"A moralidade de Cálicles, como a de Nietzsche, pode ser invertida, mas é uma moralidade sobre a qual é francamente sério. Ele tem um ideal definido que o entusiasma, e, embora seja um ideal falso, Platão claramente pretende nos fazer sentir que há ali uma certa grandeza que concede a isso um fascínio perigoso. Para ser fascinado por esse ideal, é realmente mister possuir uma certa grandeza de alma. (...) O ideal que ele defende é o dos homens de ação que agem por amor à própria ação, os Napoleões e os Cromwells, e é sua convicção de que há uma moral genuína sobre a qual precisamente repousa o ideal. (...) Assim, o ideal de Cálicles, como aquele de Nietzsche, é o cultivo bem sucedido da Wille zur Macht, e seu 'homem forte', como o de Nietzsche, é um ser do tipo de César Bórgia, como concebido na lenda popular."
A.E.TAYLOR, Plato: the man and his works, p. 116/119 (tradução minha)
Após desvencilhar-se de Górgias e de Polos, Sócrates é interpelado por Cálicles, que pretende tomar o lugar dos dois no debate. Ele começa afirmando que Sócrates tem os modos de um orador popular, e que Górgias e Polos foram conduzidos à contradição pelo respeito humano. Houvessem dito o que realmente pensavam, teriam vencido o debate. Mas, com Cálicles, tudo será diferente dali adiante.
Partindo do pressuposto de que as leis (νόμος) e a natureza (φύσις) estão em desacordo, Cálicles critica a técnica argumentativa de Sócrates afirmando que este fez uso de uma artimanha. Quando Polos tratava do mal em termos legais, Sócrates respondia em termos naturais e vice-versa. Sofrer injustiça é próprio de um escravo, cuja vida nada vale, e são os fracos que formulam as leis. Por essa razão, as leis refletem os interesses e as concepções desses mesmos homens fracos.
A concepção segundo a qual cometer uma injustiça é pior do que sofrê-la provém da cabeça de homens com uma mentalidade de escravo. São eles que, temerosos de sofrer nas mãos dos fortes, criam leis que os protegem desse perigo. Na realidade, o natural é considerar que sofrer uma injustiça é pior do que cometê-las. O justo é o natural e não a norma social advinda dos fracos. A lei não é mais do que uma capa que esconde o medo dos fracos diante do direito natural dos fortes.
A argumentação de Cálicles toma a forma de uma franca defesa do direito do mais forte. É natural que o mais forte tenha vantagem sobre o mais fraco. Seja no reino animal, seja nas cidades e nas famílias, o mesmo acontece: o superior manda no inferior. Os fortes, desde a infância, são ensinados, por meio de encantações e sortilégios, que o ideal de justiça é a igualdade. Mas virá o homem que sacudirá e quebrará essas cadeias antinaturais e se tornará mestre, fazendo resplandecer a justiça segundo a natureza. Tal como Hércules tomou as vacas de Geryon sem pagar por elas, pelo simples fato de ser o mais forte.
Eric Voegelin, no terceiro volume de seu Order and History, expõe a posição de Cálicles nos seguintes termos:
"A Natureza é a realidade fundamental, e a afirmação vitoriosa da physis é o sentido da vida. A ordem da alma, que para Sócrates se origina no eroticismo do místico, é rejeitada como uma convenção inventada pelas naturezas fracas a fim de restringir as fortes. Ninguém prefere sofrer uma injustiça em vez de cometê-la. Aqueles que afirmam que sim têm natureza de escravo. Nenhum homem de natureza nobre concordaria com isso. Essa não é a atitude de um patife de segunda categoria como Polos, que está ciente de ser um canalha, mas sim a deliberada transvaloração dos valores a partir de uma contraposição existencial." (p.32, tradução minha)
Cálicles volta-se em seguida contra a própria filosofia ao afirmar que esta é uma boa atividade para os jovens, se praticada com moderação, mas não é adequada a homens maduros. A filosofia não ensina as leis da cidade, as convenções públicas e privadas, os prazeres e as paixões dos homens. Em suma, a filosofia não ensina a experiência dos costumes. Um homem adulto será digno de riso se permanecer apegado à prática da filosofia.
Há ainda mais: se a filosofia não ensina os costumes corretos, pode chegar o dia em que alguém acuse Sócrates de um crime e que este seja incapaz de se defender por conta de sua ignorância dos modos apropriados em um tribunal. Que espécie de arte é essa, a filosofia, que torna o homem pior e não melhor? Cálicles exorta Sócrates a abandonar essas finezas filosóficas e a praticar a música das ações.
É possível ver aqui insinuada uma diferença fundamental que separa Sócrates de Cálicles, a saber, a concepção do que deve ser o homem. Para o filósofo, a vida deve ser uma busca incessante da verdade, e para Cálicles, a vida boa é aquela que se rege pelos interesses práticos e imediatos. A questão central do diálogo, como assevera o próprio Sócrates, é saber como deve ser o homem.
Sócrates indaga se são os mais fortes aqueles que são os mais robustos. Cálicles declara que há identidade entre "valer mais", "ser o mais forte" e "ser o mais robusto". O filósofo responde dizendo que se o mais forte é o mais robusto, a maioria é mais forte que um indivíduo, e, ademais, a maioria crê ser pior cometer injustiças do que cometê-las. O raciocínio socrático toma a seguinte forma: se há identidade entre "ser mais forte" e "ser robusto", e se a multidão é mais robusta que o indivíduo, então a multidão é mais forte que o indivíduo.
Ora, a tese de Cálicles é a de que os fortes devem comandar e que, para eles, sofrer um injustiça é pior do que cometê-la. Se os fortes devem comandar, então, dado que uma multidão é mais robusta do que um indivíduo, a multidão é mais forte e deve governar. E mais, se o natural é o mais forte, o mais forte (a multidão) afirma que é melhor sofre injustiças do que cometê-las. Se Cálicles permanecer na identificação do forte com o robusto, ele terá de aceitar que a opinião do mais forte defende o exato oposto de sua própria posição.
Cálicles é obrigado a refinar sua posição, e, protestando, rejeita a idéia de que ser o mais forte significaria simplesmente possuir mais força física. Caso isso fosse verdade, uma multidão de escravos poderia ser mais forte que seus senhores, coisa que a Cálicles repugna. Aquele que vale mais é aquele que é mais inteligente, diz o aristocrata, não a turba dos homens miseráveis.
Mas, se quem vale mais é quem é mais inteligente, então o especialista em alguma arte, como o médico, deveria governar. O mesmo com relação aos sapateiros e aos cozinheiros. Cálicles é encurralado novamente. Sócrates toma o mais inteligente como aquele que sabe uma determinada arte e, dado que quem sabe produzir algo sabe mais do que quem não sabe, ele tira daí a consequência de que os especialistas deveriam governar.
Cálicles recua de novo e acrescenta à sua definição dos mais fortes, além da inteligência, uma virilidade enérgica. São esses que devem governar e possuir a autoridade. Autoridade sobre eles mesmos ou sobre os outros? Autoridade sobre suas próprias paixões e prazeres, tal como o homem sábio que possui autocontrole? Cálicles responde que os sábios são imbecis, e que o bom e natural é dar vazão a todos os desejos no seu mais alto grau. Só o escravo está preso a cadeias. O homem livre deve satisfazer todo e qualquer desejo e pôr a serviço desse fim toda a sua inteligência e toda a sua energia.
A moderação é a moral dos fracos. Os fortes devem usufruir de tudo sem entraves ou peias. Franca licença e liberdade sem reservas constituem a virtude (ἀρετή) e a felicidade (εὐδαιμονία). Então, diz Sócrates, não estão certos os que dizem ser felizes os que nada desejam. Tais homens são como pedras ou como mortos, afirma Cálicles.
Os fracos criaram as leis para moderar os fortes, mas estes devem ser completamente livres dessas convenções sociais e dar vazão a todos os seus desejos. Cálicles afirma aqui que toda e qualquer moderação é um controle exercido sobre si mesmo. Do mesmo modo que as leis limitam as ações dos fortes, a moderação mutila e refreia o fluxo natural dos seus desejos e das suas vontades. O bem é o curso desimpedido e natural da satisfação dos desejos.
Cálicles considera que não é possível ser livre com restrições, quaisquer que elas sejam. A restrição legal externa é fruto do medo dos fracos que temem ser vítimas dos mais fortes, e a restrição moral interna é fruto de uma natureza tíbia e sem virilidade. Coerentemente, Cálicles acha que sofrer uma injustiça é pior do que cometer uma injustiça, pois sofrer é ser limitado por algo externo ou interno, é ser passivo e, portanto, fraco.
Sócrates usa uma fábula composta por um certo siciliano na qual a parte da alma onde residem os desejos é comparada a um barril furado, por conta de sua incapacidade de reter o que nela é despejado. A alma imoderada, insaciável, é como uma peneira com a qual alguém pretendesse encher um barril furado. Ora, não pode haver ninguém no Hades mais miserável do que alguém condenado a encher um barril furado usando uma peneira.
Cálicles não se convence e Sócrates usa uma segunda alegoria. Imagine-se dois homens que possuem barris. O primeiro deposita em seus barris perfeitos líquidos de valores e de importância variados, alguns raros e que demandam muito esforço. Tendo enchido os recipientes, está satisfeito e feliz. O segundo também despeja líquidos nos seus barris, mas os recipientes são furados e ruins, de modo que nunca ficam cheios. Quem tem a vida melhor?
Cálicles responde que o homem satisfeito e pleno não possui mais nenhum prazer e vive como uma pedra, sem alegria e sem pena. A alegria da vida é o afluxo mais abundante possível. Sócrates diz que tal vida não é semelhante a de um morto ou a de uma pedra, mas sim de um animal voraz que come tanto quanto exonera. A vida feliz seria uma constante sede seguida de imediata saciedade? Sim, responde Cálicles. Desejo e saciamento do desejo contínuos.
Se é assim, pondera o filósofo ateniense, alguém que tivesse uma coceira contínua seria a pessoa mais feliz, pois passaria o tempo saciando a sua vontade de se coçar. Ou mais, a vida de um catamita seria a mais feliz desde que sempre conseguisse satisfazer seus desejos. Cálicles reprova essas alusões a coisas tão baixas e Sócrates rebate a crítica dizendo que quem trouxe esses tópicos à baila foi quem defendeu que qualquer fruição é boa.
Alfred Taylor comenta em seu livro sobre os diálogos de Platão que "Cálicles rejeita essa particular 'transvaloração dos valores', mas não é possível evitá-la enquanto alguém persiste em identificar o bem com o prazeroso. Para condenar qualquer tipo de gratificação, é mister distinguir o bom do prazeroso, e isso Cálicles admite que não pode realizar coerentemente." (p.121)
Cálicles compara o homem moderado a uma pedra ou a um morto. A comparação pode ser vista como uma alusão a uma "vontade de morte" do fraco? Se sim, então ele desenvolve aqui uma psicologia de homens como Sócrates que, em sua defesa da moderação sábia, estariam somente encobrindo uma subterrânea negação da vida. A vida sendo um constante fluxo de desejos, qualquer moderação na fruição desses mesmos desejos constituir-se-ia em uma negação da essência da própria vida.
Por outro lado, se os fracos estão na origem das normas convencionais e das leis, então Cálicles antecipa aqui uma "genealogia da moral". As leis e a moralidade comum são cadeias que acorrentam os fortes e os impedem de dar vazão ao direito natural daquele que é mais vigoroso. Os fracos concebem uma ética de moderação por medo e por serem incapazes de afirmar a vida. A moderação na fruição dos desejos seria a proteção do fraco contra a potência vital dos fortes, e, no fundo, trairia o anseio sub-reptício pela morte.
Cálicles, todavia, parece não entender que mesmo a nobreza e a força exigem hierarquizações e, por conseguinte, freios e distinções de valor entre os desejos. Sua concepção da fruição dos prazeres é crua demais para dar conta da complexidade do fenômeno. É fácil para Sócrates encontrar exemplos de prazeres que mostram as consequências indesejadas dessa concepção pouco sofisticada. Os fortes podem ter uma hierarquia de valores diferente daquela dos fracos, mas ainda assim trata-se de uma distinção valorativa entre os diversos desejos.
Não obstante, Cálicles insistirá na identidade entre o prazer e o bem. Sócrates, em seguida, mostrará com exemplos que essa identidade não se sustenta.
(o comentário seguirá na Parte 3)
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Νεκρομαντεῖον: Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 1 (oleniski.blogspot.com)