quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Aristóteles, política e Esparta




"Nos governos da Lacedemônia e de Creta e, de fato, em todos os governos, dois pontos devem ser considerados. Primeiro, se qualquer lei particular pode ser considerada boa ou má, quando comparada com o estado perfeito. Segundo, se a lei é ou não consistente com a idéia e o caráter os quais o legislador apresentou a seus cidadãos."

ARISTÓTELES, Política, Livro II, 9

Aristóteles passa a analisar o governo de Esparta na seção 9 do segundo livro de sua Política e afirma, logo de início, que duas coisas devem ser avaliadas em um governo: se suas leis são boas ou más em comparação com o estado ideal e se essas leis coadunam-se ou não com as intenções expressas do legislador. Uma coisa é, portanto, saber se uma lei é justa ou injusta a partir da comparação com aquilo que seria uma cidade bem ordenada e outra saber se as leis escolhidas pelo legislador são ou não adequadas aos objetivos propostos.

Não há dúvida que o ócio deve ser assegurado aos cidadãos, comenta o filósofo macedônio. Nesse caso, o meio de assegurar esse ócio é a existência de escravos. As formas, contudo, de tratamento dos escravos variam e são mais ou menos eficientes. Tratá-los bem demais, torná-los-á insolentes e tratá-los severamente em excesso, torná-los-á inclinados à conspiração e à revolta.

O comentário de Aristóteles deve-se ao modo como os espartanos tratavam sua população subjugada, os helotes. Em geral, os helotes eram messênios, um povo do Peloponeso submetido à Esparta ainda nos éculo VII A.C. e que revoltou-se contra seus mestres mais de uma vez. O estado permanente de treino militar do cidadão espartano devia-se, entre outras coisas, ao estado permanente de tensão com os helotes. Para que se tenha uma idéia, todo ano era renovada e solenemente proclamada pelos éforos a declaração de guerra dos espartanos aos helotes.

Aristóteles considera que os problemas dos espartanos com as revoltas dos helotes advinham do tratamento excessivamente duro conferido a estes últimos. Considera também que o mesmo não acontecia com Creta, de situação similar, porque seus inimigos das cidades vizinhas não faziam alianças com os escravos de Creta em suas lutas contra a cidade, já que eles mesmos tinham como escravos populações submetidas. Isto é, a relativa estabilidade cretense devia-se simplesmente ao medo dos vizinhos de criar um clima de revolta dos escravos contra seus senhores.

Outro defeito da constituição espartana estava no tratamento dado às mulheres. Segundo o estagirita, o legislador espartano, Licurgo, preocupou-se em fornecer esmerada educação militar aos homens, mas negligenciou a educação feminina. Como resultado, sua intenção de criar um estado de temperança foi frustrado, pois as mulheres, deixadas sem uma educação apropriada, tornaram-se intemperantes e luxuriosas.

A consequência é que a riqueza passou a ser altamente valorizada, pois os homens eram dominados pelas mulheres, como é comum em raças guerreiras, as quais são muito inclinadas ao prazer sexual, seja com mulheres ou com homens. Parece, então, que o poeta estava certo ao unir Ares, o deus da guerra, à Afrodite, deusa do amor. E isso revelou-se verdadeiro mesmo no apogeu de Esparta, quando boa parte das atividades estavam nas mãos das mulheres.

A origem dessas leis Aristóteles traça nos primeiros tempos de Esparta quando os espartanos retornaram das guerras contra Argos, Arcádia e Messênia. Cansados por conta dessas guerras e treinados na disciplina militar, entregaram às disposições do legislador Licurgo. Contudo, quando este tentou dar leis às mulheres, os espartanos resistiram. Esse defeito original na constituição espartana, considera Aristóteles, criou os problemas acima mencionados e propiciou a avareza.

Licurgo proibiu a venda e a compra de herança, mas não proibiu a doação e havia espartanos que possuíam grandes propriedades enquanto outros possuíam propriedades muito pequenas. Como o número das herdeiras era grande e grandes também os dotes, o resultado foi a concentração feminina das propriedades. E a consequência, a diminuição dos cidadãos espartanos masculinos, o que expõe a cidade à conquista estrangeira.

Aristóteles critica também a instituição dos Éforos. Estes eram um grupo de cinco magistrados eleitos anualmente por sorteio entre os cidadãos cuja função era fiscalizar o cumprimento das leis e, até mesmo, julgar os dois reis de Esparta. Além dos éforos havia a Damos, a assembléia que votava as propostas apresentadas pela Gerousia, o conselho dos anciãoscomposta pelos dois reis e mais trinta cidadãos acima dos sessenta anos, eleitos por voto e com cargo vitalício.

Os éforos eram eleitos por sorteio entre todos os cidadãos, ricos ou pobres. Aristóteles considera que esse modo de escolha era prejudicial ao estado, já que homens pobres estariam mais inclinados à propina. Por outro lado, o poder conferido a eles era tão grande que mesmo os reis sentiam-se na obrigação de bajulá-los, pois, eventualmente, poderiam muito bem ser julgados pelos éforos. Daí que, na prática, a instituição dos éforos degradou a aristocracia espartana tornando-a efetivamente uma democracia.

O problema não é exatamente, diz Aristóteles, a eleição dos éforos entre todos os cidadãos, mas sim a forma adotada para isso. Eles tinham em suas mãos grandes decisões, as mais importantes da cidade, e não poderiam decidir somente usando o próprio julgamento, dado que eram homens comuns, mas sim de acordo com leis escritas. Além disso, sua posição conferia-lhes muitas licenças, enquanto os outros cidadãos viviam em uma disciplina muito rigorosa, o que conduz geralmente à fuga na direção dos prazeres sensuais.

A Gerousia também apresenta problemas. De fato, um conselho de anciãos, de homens experientes  e bem treinados nas virtudes viris é coisa boa. Se seu mandato deve ser vitalício já é matéria de debate, uma vez que os homens envelhecem na mente e no corpo. O modo de  sua eleição é infantil, assegura o macedônio, pois cidadãos em postos tão altos e com tão grande responsabilidade não deveriam ser obrigados a angariar votos. Os melhores deveriam ser simplesmente apontados, quer Aristóteles.

O legislador deve ter tido intenção de reconhecer a qualidade da ambição na instituição da eleição por votos na Gerousia. Pois somente os ambiciosos quereriam uma posição no conselho de anciãos. Contudo, a ambição e a avareza, mais do quaisquer outras paixões, são os motivos do crime. E os membros da Gerousia eram conhecidos por sua inclinação à propina e à corrupção.

A questão se reis são ou não uma vantagem, Aristóteles promete, tratará em capítulos posteriores. Por hora, o filósofo afirma que, pelo menos, os reis devem ser escolhidos por sua conduta e vida pessoal e não como eram escolhidos. Havia uma dupla monarquia em Esparta, dois reis de duas famílias aristocráticas rivais que reinavam em conjunto e que, na qualidade de herdeiros do trono, eram dispensados da agogé, o rígido treinamento militar a que todos os cidadãos espartanos estavam sujeitos a partir dos sete anos de idade.

A instituição dos banquetes comuns também criava problemas. Todo cidadão espartano adulto deveria tomar parte desses (frugais) banquetes comuns assim como sustentá-los. Não conseguir sustentar esses banquetes significava perda da cidadania. Como nem todos conseguiam manter os banquetes, os pobres eram alijados dos direitos de cidadania.

Aristóteles considera justa a crítica de Platão ao estado espartano em Leis. O legislador concentrou-se em somente uma virtude, a do soldado, a qual concede vitória na guerra. Ora, a guerra não é constante. Como não sabiam nada sobre as artes da paz, caíram tão logo foram obrigados a lidar com meios pacíficos. 

E, aponta o filósofo macedônio, outro grande erro foi cometido pelo legislador espartano. Embora acreditassem que os bens que os homens almejam devam ser adquiridos por meio da virtude e não por meio do vício, os espartanos erraram ao acreditar que tais bens fossem mais preciosos do que a virtude com a qual eles as adquiriam. Na verdade, a virtude é mais preciosa do que os bens que ela adquire.

...

Leia também: 



Nenhum comentário: