terça-feira, 25 de maio de 2021

Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 2

"A moralidade de Cálicles, como a de Nietzsche, pode ser invertida, mas é uma moralidade sobre a qual é francamente sério. Ele tem um ideal definido que o entusiasma, e, embora seja um ideal falso, Platão claramente pretende nos fazer sentir que há ali uma certa grandeza que concede a isso um fascínio perigoso. Para ser fascinado por esse ideal, é realmente mister possuir uma certa grandeza de alma. (...) O ideal que ele defende é o dos homens de ação que agem por amor à própria ação, os Napoleões e os Cromwells, e é sua convicção de que há uma moral genuína sobre a qual precisamente repousa o ideal. (...) Assim, o ideal de Cálicles, como aquele de Nietzsche, é o cultivo bem sucedido da Wille zur Macht, e seu 'homem forte', como o de Nietzsche, é um ser do tipo de César Bórgia, como concebido na lenda popular."

A.E.TAYLOR, Plato: the man and his works, p. 116/119 (tradução minha)

Após desvencilhar-se de Górgias e de Polos, Sócrates é interpelado por Cálicles, que pretende tomar o lugar dos dois no debate. Ele começa afirmando que Sócrates tem os modos de um orador popular, e que Górgias e Polos foram conduzidos à contradição pelo respeito humano. Houvessem dito o que realmente pensavam, teriam vencido o debate. Mas, com Cálicles, tudo será diferente dali adiante.

Partindo do pressuposto de que as leis (νόμος) e a natureza (φύσις) estão em desacordo, Cálicles critica a técnica argumentativa de Sócrates afirmando que este fez uso de uma artimanha. Quando Polos tratava do mal em termos legais, Sócrates respondia em termos naturais e vice-versa. Sofrer injustiça é próprio de um escravo, cuja vida nada vale, e são os fracos que formulam as leis. Por essa razão, as leis refletem os interesses e as concepções desses mesmos homens fracos. 

A concepção segundo a qual cometer uma injustiça é pior do que sofrê-la provém da cabeça de homens com uma mentalidade de escravo. São eles que, temerosos de sofrer nas mãos dos fortes, criam leis que os protegem desse perigo. Na realidade, o natural é considerar que sofrer uma injustiça é pior do que cometê-las. O justo é o natural e não a norma social advinda dos fracos. A lei não é mais do que uma capa que esconde o medo dos fracos diante do direito natural dos fortes.

A argumentação de Cálicles toma a forma de uma franca defesa do direito do mais forte. É  natural que o mais forte tenha vantagem sobre o mais fraco. Seja no reino animal, seja nas cidades e nas famílias, o mesmo acontece: o superior manda no inferior. Os fortes, desde a infância, são ensinados, por meio de encantações e sortilégios, que o ideal de justiça é a igualdade. Mas virá o homem que sacudirá e quebrará essas cadeias antinaturais e se tornará mestre, fazendo resplandecer a justiça segundo a natureza. Tal como Hércules tomou as vacas de Geryon sem pagar por elas, pelo simples fato de ser o mais forte.

Eric Voegelin, no terceiro volume de seu Order and History, expõe a posição de Cálicles nos seguintes termos: 

"A Natureza é a realidade fundamental, e a afirmação vitoriosa da physis é o sentido da vida. A ordem da alma, que para Sócrates se origina no eroticismo do místico, é rejeitada como uma convenção inventada pelas naturezas fracas a fim de restringir as fortes. Ninguém prefere sofrer uma injustiça em vez de cometê-la. Aqueles que afirmam que sim têm natureza de escravo. Nenhum homem de natureza nobre concordaria com isso. Essa não é a atitude de um patife de segunda categoria como Polos, que está ciente de ser um canalha, mas sim a deliberada transvaloração dos valores a partir de uma contraposição existencial." (p.32, tradução minha)

Cálicles volta-se em seguida contra a própria filosofia ao afirmar que esta é uma boa atividade para os jovens, se praticada com moderação, mas não é adequada a homens maduros. A filosofia não ensina as leis da cidade, as convenções públicas e privadas, os prazeres e as paixões dos homens. Em suma, a filosofia não ensina a experiência dos costumes. Um homem adulto será digno de riso se permanecer apegado à prática da filosofia. 

Há ainda mais: se a filosofia não ensina os costumes corretos, pode chegar o dia em que alguém acuse Sócrates de um crime e que este seja incapaz de se defender por conta de sua ignorância dos modos apropriados em um tribunal. Que espécie de arte é essa, a filosofia, que torna o homem pior e não melhor? Cálicles exorta Sócrates a abandonar essas finezas filosóficas e a praticar a música das ações.

É possível ver aqui insinuada uma diferença fundamental que separa Sócrates de Cálicles, a saber, a concepção do que deve ser o homem. Para o filósofo, a vida deve ser uma busca incessante da verdade, e para Cálicles, a vida boa é aquela que se rege pelos interesses práticos e imediatos. A questão central do diálogo, como assevera o próprio Sócrates, é saber como deve ser o homem. 

Sócrates indaga se são os mais fortes aqueles que são os mais robustos. Cálicles declara que há identidade entre "valer mais", "ser o mais forte" e "ser o mais robusto". O filósofo responde dizendo que se o mais forte é o mais robusto, a maioria é mais forte que um indivíduo, e, ademais, a maioria crê ser pior cometer injustiças do que cometê-las. O raciocínio socrático toma a seguinte forma: se há identidade entre "ser mais forte" e "ser robusto", e se a multidão é mais robusta que o indivíduo, então a multidão é mais forte que o indivíduo. 

Ora, a tese de Cálicles é a de que os fortes devem comandar e que, para eles, sofrer um injustiça é pior do que cometê-la. Se os fortes devem comandar, então, dado que uma multidão é mais robusta do que um indivíduo, a multidão é mais forte e deve governar. E mais, se o natural é o mais forte, o mais forte (a multidão) afirma que é melhor sofre injustiças do que cometê-las. Se Cálicles permanecer na identificação do forte com o robusto, ele terá de aceitar que a opinião do mais forte defende o exato oposto de sua própria posição.

Cálicles é obrigado a refinar sua posição, e, protestando, rejeita a idéia de que ser o mais forte significaria simplesmente possuir mais força física. Caso isso fosse verdade, uma multidão de escravos poderia ser mais forte que seus senhores, coisa que a Cálicles repugna. Aquele que vale mais é aquele que é mais inteligente, diz o aristocrata, não a turba dos homens miseráveis.

Mas, se quem vale mais é quem é mais inteligente, então o especialista em alguma arte, como o médico, deveria governar. O mesmo com relação aos sapateiros e aos cozinheiros. Cálicles é encurralado novamente. Sócrates toma o mais inteligente como aquele que sabe uma determinada arte e, dado que quem sabe produzir algo sabe mais do que quem não sabe, ele tira daí a consequência de que os especialistas deveriam governar. 

Cálicles recua de novo e acrescenta à sua definição dos mais fortes, além da inteligência, uma virilidade enérgica. São esses que devem governar e possuir a autoridade. Autoridade sobre eles mesmos ou sobre os outros? Autoridade sobre suas próprias paixões e prazeres, tal como o homem sábio que possui autocontrole? Cálicles responde que os sábios são imbecis, e que o bom e natural é dar vazão a todos os desejos no seu mais alto grau. Só o escravo está preso a cadeias. O homem livre deve satisfazer todo e qualquer desejo e pôr a serviço desse fim toda a sua inteligência e toda a sua energia.

A moderação é a moral dos fracos. Os fortes devem usufruir de tudo sem entraves ou peias. Franca licença e liberdade sem reservas constituem a virtude (ἀρετή) e a felicidade (εὐδαιμονία). Então, diz Sócrates, não estão certos os que dizem ser felizes os que nada desejam. Tais homens são como pedras ou como mortos, afirma Cálicles. 

Os fracos criaram as leis para moderar os fortes, mas estes devem ser completamente livres dessas convenções sociais e dar vazão a todos os seus desejos. Cálicles afirma aqui que toda e qualquer moderação é um controle exercido sobre si mesmo. Do mesmo modo que as leis limitam as ações dos fortes, a moderação mutila e refreia o fluxo natural dos seus desejos e das suas vontades. O bem é o curso desimpedido e natural da satisfação dos desejos.

Cálicles considera que não é possível ser livre com restrições, quaisquer que elas sejam. A restrição legal externa é fruto do medo dos fracos que temem ser vítimas dos mais fortes, e a restrição moral interna é fruto de uma natureza tíbia e sem virilidade. Coerentemente, Cálicles acha que sofrer uma injustiça é pior do que cometer uma injustiça, pois sofrer é ser limitado por algo externo ou interno, é ser passivo e, portanto, fraco.

Sócrates usa uma fábula composta por um certo siciliano na qual a parte da alma onde residem os desejos é comparada a um barril furado, por conta de sua incapacidade de reter o que nela é despejado. A alma imoderada, insaciável, é como uma peneira com a qual alguém pretendesse encher um barril furado. Ora, não pode haver ninguém no Hades mais miserável do que alguém condenado a encher um barril furado usando uma peneira.

Cálicles não se convence e Sócrates usa uma segunda alegoria. Imagine-se dois homens que possuem barris. O primeiro deposita em seus barris perfeitos líquidos de valores e de importância variados, alguns raros e que demandam muito esforço. Tendo enchido os recipientes, está satisfeito e feliz. O segundo também despeja líquidos nos seus barris, mas os recipientes são furados e ruins, de modo que nunca ficam cheios. Quem tem a vida melhor?

Cálicles responde que o homem satisfeito e pleno não possui mais nenhum prazer e vive como uma pedra, sem alegria e sem pena. A alegria da vida é o afluxo mais abundante possível. Sócrates diz que tal vida não é semelhante a de um morto ou a de uma pedra, mas sim de um animal voraz que come tanto quanto exonera. A vida feliz seria uma constante sede seguida de imediata saciedade? Sim, responde Cálicles. Desejo e saciamento do desejo contínuos.

Se é assim, pondera o filósofo ateniense, alguém que tivesse uma coceira contínua seria a pessoa mais feliz, pois passaria o tempo saciando a sua vontade de se coçar. Ou mais, a vida de um catamita seria a mais feliz desde que sempre conseguisse satisfazer seus desejos. Cálicles reprova essas alusões a coisas tão baixas e Sócrates rebate a crítica dizendo que quem trouxe esses tópicos à baila foi quem defendeu que qualquer fruição é boa. 

Alfred Taylor comenta em seu livro sobre os diálogos de Platão que "Cálicles rejeita essa particular 'transvaloração dos valores', mas não é possível evitá-la enquanto alguém persiste em identificar o bem com o prazeroso. Para condenar qualquer tipo de gratificação, é mister distinguir o bom do prazeroso, e isso Cálicles admite que não pode realizar coerentemente." (p.121) 

Cálicles compara o homem moderado a uma pedra ou a um morto. A comparação pode ser vista como uma alusão a uma "vontade de morte" do fraco? Se sim, então ele desenvolve aqui uma psicologia de homens como Sócrates que, em sua defesa da moderação sábia, estariam somente encobrindo uma subterrânea negação da vida. A vida sendo um constante fluxo de desejos, qualquer moderação na fruição desses mesmos desejos constituir-se-ia em uma negação da essência da própria vida.

Por outro lado, se os fracos estão na origem das normas convencionais e das leis, então Cálicles antecipa aqui uma "genealogia da moral". As leis e a moralidade comum são cadeias que acorrentam os fortes e os impedem de dar vazão ao direito natural daquele que é mais vigoroso. Os fracos concebem uma ética de moderação por medo e por serem incapazes de afirmar a vida. A moderação na fruição dos desejos seria a proteção do fraco contra a potência vital dos fortes, e, no fundo, trairia o anseio sub-reptício pela morte.

Cálicles, todavia, parece não entender que mesmo a nobreza e a força exigem hierarquizações e, por conseguinte, freios e distinções de valor entre os desejos. Sua concepção da fruição dos prazeres é crua demais para dar conta da complexidade do fenômeno. É fácil para Sócrates encontrar exemplos de prazeres que mostram as consequências indesejadas dessa concepção pouco sofisticada. Os fortes podem ter uma hierarquia de valores diferente daquela dos fracos, mas ainda assim trata-se de uma distinção valorativa entre os diversos desejos.

Não obstante, Cálicles insistirá na identidade entre o prazer e o bem. Sócrates, em seguida, mostrará com exemplos que essa identidade não se sustenta.

(o comentário seguirá na Parte 3)

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Leia também: 

Νεκρομαντεῖον: Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 1 (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Moralidade e ressentimento no primeiro ensaio da "Genealogia da Moral" de Friedrich Nietzsche (oleniski.blogspot.com)

domingo, 16 de maio de 2021

Pierre Duhem e o realismo estrutural não-explicativo da teoria física

"A teoria física deve se esforçar para representar todo o conjunto das leis naturais por um sistema único do qual todas as partes sejam compatíveis entre elas."

PIERRE DUHEM, Physique de croyant (tradução minha)

No cenário do debate epistemológico sobre a natureza das asserções e das teorias científicas, duas posições se destacam: o realismo e o antirealismo. Grosso modo, a primeira afirma que as teorias científicas se referem à constituição verdadeira das coisas, e a segunda afirma a tese de que as teorias científicas não são mais do que modelos úteis de predição sem pretensões explicativas. Entre as teorias da ciência antirealistas geralmente é alocada a tese central de Pierre Duhem de que as teorias físicas são meras classificações naturais de leis observacionais sem pretensões à determinação da verdadeira natureza das coisas. 

Entretanto, há um aspecto realista na tese do físico e matemático francês que deve ser enfatizado a fim de matizar seu antirealismo científico. Tratando basicamente das teorias físicas, a posição de Duhem poderia ser definida, cremos, como um realismo estrutural não-explicativo.* Tal classificação pode ser esclarecida nas seguintes teses:

1) As leis observacionais não são explicativas: 

As constantes e as leis naturais que a ciência física observa não são explicativas, isto é, não revelam a natureza última das coisas. Para Duhem, o dever de fornecer uma explicação definitiva da natureza das coisas pertenceria à metafísica e não à teoria física. Limitada por seu próprio método a identificar leis observacionais e a traduzí-las simbolicamente em expressões matemáticas, a teoria física não seria capaz de fornecer qualquer explicação real do comportamento das magnitudes físicas. 

2) A matemática não é explicativa:

A linguagem matemática, por si mesma, não é explicativa. Ela pode aferir relações formais quantitativas somente naqueles aspectos dos fenômenos que são passíveis de serem traduzidos na sua simbologia. Isto é, a matemática opera um recorte que privilegia aquilo que é quantificável, deixando mesmo de fora os aspectos qualitativos dos fenômenos. 

Ademais, a matemática não diz do que são feitas as coisas, nem quais são as entidades que explicam o comportamento manifesto das magnitudes físicas. Se, como defende Duhem, uma explicação deve dar conta da natureza última e fundamental das coisas, a linguagem matemática não é capaz de realizar essa tarefa, pois ela só pode suprir o cientista com um conjunto formal de expressões matemáticas aplicáveis aos fenômenos físicos. Em suma, medir não é explicar.

3) A classificação natural não é explicativa:

Duhem admite a ideia de uma classificação natural resultante da aplicação da matemática aos fenômenos físicos. Expressões matemáticas representando determinadas leis observacionais podem eventualmente se organizar naturalmente em uma classificação hierarquicamente ordenada. Isto é, o cientista percebe que,de certas expressões matemáticas fundamentais, outras expressões podem ser deduzidas logicamente, e outras ainda, independentemente postuladas, podem ser incorporadas à hierarquia original.

Não obstante, a classificação natural resultante não é ela mesma explicativa. Formada por uma hierarquia formal de proposições matemáticas, ela sofre dos mesmos limites da simbologia que usa como linguagem. Nenhuma explicação da natureza última das coisas pode ser inferida de uma classificação de proposições formais, ainda que descrevam aspectos da realidade observável.

4) A classificação natural revela estrutura ontológica da realidade que não poderia emergir a não ser por meio da estrutura físico-matemática das teorias físicas:

Não seria correto, contudo, inferir que Duhem não reconhece nenhum liame real entre as teorias físicas e as leis observacionais. Se as teorias físicas não podem dizer o que a realidade é na sua estrutura última, ela pode, por meio da classificação natural, fazer emergir uma estrutura matemático-formal que corresponde à realidade. Em outros termos, a matemática toca o real, mas somente na qualidade de linguagem estruturada em uma hierarquia natural de proposições.

O termo natural corresponde à noção segundo a qual o cientista não é a causa da hierarquização das expressões matemáticas. Não se trata aqui de uma organização deliberada ou inventada. São as expressões matemáticas que, por assim dizer, espontaneamente se agrupam hierarquicamente em uma classificação na qual o cientista age somente como o descobridor de relações até então insuspeitadas entre essas proposições.

5) Há, portanto, reais descobertas na teoria física:

Aceitas as teses anteriores, fica claro que há descobertas reais na teoria física. Fica claro também que é nisso que reside o realismo estrutural de Duhem. O que é real é a estrutura matemático-formal que constitui a classificação natural. As teorias, portanto, tocam a realidade na estrutura hierarquizada de proposições matemáticas que reflete uma estrutura ontológica. Todavia, a matemática não explica ou justifica essa estrutura ontológica descoberta por meio dela.

6) Pierre Duhem, portanto, é um realista estrutural não-explicativo no que tange às teorias físicas.

Então, há um realismo estrutural em Duhem, embora seja um realismo não-explicativo. Conserva-se a separação rígida entre física e metafísica propugnada pelo cientista em suas obras ao mesmo tempo em que algo da ontologia da realidade é descortinado graças à estrutura matemático-formal resultante da classificação natural. A teoria física não pode explicar aquilo que ela mesma depreende do real na sua estrutura matemática.

A realidade é manifestada pela matemática, mas não pode ser explicada por ela ou por teorias que fazem uso de seu simbolismo como linguagem formal. Duhem retira as pretensões explicativas da teoria física sem deixar de reconhecer seu alcance ontológico. 
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*Em um congresso sobre Pierre Duhem realizado em 2016 no CBPF, tive a grata surpresa de saber que a minha interpretação das teses de Duhem tinha pontos em comum com a interpretação do Prof. José Chiappin, segundo o qual a posição duhemiana seria a de um realismo estrutural convergente.
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domingo, 9 de maio de 2021

Lao Tzu, o Tao e a natureza do sábio


"O sábio enxerga as coisas em seu contexto total, a um só tempo em sua relatividade e em sua transparência metafísica. (...) vê os fenômenos sub specie aeternitatis e, portanto, em um tipo de simultaneidade. A isso se soma amiúde, por força das coisas, intuições sobre as modalidades praticamente imperceptíveis. O sábio enxerga as causas nos efeitos e os efeitos nas causas, ele vê Deus em tudo e tudo em Deus."

FRITHJOF SCHUON, Regards sur les mondes anciens, p. 144 (tradução minha do original francês)

Lao Tzu (老子) é o mais importante dos três sábios principais do taoísmo, junto com Chuang Tzu e Lieh Tzu. A ele são atribuídos os clássicos Tao Te Ching (道德經), base do taoísmo, e o livro de Wen Tzu (文子). Neste último, Lao Tzu discorre sobre a natureza do sábio e do Tao. 

Assim diz Lao Tzu no Livro de Wen Tzu, capítulo 4:

A sabedoria nada tem a ver com governar os outros, mas sim com ordenar a si mesmo. Nobreza nada tem a ver com poder e posição social, mas com a auto-realização. Atingindo a auto-realização, o mundo inteiro se encontra no eu. Felicidade nada tem a ver com riquezas e posição social, mas é questão de harmonia.

Aqueles que sabem o suficiente para considerar o espírito importante e o mundo leve estão próximos da Via (道). Então, eu disse: 'Alcançando o extremo do vazio, mantendo a quietude, como miríades de seres agem em concerto, deste modo observo o retorno.'

O sábio almeja ordenar a si mesmo e não ordenar ou governar os outros. A nobreza de espírito não é uma exterioridade como o status social, mas um estado interior. Quando o homem se torna sábio, todas as coisas são suas, encontram-se em seu espírito, pois ele está no centro da realidade. 

O Tao (a Via) é o centro imutável e a realidade última, e o sábio habita na fonte de todos os seres. O que pode querer o sábio se ele habita no vazio que é o nascedouro de todas as dez mil coisas? As riquezas e a posição social não importam para aquele que vive na perfeita equanimidade.

Continua Lao Tzu:

O Tao (a Via) molda miríades de seres, mas é perpetuamente sem forma. Silente e imóvel, compreende inteiramente o desconhecido indiferenciado. Nenhuma vastidão é grande o suficiente para estar fora dele, nada é tão diminuto o suficiente para estar dentro dele. Não possui moradia, mas dá nascimento a todos os nomes dos existentes e dos inexistentes.

Pessoas reais incorporam isso por meio da vacuidade aberta, da uniforme indiferença, clara pureza e completa simplicidade, não se imiscuindo com as coisas. Sua retidão perfeita é o Tao do Céu e da Terra, por isso são chamadas de pessoas reais.

O Tao é o fundamento ontológico último de todas as coisas, a regra que dá forma a todas as regras. Estando acima de todas as coisas como seu fundamento, não possui as limitações das coisas. É imóvel e silencioso em si mesmo, desconhecido e indiferenciado. As diferenciações pertencem aos entes e não ao Princípio. Não possui moradia, isto é, não está em nenhum lugar, mas sim em todos simultaneamente, dado que dá origem a tudo o que existe e também ao que não existe.

As pessoas reais são os sábios, os que vivem no Tao, na vacuidade original, na equanimidade absoluta do Princípio. O sábio é indiferente às coisas, puro e simples, pois está identificado não consigo mesmo, com seus desejos, apreços e aversões, mas com o Tao, a fonte de tudo, e que possui em si tudo na qualidade de Princípio. A retidão perfeita é a Via do Céu (天) e da Terra (地), isto é, da completude que une em si mesma os opostos originários.

Há no sábio, se assim é possível me expressar, uma "desidentificação" consigo mesmo na medida em que ele se identifica com o Tao. Ser sábio é identificar-se com o Princípio, e ser real e plenamente humano é ser um com o fundamento de tudo. Para isso, é mister esvaziar-se de todos os desejos, das aversões e dos apreços, abandonar as oposições e as dualidades na direção da unidade última. Nesse sentido, o Tao é o vazio supremo, e o sábio deve ser igualmente vazio. Como ensina Lao Tzu no Livro de Wen Tzu, capítulo 3:

Vazio significa que não há fardo no interior. Equanimidade significa que o espírito está desobstruído. Quando os desejos usuais não o incomodam, essa é a consumação do vazio. Quando não há desejos ou aversões, essa é a consumação da equanimidade. Quando está íntegro e imutável, essa é a consumação da quietude. Quando não está misturado com as coisas, essa é a consumação da pureza. Quando não lamenta nem exulta, essa é a consumação da retidão.

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Leia também: Νεκρομαντεῖον: taoísmo (oleniski.blogspot.com)