sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Ludwig Wittgenstein, Tractatus, mística e os limites da linguagem



"5.634 - Isto está conectado com o fato  de que nenhuma parte de nossa experiência é também a priori.
Tudo o que vemos poderia também ser de outro modo.
Tudo o que nós conseguimos descrever poderia ser diferente.
Não há ordem a priori das coisas."

"6. 36311 - Que o Sol nascerá amanhã é uma hipótese. E isso significa que nós não sabemos se ele nascerá."
"6.37 - A necessidade de que uma coisa aconteça porque outra aconteceu não existe. Só há necessidade lógica."

LUDWIG WITTGENSTEIN, Tratactus Logico-Philosophicus (tradução minha, itálicos no original)

O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), em sua única obra publicada em vida, o Tractatus Logico-Philosophicus (1921), afirma que os limites da linguagem e, por conseguinte, do mundo, coincidem com os limites da imaginação que propõe figurações, isto é, modelos de estados de coisas possíveis que depois serão comparados com a realidade. Wittgenstein afirma que o mundo é o caso e o que não é o caso não é mundo. Daí que só é mundo o que é efetivo.

O filósofo americano Ray Monk, em seu How to Read Wittgenstein, afirma que a concepção pictórica da linguagem teria sido sugerida por uma experiência durante a Primeira Guerra Mundial. Segundo Monk, Wittgenstein teria lido em uma revista sobre um julgamento no qual um acidente de carro teria sido representado na corte por meio de um modelo com miniaturas de carros, prédios e pessoas. Do mesmo modo que a dinâmica real do acidente foi representada pela posição espacial das miniaturas e qualquer mudança na posição das miniaturas representaria uma situação diferente, as proposições da linguagem seriam modelos de estados de coisas dados na realidade.

Não obstante, no início do Tractatus, Wittgenstein afirma que as diversas estruturas de combinação entre os objetos derivam da forma desses objetos, isto é, o que é possível em termos de estados de coisas é determinado pelos próprios objetos que carregam em si mesmos um conjunto de ligações possíveis entre eles. Portanto, o que é possível é um conjunto mais ou menos determinado de combinações entre objetos e a proposição não é mais do que a eleição de uma dessas combinações na categoria de uma hipótese cuja verdade averiguar-se-á na comparação da figura com o mundo externo efetivo.

"4.01 - A proposição é um retrato da realidade.
            A proposição é um modelo da realidade como supomos que ela é."
"4.05 - A realidade é comparada com a proposição."  

Assim como certas peças de forma definida só permitem um determinado conjunto de combinações possíveis entre si, assim também os objetos só permitem determinadas combinações possíveis em proposições. Nem toda proposição é possível porque nem toda combinação é possível. Mas a combinação escolhida (o fato atômico, como Wittgenstein denomina), não implica logicamente nenhuma outra combinação, da mesma forma que uma estrutura feita a partir de certas peças (que é limitada/possibilitada pelas formas dessas peças) não implica ou exige nenhuma outra estrutura diferente de ela mesma.

Analogamente, uma pintura (ou seja, uma figuração) não implica logicamente uma outra pintura. Podemos notar semelhanças e até continuidades de um quadro a outro em uma exposição, mas uma pintura não exige a seguinte como um liame lógico necessário. Por essa mesma razão, Wittgenstein afirma que a ciência natural é tudo o que é o caso (a totalidade das proposições verdadeiras, em 4.11), mas é incapaz de justificar a relação necessária entre um estado de coisas e outro. Não há necessidade natural, somente necessidade lógica, afirma o filósofo.

"5.133 - Toda inferência se dá a priori."
"5.134 - Não é possível a inferência da existência de um estado de coisas a partir da existência de outro estado de coisas completamente diferente."
"5.136 - Não há nexo causal que justifique tal inferência."
"5.1361 - Os eventos do futuro não podem ser inferidos a partir daqueles do presente.
                Superstição é a crença no nexo causal." (itálico no original)

O liame de necessidade, portanto, não existe no mundo, pois o mundo é tudo aquilo que é o caso. Entre um estado de coisas e outro não há nada que os ligue necessariamente. A única necessidade admitida no Tractatus é de ordem lógica. E isso porque as inferências lógicas não são mais que tautologias. O que é dito na conclusão de uma dedução já está dito nas premissas.

"6.1262 - Prova, em lógica, é apenas um expediente mecânico para facilitar o reconhecimento da tautologia, onde é complicado."

Entretanto, se a lógica é composta de tautologias, ela jamais expressa qualquer estado de coisas possível. Uma proposição tem sentido, para Wittgenstein, justamente porque é um modelo de um estado de coisas possível. A lógica, por sua vez, é o estudo das relações inferenciais entre proposições e nada pode afirmar além tautologias.

"Lógica não é uma ciência que descobre verdades. É somente uma coleção de tautologias. E uma tautologia não é uma figuração da realidade. 'Ou está chovendo ou não está chovendo' é sempre verdadeira (ou seja, é uma tautologia, no sentido dado por Wittgenstein), mas não diz nenhuma verdade sobre o mundo. Saber que ou está chovendo ou não está chovendo não é saber qualquer coisa sobre o clima. É saber somente que essa sentença engloba toda possibilidade e que, portanto, não é possível ser falsa. Saber que é sempre verdadeira, portanto, é saber algo sobre a nossa linguagem, não sobre nosso clima."(RAY MONK, p. 50, itálicos no original)

Ora, da mesma forma que tautologias são sempre verdadeiras, contradições são sempre falsas ("Está e não está chovendo"). Tautologias e contradições não dizem nada, não são proposições com sentido, embora não sejam nonsense. A lógica não diz nada, isto é, não é uma figuração de estados de coisas possíveis, mas ela mostra a estrutura de nossa linguagem. Aquilo que torna possível a linguagem não pode ser dito pela própria linguagem e, em certo sentido, transcende à linguagem.

Não sendo possível encontrar essa tautologia lógica nas relações entre as proposições sobre estados de coisas da realidade, Wittgenstein supõe a absoluta independência desses estados de coisas. Assim, o que pode ser dito é aquilo que é o caso, não implicando aí nenhuma relação necessária entre um estado de coisas e outro. O mundo é um conjunto de fatos cuja ligação não pode ser dita pela linguagem sem ultrapassar os limites do que pode ser dito. No Tratactus, Wittgenstein afirma que "pesquisa lógica significa a investigação de toda regularidade. E, fora da lógica, tudo é acidente." (6.3 - itálicos no original)

Eis, pois, uma suposição que une Hume, Popper e Wittgenstein e que determina suas teses acerca do conhecimento da Natureza: só existe necessidade lógica. Isto é, esses pensadores só reconhecem como necessário o vínculo lógico-formal entre conclusão e premissas. Em uma dedução, a conclusão nada diz além daquilo que está nas premissas. Decorre daí que qualquer conclusão que não seja a explicitação daquilo que estava implícito nas premissas será irremediavelmente contraditória. 

A Natureza não exibe esse gênero de necessidade, pois o efeito não se deduz pelo mero exame da causa. O poder de causar o efeito reside na causa, mas não é possível formular a causa de modo a explicitar o efeito como mera consequência analítica de sua definição. Por essa razão, supondo como modelo único da necessidade a necessidade lógica, Hume, por exemplo, não pode admitir entre os fenômenos naturais nada além de "conjunção constante". Nada está unido a nada necessariamente porque nada na Natureza exibe o caráter tautológico da necessidade lógica.

As proposições das ciências naturais são legítimas proposições, pois são figurações de estados de coisas verdadeiros. Mas, a filosofia, a ética, a estética e e religião podem fornecer proposições com sentido? Ao dizer que algo é certo ou errado, não se está afirmando qualquer figuração de um estado de coisas possível. Não é um modelo a ser comparado com a realidade e sim a afirmação de como a realidade deve ou não deve ser. Analogamente, a estética, quando diz que algo é belo, não afirma nenhum modelo de um acontecimento na realidade. Menos ainda a religião. O que poderia significar, dentro dos limites da linguagem propostos por Wittgenstein, a frase "eu realizei a vontade de Deus"?

Não obstante, em seu diário escrito durante os anos de 1914 a 1916, durante a Primeira Guerra Mundial, quando era tenente de artilharia do exército austro-húngaro, Wittgenstein se pergunta sobre Deus, a religião e a felicidade. Em uma entrada do dia 8/7/1916, ele escreve:

"Para viver feliz, é necessário que eu esteja de acordo com o mundo. E é isso mesmo que significa 'ser feliz'.
Eu estou, então, por assim dizer, de acordo com a vontade estrangeira da qual pareço depender. O que quer dizer que 'realizei a vontade de Deus'.
O medo da morte é o melhor sinal de uma vida falsa, isto é, má." (tradução minha, itálicos no original)

Em outra entrada, dessa vez do dia 1/8/1916, Wittgenstein escreve que "Deus é a maneira na qual tudo tem lugar". Parece, então, que a felicidade é um acordo com o modo como as coisas acontecem. A questão é como determinar o conteúdo da vida feliz. A linguagem é incapaz de fazê-lo:

"Eu cheguei a isto: que, simplesmente, a vida feliz é boa, e que a má é infeliz. E se, agora, pergunto-me por qual razão eu deveria ser feliz, a questão me parece em si mesma tautológica. Parece que a vida feliz justifica-se por ela mesma que é a única vida correta.
Tudo isso é, em certo sentido, profundamente misterioso. Está claro que a ética não se deixa exprimir.
Poder-se-ia, é claro, dizer que a vida feliz é mais harmoniosa que a vida infeliz. Mas, em qual sentido?
Qual é a marca objetiva da vida feliz, harmoniosa? Está claro, de novo, que não pode haver tal marca que se deixe descrever.
Essa marca não pode ser física, mas somente metafísica, transcendente.
A ética é transcendente." (dia 30/7/1916 - itálicos no original)

A ética é indizível, do mesmo modo que a religião e a estética. Não há modo de traduzir essas dimensões em termos de proposições com sentido. O modo como Wittgenstein concebe a natureza da linguagem expulsa do campo do dizer essas dimensões que, no entanto, não deixam de ter importância ou valor. Ray Monk assevera que é justamente a ética o fundo real do Tractatus, segundo o próprio Wittgenstein havia declarado em carta a Ludwig von Ficker. Na carta, o filósofo afirmava ainda que tudo aquilo que ele não havia escrito era, na realidade, o mais importante. Tudo aquilo sobre o que muitos estavam tagarelando, ele havia definido permanecendo em silêncio. (RAY MONK, pag. 22)

O mesmo Ray Monk reproduz em seu livro um trecho de uma carta de Lord Bertrand Russell de 1919 na qual o pensador britânico comenta as tendências místicas de Wittgenstein. Os dois filósofos não se viam há seis anos e Russell viajara à Holanda para rever minuciosamente o texto do Tractatus com seu promissor pupilo. Entretanto, a reação de Russell foi de espanto ao constatar que Wittgenstein havia se tornado um "completo místico" após a guerra. Wittgenstein lia Kierkegaard, Angelus Silesius, Dostoievski, Tolstoi, o clássico estudo sobre mística de William James, Varieties of Religious Experience, e cogitava mesmo tornar-se um monge! E essa tendência manifesta-se em sua obra, pois há no Tractatus interessantes afirmações sobre Deus e a mística:

"6.432 - Como o mundo é, é completamente indiferente para o que é mais alto. Deus não revela a si mesmo no mundo.
6.44 - O místico não é como o mundo é, mas que ele é.
6.45 - A contemplação do mundo sub specie aeterni é sua contemplação como um todo limitado.
          O sentimento do mundo como um todo limitado é o sentimento místico.
6.522 - Há, de fato, o inexprimível. Ele mostra a si mesmo; é o místico." (itálicos no original)

Aparece aqui novamente a noção de mostrar para indicar uma dimensão que transcende os limites da linguagem. Em outra proposição, Wittgenstein afirma que o sentido do mundo não está no mundo (6.41). Em outros termos, o que está no mundo pode ser descrito pela linguagem, mas o que transcende o mundo só pode ser mostrado. Em seu diário escrito durante a gurra, o filósofo austríaco já tratava dessa visão do mundo a partir da eternidade. A entrada do dia 7.10.1916 diz:

"A obra de arte é o objeto visto sub specie aeternitatis; e a vida boa é o mundo visto sub specie aeternitatis. Tal é a conexão entre a arte e a ética.
No modo ordinário de ver, considera-se os objetos, por assim dizer, colocando-se entre eles. No modo de ver sub specie aeternitatis, considera-se os objetos do exterior."

Se o sentido do mundo não está no mundo, então o sentido do mundo transcende os limites da linguagem como figuração. E se a ciência natural é a totalidade das proposições verdadeiras, as questões da ética, da estética e da religião estão fora do escopo da ciência. A proposição não pode expressar nada mais alto que uma figuração de um estado de coisas possível (6.42).

É por essa razão que Wittgenstein afirmará, em 6.52, que sentimos que se todas as questões científicas fossem resolvidas, os problemas da vida permaneceriam os mesmos. Isto é, a ciência não toca nos problemas fundamentais do sentido da vida, da vida feliz e da beleza. Todavia, a solução da questão fundamental da vida aparece justamente quando percebemos que ela não pode ser respondida dentro dos limites da linguagem. Nenhuma questão resta e essa é exatamente a resposta.