicos. Onde não há Possibilidade não há base, como no caso do defeito, do erro, do vício, da fraqueza, da corrupção e da morte, que não possuem ser justamente por não se manifestar neles a Possibilidade.

XII. O Deus Uno e Trino é a Possibilidade, sendo Cristo Sua mais excelsa manifestação. E Cristo conduz à contemplação da Possibilidade, a felicidade que unicamente satisfaz o supremo desejo da mente.

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