"Não há conflito entre Platão, o metafísico, e Sócrates, o inquiridor irônico: o próprio Platão sempre viu em Sócrates um símbolo tanto da realidade quanto da inexpressibilidade daquilo que ele, de modo muito simples, chamou de 'o bem'."
PAUL FRIEDLÄNDER, Plato: an Introduction, p. 170
No capítulo VIII de sua introdução ao pensamento de Platão, o filósofo alemão Paul Friedländer discute a natureza dos diálogos de Platão e, em dado momento, permite-se uma interessante digressão sobre uma outra tradição de diálogos mais antiga que a dos gregos, a saber, os Upanisads indianos. Algumas páginas antes, Friedländer afirma que, com Sócrates, um movimento dialógico entra no pensamento grego e na vida intelectual do mundo ocidental, movimento esse que não existia anteriormente.
Todavia, o autor reconhece que há uma tradição dialógica (provavelmente sem nenhuma conexão histórica com Platão) anterior à grega e que é uma grande literatura de conversações filosóficas no mundo inteiramente diferente da Índia. Essa tradição espelha uma vida marcada pelo debate e pode ser comparada aos diálogos socráticos (Σωκρατικοί Λόγοι) por também construírem seus diálogos como obras literárias em contraste com a conversação natural. Esse parece, contudo, ser o único elemento que ambas as tradições têm em comum.
Friedländer assevera que as realidades apresentadas nesses diálogos são completamente diferentes. No caso grego, é Sócrates, a um tempo conhecedor e ignorante, que pergunta, testa e educa. Nos Upanisads, são diversos sábios competindo entre si e proclamando suas doutrinas a partir da profundidade de suas sabedorias. Mesmo quando um sábio destaca-se entre os outros, como Yajnavalkya, ele é muito diferente de Sócrates, pois a pessoa importa tão pouco que a mesma proclamação de sabedoria é feita por um outro sábio, Aruni, ou mesmo por um deva.
Aparentemente, mais próxima à tradição dos diálogos socráticos, como Friedländer considera, estão as conversações e debates competitivos de Siddharta Gautama, o Buddha. De fato, aqui encontra-se o iluminado parcialmente pregando e parcialmente comunicando a eles as doutrinas básicas sobre o sofrimento e a libertação do sofrimento. Não obstante, na situação bem como na forma da conversação, há similaridades com os diálogos socráticos.
Mas as diferenças incomparáveis entre os mundos grego e indiano, a proclamação de uma doutrina inabalável, a atribuição da sabedoria a si mesmo do Buddha mostram, diz Friedländer, que às conversações do iluminado tanto quanto àquelas dos Upanisads falta a unidade orgânica superior alcançada por Platão em suas obras. E isso conduz ao cerne da comparação: que o autor dos diálogos não ensina nada ele mesmo, mas o que ele diz reflete seu mestre. Não há nenhum elemento de tensão entre seus próprios processos de pensamento e aqueles que ele está descrevendo.
O mundo platônico, por seu turno, afirma Friedländer, tem um centro e uma periferia separados de Sócrates. O que distingue os diálogos platônicos dos diálogos de Sócrates é o fato de que, além de espelhar a vida socrática, eles são também uma exposição da própria filosofia de Platão. Mas se este é o caso, não há conflito entre o modo socrático, sempre inquirindo, buscando e professando ignorância, e o dogmatismo de Platão? Por qual razão ele teria escolhido um meio de expressão que estivesse tão longe de seu mestre?
Sócrates era completamente comprometido com o discurso oral, de modo que jamais escreveu suas idéias filosóficas. Mas não há como saber se ele, em algum momento, teceu reflexões sobre o valor do discurso escrito. O que sabemos é que Platão fez considerações sobre o valor da escrita pela boca de Sócrates nos diálogos e nas suas cartas.
Não obstante, diz Friedländer, "o impulso do artista criativo sempre esteve aceso nele com um poder tremendo". A nova experiência de Sócrates, e não a dos heróis trágicos, exigia uma expressão criativa. Ademais, os diálogos afastavam as objeções formuladas contra os livros escritos: que são rígidos e que não sabem como responder a questões. O diálogo escrito transmite sua dinâmica dialógica e dialética ao leitor.
Para Sócrates, só há filosofia como uma atividade contínua e suas conversações variavam de acordo com seu interlocutor. Platão, a despeito de transmitir doutrina e sabedoria, incorpora o princípio educativo socrático da filosofia conduzida por uma constante mudança de perspectivas que revelam diferentes aspectos da questão geral. E o conhecimento humano não repousa quando conquistado. Ao contrário, o que é adquirido é sempre ameaçado por forças contrárias. A dialética possui uma tensão que a torna viva.
Por outro lado, afirma Friedländer, essa forma intelectual transforma-se em uma forma dramática. O autor dramático reflete o mundo como uma luta de forças autênticas e personalizadas. Os diálogos dão voz e expressão a posições que, embora não sendo as esposadas pelo próprio Platão, em certa medida faziam parte de Platão como forças a serem conquistadas interiormente.
O princípio socrático de destruição das pretensões de conhecimento do interlocutor a fim de abrir o caminho para a busca conjunta pela verdade manifesta-se em Platão, segundo Friedländer, como uma tensão na qual a falsidade deve ser, antes de tudo, identificada e as forças opostas destruídas, para que, só então, seja possível passar à reconstrução do saber. Os primeiros diálogos platônicos têm essa função. Esse caminho hierárquico do conhecimento é o caminho dialético que, por sua vez, reflete-se nos diálogos.
Aqui chega-se ao contraste entre o caminho filosófico socrático e o caminho filosófico platônico. Platão não encerra a discussão, como Sócrates, com uma declaração de ignorância. Ele encontrou um mundo metafísico e, por isso, tinha como tarefa fazer com que outros enxergassem essa realidade através de seus olhos. Isto é, Platão descobriu o que Sócrates buscava.
Mas foi pela dialética socrática que o discípulo alcançou o mundo das formas eternas. Daí que Platão sentisse a necessidade de levar o discurso socrático para além de seus limites originais e, assim, a dialética tornou-se a escada pela qual ascende-se das hipóteses condicionais ao incondicional. E no cume de tudo está aquilo que é "para além do ser", incognoscível e incomunicável. A característica admissão socrática de ignorância é espelhada pela ausência de expressão da verdade final em Platão.
Sócrates era completamente comprometido com o discurso oral, de modo que jamais escreveu suas idéias filosóficas. Mas não há como saber se ele, em algum momento, teceu reflexões sobre o valor do discurso escrito. O que sabemos é que Platão fez considerações sobre o valor da escrita pela boca de Sócrates nos diálogos e nas suas cartas.
Não obstante, diz Friedländer, "o impulso do artista criativo sempre esteve aceso nele com um poder tremendo". A nova experiência de Sócrates, e não a dos heróis trágicos, exigia uma expressão criativa. Ademais, os diálogos afastavam as objeções formuladas contra os livros escritos: que são rígidos e que não sabem como responder a questões. O diálogo escrito transmite sua dinâmica dialógica e dialética ao leitor.
Para Sócrates, só há filosofia como uma atividade contínua e suas conversações variavam de acordo com seu interlocutor. Platão, a despeito de transmitir doutrina e sabedoria, incorpora o princípio educativo socrático da filosofia conduzida por uma constante mudança de perspectivas que revelam diferentes aspectos da questão geral. E o conhecimento humano não repousa quando conquistado. Ao contrário, o que é adquirido é sempre ameaçado por forças contrárias. A dialética possui uma tensão que a torna viva.
Por outro lado, afirma Friedländer, essa forma intelectual transforma-se em uma forma dramática. O autor dramático reflete o mundo como uma luta de forças autênticas e personalizadas. Os diálogos dão voz e expressão a posições que, embora não sendo as esposadas pelo próprio Platão, em certa medida faziam parte de Platão como forças a serem conquistadas interiormente.
O princípio socrático de destruição das pretensões de conhecimento do interlocutor a fim de abrir o caminho para a busca conjunta pela verdade manifesta-se em Platão, segundo Friedländer, como uma tensão na qual a falsidade deve ser, antes de tudo, identificada e as forças opostas destruídas, para que, só então, seja possível passar à reconstrução do saber. Os primeiros diálogos platônicos têm essa função. Esse caminho hierárquico do conhecimento é o caminho dialético que, por sua vez, reflete-se nos diálogos.
Aqui chega-se ao contraste entre o caminho filosófico socrático e o caminho filosófico platônico. Platão não encerra a discussão, como Sócrates, com uma declaração de ignorância. Ele encontrou um mundo metafísico e, por isso, tinha como tarefa fazer com que outros enxergassem essa realidade através de seus olhos. Isto é, Platão descobriu o que Sócrates buscava.
Mas foi pela dialética socrática que o discípulo alcançou o mundo das formas eternas. Daí que Platão sentisse a necessidade de levar o discurso socrático para além de seus limites originais e, assim, a dialética tornou-se a escada pela qual ascende-se das hipóteses condicionais ao incondicional. E no cume de tudo está aquilo que é "para além do ser", incognoscível e incomunicável. A característica admissão socrática de ignorância é espelhada pela ausência de expressão da verdade final em Platão.