quinta-feira, 27 de junho de 2019

Paul Friedländer: Platão, Sócrates, diálogos e os Upanisads



"Não há conflito entre Platão, o metafísico, e Sócrates, o inquiridor irônico: o próprio Platão sempre viu em Sócrates um símbolo tanto da realidade quanto da inexpressibilidade daquilo que ele, de modo muito simples, chamou de 'o bem'."

PAUL FRIEDLÄNDER, Plato: an Introduction, p. 170


No capítulo VIII de sua introdução ao pensamento de Platão, o filósofo alemão Paul Friedländer discute a natureza dos diálogos de Platão e, em dado momento, permite-se uma interessante digressão sobre uma outra tradição de diálogos mais antiga que a dos gregos, a saber, os Upanisads indianos. Algumas páginas antes, Friedländer afirma que, com Sócrates, um movimento dialógico entra no pensamento grego e na vida intelectual do mundo ocidental, movimento esse que não existia anteriormente.

Todavia, o autor reconhece que há uma tradição dialógica (provavelmente sem nenhuma conexão histórica com Platão) anterior à grega e que é uma grande literatura de conversações filosóficas no mundo inteiramente diferente da Índia. Essa tradição espelha uma vida marcada pelo debate e pode ser comparada aos diálogos socráticos (Σωκρατικοί Λόγοι) por também construírem seus diálogos como obras literárias em contraste com a conversação natural. Esse parece, contudo, ser o único elemento que ambas as tradições têm em comum.

Friedländer assevera que as realidades apresentadas nesses diálogos são completamente diferentes. No caso grego, é Sócrates, a um tempo conhecedor e ignorante, que pergunta, testa e educa. Nos Upanisads, são diversos sábios competindo entre si e proclamando suas doutrinas a partir da profundidade de suas sabedorias. Mesmo quando um sábio destaca-se entre os outros, como Yajnavalkya, ele é muito diferente de Sócrates, pois a pessoa importa tão pouco que a mesma proclamação de sabedoria é feita por um outro sábio, Aruni, ou mesmo por um deva.

Aparentemente, mais próxima à tradição dos diálogos socráticos, como Friedländer considera, estão as conversações e debates competitivos de Siddharta Gautama, o Buddha. De fato, aqui encontra-se o iluminado parcialmente pregando e parcialmente comunicando a eles as doutrinas básicas sobre o sofrimento e a libertação do sofrimento. Não obstante, na situação bem como na forma da conversação, há similaridades com os diálogos socráticos. 

Mas as diferenças incomparáveis entre os mundos grego e indiano, a proclamação de uma doutrina inabalável, a atribuição da sabedoria a si mesmo do Buddha mostram, diz Friedländer, que às conversações do iluminado tanto quanto àquelas dos Upanisads falta a unidade orgânica superior alcançada por Platão em suas obras. E isso conduz ao cerne da comparação: que o autor dos diálogos não ensina nada ele mesmo, mas o que ele diz reflete seu mestre. Não há nenhum elemento de tensão entre seus próprios processos de pensamento e aqueles que ele está descrevendo. 

O mundo platônico, por seu turno, afirma Friedländer, tem um centro e uma periferia separados de Sócrates. O que distingue os diálogos platônicos dos diálogos de Sócrates é o fato de que, além de espelhar a vida socrática, eles são também uma exposição da própria filosofia de Platão. Mas se este é o caso, não há conflito entre o modo socrático, sempre inquirindo, buscando e professando ignorância, e o dogmatismo de Platão? Por qual razão ele teria escolhido um meio de expressão que estivesse tão longe de seu mestre?

Sócrates era completamente comprometido com o discurso oral, de modo que jamais escreveu suas idéias filosóficas. Mas não há como saber se ele, em algum momento, teceu reflexões sobre o valor do discurso escrito. O que sabemos é que Platão fez considerações sobre o valor da escrita pela boca de Sócrates nos diálogos e nas suas cartas.

Não obstante, diz Friedländer, "o impulso do artista criativo sempre esteve aceso nele com um poder tremendo". A nova experiência de Sócrates, e não a dos heróis trágicos, exigia uma expressão criativa. Ademais, os diálogos afastavam as objeções formuladas contra os livros escritos: que são rígidos e que não sabem como responder a questões. O diálogo escrito transmite sua dinâmica dialógica e dialética ao leitor.

Para Sócrates, só há filosofia como uma atividade contínua e suas conversações variavam de acordo com seu interlocutor. Platão, a despeito de transmitir doutrina e sabedoria, incorpora o princípio educativo socrático da filosofia conduzida por uma constante mudança de perspectivas que revelam diferentes aspectos da questão geral. E o conhecimento humano não repousa quando conquistado. Ao contrário, o que é adquirido é sempre ameaçado por forças contrárias. A dialética possui uma tensão que a torna viva.

Por outro lado, afirma Friedländer, essa forma intelectual transforma-se em uma forma dramática. O autor dramático reflete o mundo como uma luta de forças autênticas e personalizadas. Os diálogos dão voz e expressão a posições que, embora não sendo as esposadas pelo próprio Platão, em certa medida faziam parte de Platão como forças a serem conquistadas interiormente.

O princípio socrático de destruição das pretensões de conhecimento do interlocutor a fim de abrir o caminho para a busca conjunta pela verdade manifesta-se em Platão, segundo Friedländer, como uma tensão na qual a falsidade deve ser, antes de tudo, identificada e as forças opostas destruídas, para que, só então, seja possível passar à reconstrução do saber. Os primeiros diálogos platônicos têm essa função. Esse caminho hierárquico do conhecimento é o caminho dialético que, por sua vez, reflete-se nos diálogos.

Aqui chega-se ao contraste entre o caminho filosófico socrático e o caminho filosófico platônico. Platão não encerra a discussão, como Sócrates, com uma declaração de ignorância. Ele encontrou um mundo metafísico e, por isso, tinha como tarefa fazer com que outros enxergassem essa realidade através de seus olhos. Isto é, Platão descobriu o que Sócrates buscava.

Mas foi pela dialética socrática que o discípulo alcançou o mundo das formas eternas. Daí que Platão sentisse a necessidade de levar o discurso socrático para além de seus limites originais e, assim, a dialética tornou-se a escada pela qual ascende-se das hipóteses condicionais ao incondicional. E no cume de tudo está aquilo que é "para além do ser", incognoscível e incomunicável. A característica admissão socrática de ignorância é espelhada pela ausência de expressão da verdade final em Platão.

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Kitaro Nishida, Zen e o senso da beleza



"Experiência significa conhecer os fatos como eles são. Significa conhecer em concordância com os fatos, abandonando completamente nossas elaborações. Pura significa aqui o estado em que experimentamos verdadeiramente os fatos sem acrescentar-lhes nenhuma medida de juízo ou de discriminação. (...) No momento em que experimentamos um estado de consciência de natureza direta, ainda não existe sujeito nem objeto. Esse é o supremo aspecto da experiência."

KITARO NISHIDA, Zen no kenkyū (Ensaio sobre o Bem), p. 23 (trad. Joaquim Antonio Monteiro)

O filósofo japonês Kitaro Nishida (1870 - 1945) escreveu em 1900, onze anos antes da publicação de sua obra mais conhecida, Ensaio sobre o Bem (善の研), um curto artigo intitulado Bi no Setsumei (Uma Explicação da Beleza)onde apresenta sua concepção inicial sobre a natureza do belo. O artigo é interessante, entre outras coisas, porque demonstra a grande influência que o Zen Budismo teve no pensamento inicial de Nishida.

O filósofo incia seu texto tomando a questão da natureza da beleza por seu aspecto emocional. A partir desse ponto de vista, pensadores como Edmund Burke (em sua obra Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful de 1735) enfatizaram que a beleza é algo que produz um senso de prazer. Embora haja algo de verdade nessa tese, Nishida considera-a inadequada enquanto definição do belo. O senso da beleza é prazer, mas o inverso não é sempre verdadeiro.

Todos concordam que fama, comida, saúde e bebida causam prazer, todavia poucos defenderiam que tais prazeres sejam estéticos. Tampouco resolve o problema afirmar, como Henry Rutgers Marshall o faz, que o belo é um prazer estável, pois isso não é fundamentalmente diferente da resposta usual de que a beleza é um prazer.

Quais são, então, as características do senso da beleza? Nishida responde que para o idealismo desde Kant o senso da beleza é um prazer independente do ego, isto é, desinteressado. É um prazer do momento em que o fruidor esquece-se todo o interesse próprio, como ganho ou perda, vantagem ou desvantagem. Nishida introduz, então, o conceito de muga (無我), "não-eu" ou "êxtase", como o elemento essencial da beleza. Não importa qual seja o gênero de prazer que sintamos, estando ausente muga, não dará nascimento ao senso da beleza.

Nishida assevera que essa verdade foi bem expressa por Minamoto Akimoto (1000 - 1047) em seu desejo de "ver a Lua do exílio, porém sem culpa de qualquer crime". Quando não estamos limitados pelo pensamento do eu, tanto o prazer dá azo ao senso da beleza, como também tudo o que é originalmente desagradável torna-se prazer estético. Um grande homem, Nishida assevera, que não somente é indiferente a questões externas, mas também completamente divorciado de qualquer pensamento de auto-interesse, alcança um ponto onde tudo em sua vida produz o senso da beleza.

Portanto, aquele que deseja obter o autêntico senso da beleza deve encarar todas as coisas em estado de puro muga.  A beleza é verdade, mas não uma verdade lógica ou ideal, alcançável pelo pensamento, mas sim uma verdade intuitiva. Intuímos um tipo de verdade nos solilóquios de Hamlet não porque concordam com nossas teorias psicológicas e sim porque eles tocam as cordas de nosso coração.

Tal gênero de verdade intuitiva não é expressável em palavras. Somente é alcançada quando o homem está separado de seu eu e unido a todas as coisas. É uma verdade vista com os olhos de Deus,  que penetra nos profundos segredos do universo e é maior do que qualquer verdade lógica obtida por pensamento ordinário e discriminação.

Em suma, o senso da beleza é o senso de muga, verdade intuitiva que transcende a discriminação intelectual. A beleza pode ser explicada como o abandono do mundo da discriminação e o estado de união com a Grande Via de muga. Ela é da mesma natureza da religião, diferenciando-se desta somente por um senso de profundidade e de superficialidade. A beleza é muga do momento, enquanto a religião é muga eterno.

A moralidade, embora tenha sua origem em muga, ainda pertence ao mundo da discriminação, pois a idéia do dever depende da distinção entre o eu e os outros, entre bem e mal. Não pertence aos cumes sublimes da religião e da arte. Todavia, assevera Nishida, se alguém pratica diligentemente a moralidade durante muitos anos, em algum momento alcançará o nível em que não haverá diferença entre moralidade e religião.

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sábado, 1 de junho de 2019

Modelos mecânicos do mundo nos pré-socráticos



"Tolos, pois eles não possuem pensamentos vastos, uma vez que consideram que aquilo que não era veio a ser ou que uma coisa que morre é completamente destruída."

EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO, fragmento 12 (tradução própria)

"A sua crítica a Anaxágoras não era que ele havia feito a Mente a força motriz por trás de todo o universo, mas que, tendo feito isso, ele a ignorou e explicou o fenômeno cósmico por causas mecânicas as quais pareciam não ter qualquer relação com a inteligência."

W. K. C. GUTHRIE, Socrates, p.155

"Ao ler Anaxágoras, Sócrates descobriu que a ação dessa Inteligência estava limitada a iniciar o movimento no espaço e que, para todo o resto, Anaxágoras retorna ao tipo usual de causas mecânicas. Esse  sistema do mundo, afinal, não fora projetado para nenhum bom propósito."

F.M. CORNFORD, Before and After Socrates, p.3


Nossos sentidos nos testemunham mudanças evidentes. As coisas que nos cercam aparecem e desaparecem, nascem e morrem, vêm ao ser e deixam de ser. Mas, se isso é verdade, elas passam do não-ser ao ser e do ser ao não-ser. Como algo assim pode se dar se o não-ser corresponde ao nada? Do nada nada vem, então não pode haver passagem do não-ser ao ser. E aquilo que é ser, por qual razão tornar-se-ia não-ser, ou seja, nada? E pode haver nada? Aparentemente, a filosofia da escola eleata de Parmênides, Zenão e Melisso negava justamente essas possibilidades.

A questão é saber como conciliar (se for possível, é claro), a evidência dos sentidos com a percepção intelectual de que nada pode vir do não-ser. A fim de preservar as duas instâncias de conhecimento, a solução encontrada por alguns dos físicos pré-socráticos foi afirmar que, ao contrário do surgimento de algo a partir do não-ser, a mudança sempre se dá a partir de algo que não somente já existe, mas existe desde sempre e para sempre.

Tudo o que há e que aparentemente muda, só muda porque é o rearranjo de entidades que jamais mudam, isto é, entidades mais fundamentais: os elementos. Se as coisas que testemunhamos pelos sentidos têm origem e fim, os elementos caracterizam-se justamente por não terem início ou fim. Eles são eternos, jamais vindo do não-ser ao ser e jamais passando do ser ao não-ser. Desse modo, há um substrato eterno fundamental que dá conta da aparição e desaparição das coisas sem que haja risco de afirmar o absurdo de uma geração a partir do nada.

Em certo sentido, a geração e a corrupção que vemos no mundo é o aspecto mais exterior da absoluta estabilidade dos elementos. Fundamentalmente, o que há são os elementos eternos e suas conformações passageiras dão origem às coisas efêmeras que vêm e vão, como o homem. Mas resta apontar as causas das conformações dos elementos, ou seja, por quais razões os elementos combinam-se em determinadas formas e proporções que dão origem a tudo o que vemos.

Há algum princípio, interno ou externo, que incline os elementos a se combinarem do modo ordenado em que se combinam ou toda a ordem que o mundo sensível exibe deve-se ao acaso ou à ação de forças cegas que lançam ao esmo os elementos fazendo-os por vezes juntarem-se em todos coerentes e funcionais e por vezes separarem-se destruindo esses todos? Um muro é feito de tijolos, mas não está claro como os tijolos poderiam formar um muro se lançados ao acaso uns sobre os outros.

O que caracteriza os modelos mecânicos da realidade física de Empédocles, Demócrito e Anaxágoras é justamente a tentativa de construção do mundo sem auxílio de qualquer princípio formal subjacente que dê às coisas singulares o tipo de ser que elas são. Em outros termos, a realidade sensível tem a conformação que apresenta não pela ação de algum princípio formal ou teleológico intrínseco ou extrínseco às coisas, mas pela ação não intencional de forças cegas agindo sobre constituintes materiais eternos.

Assim, segundo Empédocles, há quatro elementos eternos (Água, Fogo, Terra e Ar) que combinam-se e separam-se de acordo com a ação de um vórtice governado ora pelo Amor, ora pelo Ódio. Isto é, há quatro componentes materiais últimos e uma causa mecânica que os agrega formando todos coerentes (por vezes criando monstros) e os desagrega desfazendo esses todos e que é a responsável derradeira pela diversidade das coisas no mundo. 

Em Demócrito e Leucipo, nada há além de uma infinidade de átomos eternos e o vazio infinito no qual estes movimentam-se. Toda a diversidade testemunhada pelos sentidos não sendo nada mais do que configurações passageiras formadas pela agregação e desagregação de conjuntos de átomos de tamanhos e formas geométricas diferentes em diversos arranjos espaciais. Mais uma vez, há constituintes materiais elementares e o movimento e o choque entre os átomos sendo a causa mecânica última de haver seres como os há na realidade física.

Anáxágoras, por sua vez, postula que em tudo há tudo o que há, isto é, todas as coisas são formadas por porções de todas as coisas que estavam, de início, completamente fundidas em uma mistura indiferenciada. Eis o elemento material eterno. A causa mecânica é o vórtice que separa essas porções de tudo presentes em tudo. Todavia, há uma Mente, diferente desses princípios, mas que só fornece o impulso inicial e não intervém mais no processo. Todas as coisas formam-se a partir daí pela separação contínua das porções presentes em todas as coisas.

Evidentemente, não é possível expulsar totalmente os princípios formais e teleológicos das coisas, como aponta Aristóteles em sua Física, mas a pretensão em todas essas tentativas é a de criar um mundo a partir somente de um ou mais elementos materiais eternos que formam, por exclusiva ação mecânica, a diversidade dos seres que os sentidos testemunham.

F.M. Cornford e W.K.C. Guthrie assinalam que essa limitação é a razão pela qual Sócrates rejeita a filosofia de Anaxágoras, pois, apesar do apelo à uma mente, toda a explicação do mundo resume-se a dizer como as suas partes constituintes comportam-se e não por que elas se comportam do modo como o fazem. Sócrates, abandonando as investigações dos filósofos naturais, realizará a conversão da filosofia do estudo do mundo exterior ao estudo do homem e do cuidado de sua alma. Cornford denominará essa mudança de descoberta da alma.

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