segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Tomás de Aquino e a inefabilidade do nome de Deus

 

"Pois conhecemos e nomeamos Deus a partir das criaturas. Os nomes que aplicamos a Deus significam  o que pertence às criaturas materiais, cujo conhecimento é natural a nós."

TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Questão XIII, artigo 1

Na questão primeira da Suma Teológica, Tomás de Aquino apresenta as razões pelas quais é possível provar racional e demonstrativamente a existência de Deus. Um dos problemas envolvidos nessa prova é o fato de que não seria possível demonstrar a existência de Deus por um silogismo, dado que não há entes singulares divinos a partir dos quais abstrair um termo médio que afirmasse a natureza do Ser Divino. 

Quando construímos um silogismo como "Sócrates é homem/Homens são mortais/Logo, Sócrates é mortal", só podemos deduzir logicamente que Sócrates é mortal porque "homens são mortais" é o termo médio da demonstração. Isto é, "homens são mortais" liga "Sócrates é homem" a "Sócrates é mortal" justamente porque mostra que se Sócrates é um homem, e estes são mortais, então Sócrates, por pertencer à classe humana, deve também estar sujeito à mortalidade que caracteriza todos os seres humanos.

Por outro lado, chegamos ao conhecimento de que todos os homens são mortais a partir da abstração da essência comum a todos os homens, antecedida pela observação dos exemplares singulares de seres humanos concretos. Ocorre que isso não é possível com Deus. Não temos acesso perceptual ao Ser Divino e, portanto, não podemos formar nenhum juízo acerca de Sua natureza. 

Sendo assim, embora a existência de Deus não seja evidente, nenhuma demonstração silogística pode ser formulada. Mas isso não significa que seja impossível provar que Deus existe. A demonstração deverá partir dos efeitos à causa, ou seja, será preciso analisar os entes que existem no mundo para mostrar que eles são efeitos de uma determinada causa remota. É dessa forma que são formuladas as famosas cinco vias de Tomás de Aquino.

Tal método de demonstração deixa em aberto as questões relativas à essência divina. Tudo o que conhecemos de Deus depende daquilo que conhecemos das coisas. Não conhecemos do Primeiro Princípio a não ser aquilo que derivamos da existência das coisas. Por conta disso, sabemos por dedução lógica uma série de atributos divinos, mas somos incapazes de formular a essência de Deus em uma definição. 

Não é possível defini-Lo, contudo atribuímos diversos nomes a Deus. As próprias Escrituras o fazem. A questão é saber em qual sentido é possível atribuir nomes a Deus se não conhecemos Sua essência. Dionísio, o Areopagita, em seu Os Nomes Divinos, obra seminal do neoplatonismo cristão, define que o Princípio Divino está para além de todas as palavras humanas, mesmo o "Ser" e "Deus".

Tomás de Aquino enfrenta essa problemática na questão XIII da Suma Teológica. Como tudo o que conhecemos sobre Deus procede das criaturas, diz o filósofo e teólogo, os nomes que damos a Ele não correspondem à Sua essência. Os nomes são aplicados a Deus querendo significar a substância divina, mas como tudo o que conhecemos pertence primariamente às criaturas materiais, esses nomes nunca são uma representação completa d'Ele. Eles expressam o Absoluto na medida na qual O conhecemos, isto é, na medida em que as criaturas O representam.

Os entes materiais representam Deus de forma imperfeita, enquanto apresentam alguma perfeição, e, como nosso conhecimento teórico provém dos sentidos que captam somente os entes materiais, nossa representação de Deus é imperfeita. Se dizemos "Deus é bom", o significado dessa afirmação é que qualquer bem que há nas criaturas preexiste em Deus de forma muito mais alta. Deus é bom não porque causa o bem, mas sim porque Ele é bom de forma infinita.

Os nomes são atribuídos a Deus de forma própria no sentido de que qualquer perfeição pertence a Ele de modo próprio. Isto é, "bom" é uma perfeição que, na realidade, pertence mais propriamente a Deus do que a qualquer coisa finita. Entretanto, o modo de significação dessa perfeição que atribuímos a Deus não corresponde ao que é próprio a Ele. 

O que Tomás está dizendo é que, como só conhecemos Deus pelas criaturas, atribuímos a Ele nomes que querem descrever a Sua essência, mas que, como são conceitos provenientes de entes limitados, eles sempre estão muito abaixo da grandeza divina. Todavia, se erramos em termos de grandeza, pois nossos parâmetros são limitados, não erramos quando atribuímos a Ele uma perfeição que vemos no mundo, pois qualquer perfeição que está no mundo preexiste em Deus de modo muito mais eminente, de modo infinito. 

Em Deus, as perfeições, como o "bem", são sempre infinitas em grau, mas nas criaturas elas se apresentam de modo limitado. Como só conhecemos o que é limitado, atribuímos a Deus essas perfeições no nível limitado que conhecemos, sem jamais alcançar a ilimitação que as perfeições possuem no seio do próprio Deus. Não podemos nos referir ao infinito a não ser usando termos finitos que sabemos que não são completamente adequados para expressar o que desejamos expressar.

Daí decorre que nenhum termo atribuído a Deus pode ser utilizado de modo unívoco. Um termo é usado de modo unívoco quando ele é empregado sempre no mesmo sentido. Por exemplo, se digo que o cachorro e o homem são animais, utilizo o termo "animal" no mesmo sentido tanto para o cachorro quanto para o homem. Isso não quer dizer que homem e cachorro sejam a mesma coisa. O que significa é que ambos são igualmente animais e, enquanto animais, possuem as mesmas características. 

O que foi dito acima sobre nosso modo limitado de expressar a perfeição divina, exclui logicamente a possibilidade de que os nomes que atribuímos a Deus tenham um sentido equívoco. Um termo é empregado em sentido equívoco quando ele tem significados completamente diferentes de acordo com a situação. Por exemplo, "manga" de camisa e "manga" fruta são sentidos completamente diferentes de um mesmo termo.

Ora, se os nomes que atribuímos a Deus fossem equívocos, nada poderíamos dizer sobre Ele com algum sentido. Estaria cortada toda e qualquer semelhança entre Deus e os entes limitados. Deus seria algo do qual não poderíamos dizer nada com a pretensão de descrever algum aspecto de Sua realidade. O absurdo dessa posição salta aos olhos quando compreendemos que isso instalaria uma barreira intransponível no próprio Ser.

O que afirmamos de Deus sempre se dá no âmbito da analogia, o meio-termo entre o unívoco e o equívoco. A analogia é uma síntese entre diferenças e semelhanças. Por exemplo, quando digo que o leão é o rei da floresta, não estou afirmando que ambos são a mesma coisa ou que são coisas completamente diferentes. Afirmo que o rei e o leão possuem algumas semelhanças importantes e algumas diferenças igualmente importantes. O leão é o rei da floresta porque tem o domínio inconteste do seu território como um rei, mas de nenhum modo espero encontrar na floresta um leão coroado sentado em um trono.

Assim, as perfeições que atribuímos a Deus só podem ter um sentido analógico, jamais unívoco ou equívoco. Deus é bom não porque "bom" seja uma atribuição unívoca, isto é, não porque Deus é bom no sentido no qual nós podemos ser bons, mas sim porque há uma semelhança entre a bondade divina e a bondade humana. Deus é bom não em um sentido equívoco, completamente diferente de nosso sentido de bondade. Deus é bom porque há uma semelhança de natureza entre a bondade divina e a nossa, embora a bondade divina seja em grau infinito, o que a diferencia da limitada bondade dos homens.

O termo "Deus" quer significar a operação providencial divina sobre todas as coisas. Obviamente, essa operação providencial é conhecida a partir das criaturas, de modo que "Deus" é o nome que atribuímos ao Princípio de tudo o que há. A pergunta seguinte é se seria ou não possível afirmar que o nome "Deus" é comunicável a outros. Em outros termos, a pergunta é se é possível aplicar o nome "Deus" a alguma outra coisa ou somente ao Princípio de tudo. 

Tomás responde que um nome é comunicável de dois modos. No primeiro, o nome é comunicável propriamente, pois se aplica naturalmente a muitos. No segundo, o nome é comunicável somente de acordo com alguma parte de seu significado. A essência ou Forma humana é comunicável naturalmente a muitos, pois todos os homens compartilham a mesma natureza humana. O termo "homem", então, não nomeia um ser singular somente, como Pedro. O termo "homem" se aplica universalmente a todos os entes humanos, se refere a Pedro e também a João, Carlos, Maria, etc.

Porém, quando um termo se refere a um único ente singular, ele não é propriamente comunicável a muitos. Se eu digo que Pedro é como Aquiles, estou atribuindo a Pedro alguma qualidade que pertence ao herói grego. Não estou afirmando que existe uma classe de seres humanos chamada "Aquiles", e que cada um dos membros dessa classe é igualmente um "Aquiles". O nome "Aquiles" designa somente um ente: o guerreiro e herói grego de quem fala a Ilíada de Homero. Só é possível chamar qualquer outro homem de "Aquiles" em sentido metafórico.

Uma vez que só há um Deus e Princípio de todas as coisas, o nome "Deus" só se refere a Ele e a mais ninguém. "Deus" não é o nome de uma essência compartilhável com outros, não é uma classe na qual todos os membros exibem as mesmas características. O termo "Deus" se refere só e tão somente a Deus. Nenhum outro ente pode partilhar da Sua deidade. Mas é possível falar de "deuses" no sentido figurado, quando queremos atribuir a um ente qualquer alguma das características de Deus. A absoluta unicidade de Deus é indicada pelos hebreus com o Tetragrammaton: YHWH.

Nas Escrituras, Deus se revela a Moisés como "Aquele que é". Tomás argumenta que tal nome é aquele mais propriamente atribuído a Deus. Primeiro, por conta de sua significação, pois "Aquele que é" designa o Ser em si mesmo. Ou seja, Deus não é isto ou aquilo, Ele é o próprio ato de existir. A Sua essência, a Sua natureza, é puro existência. Em todos os entes, há diferença entre a sua essência e sua existência. A essência diz o que a coisa é, e a existência diz que a coisa efetivamente está na realidade. Em Deus não há essa diferença. Sua essência é a própria existência. 

Em segundo lugar, o "Ser" é o termo mais universal possível. Não designa isto ou aquilo, refere-se a todo e qualquer ente encarado como mero ser. Como o termo se aplica a tudo o que é, não existe termo mais universal do que ele. Não conhecemos a essência divina, quanto mais o nome que atribuímos a Deus for universal, menos ele estará identificado com algum ente limitado e, portanto, mais próximo de expressar a absoluta unicidade divina. "Aquele que é" não designa algo determinado, algo limitado a alguma categoria ou classe. O Ser engloba tudo e não é determinado por nada.

Por fim, "Aquele que é" designa o Ser no presente, sem início ou fim, passado ou futuro. Corresponde assim à eternidade divina, onde não há tempo. Todavia, mais ainda expressa Deus o nome Tetragrammaton, pois indica a natureza divina, incomunicável e, por assim dizer, absolutamente singular.

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