segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Samurai Rebellion: virtude, valores e revolta

Toshiro Mifune e Tetsuya Nakadai

"O que é um homem revoltado? É, antes de tudo, um homem que diz não. Mas, se ele nega, ele não renuncia. É também um homem que diz sim. Entremos no detalhe do movimento da revolta. Um funcionário que recebeu ordens toda a sua vida julga, subitamente, inaceitável uma nova ordem. Ele se levanta e diz não. O que significa esse não? Ele significa, por exemplo: 'as coisas foram longe o suficiente', 'há limites que não podem ser ultrapassados', ou ainda, 'você foi longe demais'. Em suma, esse 'não' afirma a existência de um limite."

ALBERT CAMUS, L'Homme Revolté, p.26


Na história espiritual humana, há momentos cruciais em que os valores centrais acalentados e partilhados pelos membros de uma comunidade são confrontados com valores superiores apreendidos por figuras solitárias que, por essa razão, tornam-se pedra de tropeço e centro de um conflito moral inelutável. Como tais valores superiores demandam obediência por sua autoridade intrínseca, e como a comunidade ainda não alçou-se ao nível de sua compreensão e de sua aceitação, aquele que os capta em sua consciência encontra-se no centro de um drama no qual a única parte que lhe cabe é a fidelidade à ordenação superior, ainda que a preço de sua vida e as de seus queridos.

Esse conflito é o tema de Joi-uchi: Hairyo tsuma shimatsu (Samurai Rebellion, em inglês) filme jidaigeki do ano de 1967, dirigido por Masaki Kobayashi, tendo como protagonista o grande Toshiro Mifune e, como coadjuvante, o igualmente grande Tetsuya Nakadai. Na trama, Isaburo Sasahara (Mifune) é um samurai veterano que serviu fielmente ao daimyo do clã Aizu e que pede para ser substituído em suas funções pelo filho mais velho, Yogoro.

Isaburo, originalmente de uma família samurai de baixa extração, ingressou na prestigiosa família Sasahara através de um casamento arranjado, infeliz e sem amor. Pouco tempo depois de seu filho substituí-lo na liderança de sua casa e nas suas antigas funções junto ao daimyo, Isaburo recebe a visita de um oficial superior do clã que vem apresentar-lhe uma proposta.

Ichi, a ex-concubina do daimyo, mesmo sendo mãe de um de seus filhos, cai em desgraça e, para livrar-se dela e evitar escândalos, ele resolve honrá-la casando-a com Yogoro, filho de Isaburo. A proposta é uma honra para a família Sasahara, mas também, ou principalmente, uma ordem direta que não pode ser descumprida.

Após uma pequena hesitação, Yogoro casa-se com Ichi e dessa união forçada nasce não somente uma filha, Tomi, mas, surpreendentemente, também amor verdadeiro entre os dois cônjuges. Dois anos após a união, contudo, o primeiro herdeiro do daimyo falece e a este só resta como herdeiro o filho que Ichi lhe dera. O daimyo exige que Ichi retorne ao castelo do clã Aizu para cuidar do seu filho e reassumir seu posto junto a ele.

Yogoro recusa-se a devolver Ichi e esta recusa-se a retornar ao castelo do daimyo, mesmo diante da forte pressão familiar que acusa a ambos de negligência com relação à honra e ao futuro dos Sasahara. O único que apoia o casal enamorado é o veterano Isaburo, pois percebe claramente a crueldade da ordem e a tirania do daimyo.

O conflito está posto entre a lealdade ao clã e à família de um lado e o amor conjugal ameaçado pelo arbítrio tirânico do governante do outro. Aceitar um mandatário que cria e que destrói laços matrimoniais entre seus servos de acordo com seu capricho ou sua conveniência é um jugo indigno e insuportável. Não parece admissível, no entanto, que interesses pessoais sobreponham-se aos interesses coletivos de uma família ou de um clã.

Auxiliado por um estratagema, o daimyo consegue ludibriar Ichi e trazê-la para o seu castelo. A situação parece resolvida. Isaburo e Yogoro estão irredutíveis, contudo, e, insolentemente, exigem a devolução de Ichi. Por meio de mensageiros, o daimyo exige que ambos realizem o seppuku. Isaburo dispensa seus servos, envia sua esposa e seu filho mais novo para a residência de parentes e prepara sua casa para a batalha junto com Yogoro.

O mordomo do daimyo, escoltado por uma tropa de homens do clã Aizu, segue para a casa de Isaburo trazendo consigo Ichi. Ele exige que ela renuncie a seu casamento com Yogoro. Ichi, contudo, recusa-se e, em seguida, suicida-se com a lança de um dos guardas. Yogoro corre na sua direção e é morto pela escolta do mordomo.

A luta começa e Isaburo, o melhor espadachim do clã Aizu, massacra os guardas e mata o mordomo. Em seguida, após enterrar o filho e a nora, toma sua neta consigo e parte decidido a denunciar a crueldade do daimyo ao shogun em Edo.

Entretanto, para que isso aconteça, Isaburo tem de atravessar a fronteira guardada por seu bom amigo Tatewaki Asano (Tetsuya Nakadai). Apesar de sua amizade, Asano deve enfrentar Isaburo e impedir sua passagem pela fronteira. A honra samurai o exige. Isaburo pede a Asano que cuide de Tomi, caso morra no combate. Eles lutam e, ao final, Isaburo sai vencedor.

Incapazes de vencer Isaburo em um combate com katanas, os homens do daimyo, traiçoeiramente escondidos no meio da vegetação, o alvejam com suas carabinas. Isaburo mata vários deles, mas, ao final, é também morto. Tomi, por sua vez, é levada embora pela esposa de um membro do clã.

Em sua rebelião e sua insolência, é Isaburo que realiza concretamente as virtudes dos samurais e não os seus representantes oficiais, totalmente apegados a exterioridades solenes ou, pior ainda, corrompidos pela posição de poder que ocupam. E Isaburo exemplifica tais virtudes porque reconhece uma hierarquia de valores mais profunda que escapa aos outros membros daquela comunidade.

Isso não significa que os valores da comunidade sejam errôneos ou que devam ser abandonados em sua totalidade. Significa somente que é preciso compreender como aplicá-los às condições específicas. A revolta de Isaburo em obedecer ao desejo do seu senhor é, como dizia Camus, é a percepção de um limite objetivo e intransponível nas relações entre os homens.

Como em diversos filmes do estilo jidaigeki (Harakiri, Ichimei, 13 Assassins, Yojimbo, Sanjuro, entre outros), são os proscritos, os rebeldes ou os insolentes que incorporam realmente as virtudes características do Budô. Toda a comunidade está cega pelo cumprimento desencarnado das tradições e dos costumes, mas samurais como Isaburo demonstram com suas ações o significado da ordenação correta da realidade.

sábado, 26 de novembro de 2016

Eric Voegelin, política e a atitude gnóstica



"Todos os movimentos gnósticos estão envolvidos no projeto de abolir a constituição do ser, com sua origem no ser divino e transcendente, e substituí-la por uma ordem do ser imanente ao mundo, a perfeição da qual encontra-se ao alcance da ação humana. Trata-se de alterar de tal maneira a estrutura do mundo (percebida como inadequada), de modo que um novo e satisfatório mundo surja"

ERIC VOEGELIN, Science, Politics and Gnosticism, p.75

Em suas palestras públicas reunidas em livro sob o título Science, Politics and Gnosticism, o filósofo político alemão Eric Voegelin busca compreender pensadores e movimentos políticos da modernidade a partir da identificação de seus elementos essencialmente gnósticos. Apesar de ser originalmente um movimento religioso historicamente identificável da antiguidade tardia, o gnosticismo é também uma atitude diante do mundo que nasce como resposta a determinadas experiências reais.

O gnóstico, segundo Voegelin, vê o mundo não como um cosmo, um todo ordenado e bom, como o viam os helenos da era clássica e nem como a criação naturalmente boa de um Deus onipotente, como para os judeus e os cristãos. O mundo do gnóstico é mau, é fruto não da luz, mas da escuridão. É uma prisão a que os homens estão tristemente sujeitos e da qual urge escapar.

O homem é um exilado neste mundo, um ente expulso de uma realidade luminosa anterior e lançado nesta realidade obscurecida. Se o homem deve libertar-se e retornar à sua condição feliz anterior à queda na prisão, então deve haver meios de libertação. Estes são dados pelo "deus escondido" através de seus mensageiros que ensinam aos homens como abandonar o cárcere criado pelo pelo Deus deste mundo (Jahweh, Zeus ou algum outro deus antigo).

"Dentro da profusão das experiências e das expressões simbólicas gnósticas, um aspecto pode ser isolado como o elemento central nessa variada e extensa criação de sentido: a experiência do mundo como um lugar estrangeiro no qual o homem foi alienado e do qual ele deve encontrar seu caminho de volta ao outro mundo de sua origem. 'Quem me lançou no sofrimento deste mundo?', pergunta a 'Grande Vida' dos textos gnósticos, a qual é também 'primeira, vida estrangeira dos mundos da luz'. É estrangeira a este mundo e este mundo é estrangeiro à ela." (p.8)

Todavia, no próprio homem reside a chave da libertação, pois ele mesmo é constituído por um elemento deste mundo, a psyche, e um elemento divino, pneuma. Todo o esforço gnóstico constitui-se em desfazer os laços da psyche a fim de libertar o pneuma. Os gnósticos são os πνευματικοὶ, os pneumáticos.

As formas de libertação variam de seita a seita e vão desde exercícios ascéticos estritos, práticas mágicas e êxtases místicos, até à libertinagem e ao indiferentismo absoluto. Em todas essas práticas, o objetivo permanece o mesmo: a destruição do mundo antigo e a consequente libertação através do conhecimento, gnosis, uma vez que este mundo de trevas foi gerado por causa da ignorância, agnoia.

Apesar de reconhecer que seja compreensível tentar fugir de um estado opressivo, confuso e apavorante, Voegelin adverte que "a auto-salvação através do conhecimento possui sua própria mágica, e essa mágica não é inofensiva. A estrutura da ordem do Ser não vai mudar porque alguém a considera defectiva e quer fugir dela. A tentativa de destruição do mundo não destruirá o mundo, mas aumentará a desordem na sociedade." (p.10)

Voegelin considera que o gnosticismo é anterior ao próprio Cristianismo e que tenha sobrevivido através de movimentos religiosos da Idade Média e da Renascença e que tenha, enfim, alcançado a modernidade por meio de pensadores, correntes filosóficas e movimentos de massa. Entretanto, não pretende definir o gnosticismo ou investigar sua gênese histórica. Seu objetivo é apontar um conjunto de características que manifestam a atitude gnóstica diante do mundo.

A primeira característica do gnóstico é a insatisfação com o mundo. Obviamente, isso não é em si mesmo um problema, pois todos estamos insatisfeitos com um aspecto ou outro da realidade em que vivemos.

A segunda característica já é mais problemática. O gnóstico considera que a ordem do mundo é má, é defectiva, e que é por isso que há sofrimento humano. Não passa pela mentalidade gnóstica a possibilidade de que a ordem do Ser seja perfeita e boa e que o homem seja inadequado e seja responsável pelo próprio sofrimento. Se o homem sofre, diz o gnóstico, é porque o mundo é mau.

Em terceiro lugar vem a crença na libertação deste mundo e em quarto a certeza de que tal libertação acontecerá na mudança da ordem do Ser em um processo histórico. A quinta característica é a crença de que a  mudança está ao alcance do homem,

Finalmente, em sexto lugar, se há libertação e esta encontra-se ao alcance dos esforços humanos, o gnóstico dedicar-se-á a encontrar a chave para essa mudança. Seu objetivo é descobrir a fórmula de alteração da ordem do Ser, da sua salvação e a do mundo. Por conseguinte, seu papel será o de profeta que proclama a salvação da humanidade.

A atitude gnóstica acima caracterizada pode ser encontrada, segundo Voegelin, em pensadores modernos (gnósticos especulativos, como os denomina) como Hobbes, More, Hegel, Nietzsche, Marx e Heidegger e em movimentos de massa como o fascismo, o nazismo e o comunismo. E como deve haver possibilidade de alteração da ordem do Ser, o gnóstico especulativo fica obrigado a eliminar de sua imagem teórica do mundo toda e qualquer estrutura fixa da realidade que pareça impedir a almejada transformação radical.

A realidade não muda por causa dos desejos e das vontades humanas, decerto. O pensador gnóstico tampouco pode eliminar aspectos constitutivos do mundo. Se, todavia, há tais aspectos, então sua ambição de alteração alquímica do mundo está fadada ao fracasso. A solução gnóstica não é a conformação à realidade e sim a sua alteração teórica. Isto é, a imagem do mundo é reconcebida por meio da eliminação daquilo que em sua estrutura real é inexorável e imutável.

A imagem do mundo é falsificada a fim de não contrariar as esperanças gnósticas. Essa situação faz com que o pensador gnóstico crie um modelo falso do mundo omitindo fatores da realidade de cuja existência ele sabe perfeitamente. Voegelin considera que essa atitude revela uma pneumopatologia, uma patologia do espírito que caracteriza-se pelo ódio à realidade como ela constitui-se e pela consequente omissão teórica deliberada de aspectos fundamentais da estrutura dessa mesma realidade.

A Utopia de Thomas More seria um exemplo desse fenômeno, de acordo com Voegelin. Ao conceber a sociedade perfeita, More afirma que nela não haveria propriedade privada. Contudo, ele sabe perfeitamente bem que um tal estado de coisas jamais se dará simplesmente porque o homem possui a luxúria da posse. Apesar disso, ele diz que poderia haver uma sociedade perfeita se não houvesse essa luxúria. Mas, se ele mesmo admite que há esse empecilho incontornável, não parece haver razão para propor esse tipo de modelo perfeito de sociedade na história.

Na filosofia da História de Hegel, Voegelin encontra o mesmo padrão. Toda aquela construção teórica sustenta-se na medida em que se elimina o mistério da própria História concebendo-a como um todo capaz de ser apreendido cognitivamente. Acontece que o todo da História não é abarcável pelo pensamento e, portanto, não é objeto de conhecimento humano. Um aspecto essencial da estrutura da realidade é eliminado da imagem do mundo do gnóstico especulativo para que a sua esperança na transformação radical seja mantida.

E, para que essa imagem permaneça firme, instaura-se uma "proibição do questionamento". O pensador gnóstico, sabendo da fragilidade de sua construção teórica e da irrealidade de sua imagem amputada da ordem do Ser, proíbe explicitamente que perguntas fundamentais sejam feitas pelo leitor. Marx, assevera Voegelin, afirma que o homem é produzido pelo trabalho humano e qualquer pergunta fundamental sobre a origem do homem que ponha em questão essa tese é por ele condenada de antemão como fruto da mera abstração.

O fenômeno da proibição do pensamento não se restringe ao campo das discussões teóricas. Ele tem consequências funestas e sinistras quando torna-se socialmente efetivo. Voegelin cita as declarações de Rudolf Höss, comandante de Auschwitz, acerca de sua participação no Holocausto. Quando perguntado por qual razão não se negara a participar das atrocidades contra os judeus, Höss respondeu que jamais ocorreu-lhe questionar-se sobre suas ordens. Tal atitude era praticamente impossível.
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quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Aristóteles, política e Esparta




"Nos governos da Lacedemônia e de Creta e, de fato, em todos os governos, dois pontos devem ser considerados. Primeiro, se qualquer lei particular pode ser considerada boa ou má, quando comparada com o estado perfeito. Segundo, se a lei é ou não consistente com a idéia e o caráter os quais o legislador apresentou a seus cidadãos."

ARISTÓTELES, Política, Livro II, 9

Aristóteles passa a analisar o governo de Esparta na seção 9 do segundo livro de sua Política e afirma, logo de início, que duas coisas devem ser avaliadas em um governo: se suas leis são boas ou más em comparação com o estado ideal e se essas leis coadunam-se ou não com as intenções expressas do legislador. Uma coisa é, portanto, saber se uma lei é justa ou injusta a partir da comparação com aquilo que seria uma cidade bem ordenada e outra saber se as leis escolhidas pelo legislador são ou não adequadas aos objetivos propostos.

Não há dúvida que o ócio deve ser assegurado aos cidadãos, comenta o filósofo macedônio. Nesse caso, o meio de assegurar esse ócio é a existência de escravos. As formas, contudo, de tratamento dos escravos variam e são mais ou menos eficientes. Tratá-los bem demais, torná-los-á insolentes e tratá-los severamente em excesso, torná-los-á inclinados à conspiração e à revolta.

O comentário de Aristóteles deve-se ao modo como os espartanos tratavam sua população subjugada, os helotes. Em geral, os helotes eram messênios, um povo do Peloponeso submetido à Esparta ainda nos éculo VII A.C. e que revoltou-se contra seus mestres mais de uma vez. O estado permanente de treino militar do cidadão espartano devia-se, entre outras coisas, ao estado permanente de tensão com os helotes. Para que se tenha uma idéia, todo ano era renovada e solenemente proclamada pelos éforos a declaração de guerra dos espartanos aos helotes.

Aristóteles considera que os problemas dos espartanos com as revoltas dos helotes advinham do tratamento excessivamente duro conferido a estes últimos. Considera também que o mesmo não acontecia com Creta, de situação similar, porque seus inimigos das cidades vizinhas não faziam alianças com os escravos de Creta em suas lutas contra a cidade, já que eles mesmos tinham como escravos populações submetidas. Isto é, a relativa estabilidade cretense devia-se simplesmente ao medo dos vizinhos de criar um clima de revolta dos escravos contra seus senhores.

Outro defeito da constituição espartana estava no tratamento dado às mulheres. Segundo o estagirita, o legislador espartano, Licurgo, preocupou-se em fornecer esmerada educação militar aos homens, mas negligenciou a educação feminina. Como resultado, sua intenção de criar um estado de temperança foi frustrado, pois as mulheres, deixadas sem uma educação apropriada, tornaram-se intemperantes e luxuriosas.

A consequência é que a riqueza passou a ser altamente valorizada, pois os homens eram dominados pelas mulheres, como é comum em raças guerreiras, as quais são muito inclinadas ao prazer sexual, seja com mulheres ou com homens. Parece, então, que o poeta estava certo ao unir Ares, o deus da guerra, à Afrodite, deusa do amor. E isso revelou-se verdadeiro mesmo no apogeu de Esparta, quando boa parte das atividades estavam nas mãos das mulheres.

A origem dessas leis Aristóteles traça nos primeiros tempos de Esparta quando os espartanos retornaram das guerras contra Argos, Arcádia e Messênia. Cansados por conta dessas guerras e treinados na disciplina militar, entregaram às disposições do legislador Licurgo. Contudo, quando este tentou dar leis às mulheres, os espartanos resistiram. Esse defeito original na constituição espartana, considera Aristóteles, criou os problemas acima mencionados e propiciou a avareza.

Licurgo proibiu a venda e a compra de herança, mas não proibiu a doação e havia espartanos que possuíam grandes propriedades enquanto outros possuíam propriedades muito pequenas. Como o número das herdeiras era grande e grandes também os dotes, o resultado foi a concentração feminina das propriedades. E a consequência, a diminuição dos cidadãos espartanos masculinos, o que expõe a cidade à conquista estrangeira.

Aristóteles critica também a instituição dos Éforos. Estes eram um grupo de cinco magistrados eleitos anualmente por sorteio entre os cidadãos cuja função era fiscalizar o cumprimento das leis e, até mesmo, julgar os dois reis de Esparta. Além dos éforos havia a Damos, a assembléia que votava as propostas apresentadas pela Gerousia, o conselho dos anciãoscomposta pelos dois reis e mais trinta cidadãos acima dos sessenta anos, eleitos por voto e com cargo vitalício.

Os éforos eram eleitos por sorteio entre todos os cidadãos, ricos ou pobres. Aristóteles considera que esse modo de escolha era prejudicial ao estado, já que homens pobres estariam mais inclinados à propina. Por outro lado, o poder conferido a eles era tão grande que mesmo os reis sentiam-se na obrigação de bajulá-los, pois, eventualmente, poderiam muito bem ser julgados pelos éforos. Daí que, na prática, a instituição dos éforos degradou a aristocracia espartana tornando-a efetivamente uma democracia.

O problema não é exatamente, diz Aristóteles, a eleição dos éforos entre todos os cidadãos, mas sim a forma adotada para isso. Eles tinham em suas mãos grandes decisões, as mais importantes da cidade, e não poderiam decidir somente usando o próprio julgamento, dado que eram homens comuns, mas sim de acordo com leis escritas. Além disso, sua posição conferia-lhes muitas licenças, enquanto os outros cidadãos viviam em uma disciplina muito rigorosa, o que conduz geralmente à fuga na direção dos prazeres sensuais.

A Gerousia também apresenta problemas. De fato, um conselho de anciãos, de homens experientes  e bem treinados nas virtudes viris é coisa boa. Se seu mandato deve ser vitalício já é matéria de debate, uma vez que os homens envelhecem na mente e no corpo. O modo de  sua eleição é infantil, assegura o macedônio, pois cidadãos em postos tão altos e com tão grande responsabilidade não deveriam ser obrigados a angariar votos. Os melhores deveriam ser simplesmente apontados, quer Aristóteles.

O legislador deve ter tido intenção de reconhecer a qualidade da ambição na instituição da eleição por votos na Gerousia. Pois somente os ambiciosos quereriam uma posição no conselho de anciãos. Contudo, a ambição e a avareza, mais do quaisquer outras paixões, são os motivos do crime. E os membros da Gerousia eram conhecidos por sua inclinação à propina e à corrupção.

A questão se reis são ou não uma vantagem, Aristóteles promete, tratará em capítulos posteriores. Por hora, o filósofo afirma que, pelo menos, os reis devem ser escolhidos por sua conduta e vida pessoal e não como eram escolhidos. Havia uma dupla monarquia em Esparta, dois reis de duas famílias aristocráticas rivais que reinavam em conjunto e que, na qualidade de herdeiros do trono, eram dispensados da agogé, o rígido treinamento militar a que todos os cidadãos espartanos estavam sujeitos a partir dos sete anos de idade.

A instituição dos banquetes comuns também criava problemas. Todo cidadão espartano adulto deveria tomar parte desses (frugais) banquetes comuns assim como sustentá-los. Não conseguir sustentar esses banquetes significava perda da cidadania. Como nem todos conseguiam manter os banquetes, os pobres eram alijados dos direitos de cidadania.

Aristóteles considera justa a crítica de Platão ao estado espartano em Leis. O legislador concentrou-se em somente uma virtude, a do soldado, a qual concede vitória na guerra. Ora, a guerra não é constante. Como não sabiam nada sobre as artes da paz, caíram tão logo foram obrigados a lidar com meios pacíficos. 

E, aponta o filósofo macedônio, outro grande erro foi cometido pelo legislador espartano. Embora acreditassem que os bens que os homens almejam devam ser adquiridos por meio da virtude e não por meio do vício, os espartanos erraram ao acreditar que tais bens fossem mais preciosos do que a virtude com a qual eles as adquiriam. Na verdade, a virtude é mais preciosa do que os bens que ela adquire.

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domingo, 13 de novembro de 2016

Popper, epistemologia, política e o sacrifício da consciência intelectual



"Eu estava chocado em ter de admitir a mim mesmo que não somente eu aceitara uma teoria complexa um tanto acriticamente, mas também que eu já havia notado um pouco do que estava errado tanto na teoria quanto na prática do comunismo. Mas eu havia reprimido isso, parcialmente por lealdade a meus amigos, parcialmente por lealdade à 'causa' e parcialmente porque há um mecanismo de envolver a si mesmo mais e mais profundamente: uma vez que alguém tenha sacrificado a consciência intelectual a respeito de um ponto menor, não desejará render-se muito facilmente. Desejará justificar o auto-sacrifício convencendo a si mesmo da bondade fundamental da causa, a qual é vista como algo que supera qualquer pequeno compromisso moral ou intelectual que porventura seja exigido. Com todo esse sacrifício intelectual ou moral, fica-se mais profundamente envolvido. Torna-se apto a sustentar os investimentos morais e intelectuais na causa com novos investimentos."

KARL POPPER, Unended Quest: An Intellectual Autobiography, p.33 

No texto Conjectures and Refutations, incluído em coletânea homônima de 1963, Karl Popper revela que a questão central de sua obra epistemológica - o critério de demarcação entre ciência empírica e pseudo-ciência empírica - nasceu no ano de 1919, quando ele ainda era um adolescente na Viena pós-primeira guerra.

Na época, diz Popper, havia intensa atividade política e grande confusão na capital austríaca. Diversas idéias e teorias reivindicavam o caráter de ciência, entre elas o marxismo, a psicanálise de Freud, a psicologia individual de Alfred Adler e a teoria da relatividade de Einstein. Esta última teve confirmada uma de suas predições importantes ainda naquele ano. 

Popper sentia que havia algo errado no marxismo, na psicanálise e na psicologia adleriana quando comparados aos sucessos preditivos da relatividade, embora todas essas teorias fossem consideradas, de modo geral, científicas. Os seus defensores gabavam-se do enorme poder de explicação e de confirmação dessas teorias. 

A resposta a essa situação é conhecida. Embora todas, aparentemente, fossem teorias confirmadas por evidências empíricas, somente a teoria de Einstein fazia predições realmente arriscadas, isto é, colocava-se sob teste empírico através de predições de eventos cuja existência só poderia ser descoberta por meio da própria teoria. As outras não faziam mais do que interpretar a realidade, qualquer que ela fosse, em termos de suas categorias teóricas, transformando assim em confirmação qualquer possível refutação da teoria.

Todavia, em sua autobiografia intelectual, Unended Quest, o filósofo austríaco revela uma experiência de ordem ético-política determinante para a formação de seu caráter, de seu pensamento epistemológico e de suas opções políticas posteriores. Esse episódio lança luz sobre as motivações éticas do racionalismo crítico e do liberalismo popperianos.  

Ainda em 1919, Popper relata, o recente fim da Primeira Guerra lançou a Áustria - em especial, Viena -, em um redemoinho de agitação e de incertezas de diversas ordens. Havia fome, desesperança, escassez e muito discurso político. No meio dessa imensa instabilidade, havia três grandes partidos: o social-democrata, o nacionalista germânico e o social-cristão. Os dois últimos, anti-socialistas.

Correndo por fora, havia um pequeno partido comunista, de tendência marxista. Poucos que fossem, os comunistas conseguiam adeptos graças ao discurso pacifista, pois a Rússia bolchevique cumpriu a promessa feita de sair da guerra por meio do pacto Brest-Litovsk. Popper, impressionado com esse discurso, ingressa nas fileiras comunistas.

Durante um protesto de jovens socialistas (Popper entre eles), um grupo destacou-se e tentou resgatar alguns companheiros comunistas da prisão na central de polícia de Viena. Diversos jovens socialistas e trabalhadores comunistas foram mortos. Chocado, o ainda adolescente Popper sentiu-se pessoalmente responsável pelo ocorrido, já que, enquanto marxista, acreditava que a luta de classes deveria ser intensificada, com o o objetivo de acelerar a revolução.

Foi ali que Popper, como ele mesmo relata, passou a questionar-se se, de fato, sabia se o marxismo era científico. Questionava-se se poderia assumir a responsabilidade de encorajar outros jovens a arriscar suas vidas em prol daquela profecia. Em especial, a tese segundo a qual a revolução exige algumas vítimas pareceu-lhe revoltante. 

Em uma palestra em 1992 intitulada The Collapse of Communism, Popper fornece ainda mais detalhes desse episódio traumático. Ele afirma que, mesmo antes do dia fatídico do protesto, já havia identificado traços preocupantes nas lideranças do partido. Entre outras coisas, a avidez em alimentar o ódio assassino contra as "classes inimigas", a admissão tácita de que a morte de camaradas era um preço justo a pagar pela revolução, o uso de mentiras e de afirmações contraditórias, tais como defender o terror revolucionário vermelho em um dia e dizer o oposto no dia seguinte.

Popper revela que aceitara todas essas teses, diretrizes e comportamentos, com grande custo moral, até o protesto de Junho de 1919. A descrição do episódio é praticamente a mesma de sua autobiografia. A única diferença notável é um acréscimo sobre a reação dos líderes à morte dos jovens. 

"Mas, quando retornei ao QG do Partido, encontrei uma atitude muito diferente: a revolução exigia tais sacrifícios. Eles eram inevitáveis. E significavam progresso, pois deixariam os trabalhadores furiosos com a polícia e cônscios da classe inimiga." (Popper, The Collapse of Communism, in All Life is Problem Solving, p. 134)

Retornando ao texto da autobiografia, o episódio de 1919 levara Popper a questionar-se se, afinal de contas, ele havia realmente dedicado-se a estudar a cientificidade do marxismo. E se realmente ele achava correto arriscar a sua vida e, principalmente, a de outros jovens, encorajando-os a arriscar suas vidas por uma tese que ele nem mesmo conhecia suficientemente.

E a resposta alcançada ao fim desse exame de consciência a um tempo epistêmico e ético, para sua tristeza, foi negativa. Ele havia se deixado seduzir por uma teoria perigosa acerca da qual não saberia dizer se era verdadeira ou falsa. Havia arriscado a sua vida e encorajado outros a fazer o mesmo por uma tese mal examinada. E pior, havia permanecido fiel a ela mesmo quando notara um bocado de suas falhas e do comportamento imoral de seus defensores.

Acreditara cegamente em um credo e arrogara-se um tipo de conhecimento que exigia como dever arriscar a vida de outros em nome de um futuro hipotético. Nesse momento, tornara-se anti-marxista, embora ainda fossem necessários alguns anos de estudo para que pudesse formular claramente suas objeções ao marxismo.

Popper identificará, anos depois, o que considerará o centro do marxismo, a saber, a profecia histórica combinada com um apelo implícito a uma regra moral: "ajude a trazer à realidade o inevitável". Mas postergará a publicação de suas críticas até 1935, por causa do receio de que elas pudessem ajudar de alguma forma no fortalecimento dos nacionalismos e dos fascismos em voga.

A rejeição do marxismo não significou, por vários anos, uma rejeição do socialismo. Esta só se deu quando percebeu que socialismo e liberdade eram incompatíveis, que a união de ambos não era mais que uma bela ilusão. Mais do que isso, Popper afirma que percebeu que a liberdade é mais importante que a igualdade, que a busca pela realização da igualdade ameaça a liberdade e que não há sequer igualdade entre aqueles que não são mais livres.

O encontro com o marxismo, Popper assevera, foi um dos mais importantes eventos de seu desenvolvimento intelectual. Ensinou a ele a modéstia intelectual, a necessidade da crítica racional, os perigos do dogmatismo e tornou-o um falibilista.

Essa experiência traumática de 1919 e o contato com a teoria da relatividade por meio de uma palestra ministrada por Einstein em Viena, convenceram-no de que era a atitude crítica - a disposição de submeter ao teste as próprias teorias - que caracterizava a legítima ciência empírica e não o dogmatismo de Marx, Freud e Adler. Estes não faziam mais do que interpretar todas as possíveis refutações em termos de suas teorias com o fim de colecionar verificações de suas teses.
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quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Popper, lógica e a impossibilidade de previsão do curso futuro da História



"O centro do argumento é a consideração de que há certas coisas sobre nós mesmos as quais não podemos prever por métodos científicos. Mais especialmente, não podemos prever, cientificamente, resultados que obteremos no curso do crescimento de nosso próprio conhecimento. Outros, mais sábios que nós, podem ser capazes de prever o crescimento de nosso conhecimento, da mesma forma como nós, em certas circunstâncias, podemos prever o crescimento do conhecimento de uma criança. Mas eles também não serão capazes de prever o de antecipar hoje o que eles mesmos saberão somente amanhã." (itálico no original)

KARL POPPER, The Open Universe: An Argument for Indeterminism from the Postscript to The Logic of Scientific Discovery, p. 62

No prefácio de sua obra The Poverty of Historicism, Karl Popper apresenta, sucintamente, na forma de cinco teses, seu argumento contra o historicismo. Como já visto em posts anteriores (*), o filósofo austríaco define o historicismo como a tese segundo a qual há uma direção na História e que essa direção é discernível cientificamente, de modo que é possível prever o curso futuro dessa mesma História e basear nesse conhecimento todas as medidas racionais de ação política e social.

Popper afirma que uma formulação mais completa desse argumento já havia sido dada em um postscript ao Logic of the Scientific Discovery. Curiosamente, o argumento é ali apresentado com somente três teses, embora haja uma discussão maior na justificação de cada uma delas. No postscript o argumento é exposto da seguinte forma:

"1) Se é possível demonstrar que a auto-predição é impossível, seja qual for a complexidade do preditor, então o mesmo deve sustentar-se para qualquer 'sociedade' de preditores interagentes. Consequentemente, nenhuma 'sociedade' de preditores interagentes pode prever seus próprios estados futuros de conhecimento.

2) O curso da história humana é fortemente influenciado pelo crescimento do conhecimento humano (a verdade dessa premissa deve ser admitida mesmo por aqueles que, como os marxistas, vêem em nossas idéias, incluindo as científicas, meramente produtos acidentais de desenvolvimentos materiais de um tipo ou de outro).

3) Não podemos, por conseguinte, prever o curso futuro da história humana. Não, em nenhuma medida, aqueles aspectos que são fortemente influenciados pelo crescimento de nosso conhecimento." (p.63)

O mesmo argumento é apresentado da seguinte forma no prefácio de The Poverty of Historicism

"1) O curso da história humana depende, em grande parte, do crescimento do conhecimento humano (A verdade dessa premissa deve ser admitida mesmo por aqueles que, como os marxistas, vêem em nossas idéias, inclusive as científicas, meramente produtos acidentais de desenvolvimentos materiais de um tipo ou de outro.

2) Não podemos, por conseguinte, prever, por métodos racionais ou científicos, o crescimento futuro de nosso conhecimento científico (esta asserção pode ser logicamente provada por considerações que serão esboçadas abaixo).

3) Logo, não podemos prever o curso futuro da história humana.

4) Isso significa que devemos rejeitar a possibilidade de uma história teorética. Isto é, uma ciência social histórica que corresponderia à física teorética. Não pode haver uma teoria científica do desenvolvimento histórico que sirva como base para predição histórica.

5) O objetivo fundamental das teorias historicistas é, portanto, equivocado. E o historicismo colapsa."

Popper, em seguida, afirma que o resultado dessa argumentação não significa uma negação da possibilidade de qualquer tipo de predição em ciências sociais, como, aliás, ficará explícito nos capítulos que constituem The Poverty of Historicism. Somente são atingidas pelo argumento popperiano as doutrinas sociológicas que têm o historicismo por base, isto é, aquelas que baseiam suas predições na suposição de uma direção histórica discernível cientificamente. Por outro lado, as pretensões epistêmicas do espectro de teorias sociais e econômicas que apenas predizem que certos resultados particulares seguir-se-ão de certas condições particulares permanecem inteiramente válidas.

A cogência da argumentação repousa sobre a premissa (2), como Popper mesmo admite. Segundo ele, não parece razoável considerar possível que um cientista possa, por meio de métodos científicos, prever quais serão as suas próximas descobertas. Não há como antecipar hoje aquilo que será conhecido somente amanhã. O máximo que uma teoria científica faz é prever certos eventos no futuro com base naquilo que ela afirma sobre a realidade.

A teoria prevê um estado de coisas possível no futuro que pode ou não vir a confirmar-se. Ela não pode prever o que será descoberto, mas somente a possibilidade de um evento determinado de cujo realidade ela não sabe de antemão. A ciência não pode prever quais serão os conhecimentos que ela descobrirá no futuro. Em outros termos, o estado atual de conhecimento científico não informa o estado de conhecimento futuro da ciência. Tais estados são logicamente independentes.

Popper afirma que o mesmo resultado vale tanto para indivíduos em uma sociedade quanto para uma hipotética máquina científica de predições. Nenhuma máquina de predições poderia prever o seu estado futuro de conhecimento tanto quanto nenhuma sociedade poderia prever seu estado futuro de conhecimento.

As teses acima apresentadas, segundo Popper, seriam suficientes para refutar as pretensões epistêmicas do historicismo e, consequentemente, de todas as teorias sociais, econômicas e políticas que tenham por base a tese da preditibilidade do curso futuro da História.

Contudo, no postscript do The Logic of Scientific Discovery, Popper explica melhor o que significaria poder prever cientificamente as descobertas futuras da ciência. Significaria, por exemplo, que a ciência poderia prever quais teorias ainda não aceitas ou desconhecidas hoje seriam aceitas no futuro.

Tal possibilidade, diz Popper, possui duas questões internas. Uma refere-se à capacidade de prever a aceitação futura de teorias não aceitas hoje e a outra refere-se à capacidade de prever o conteúdo de teorias futuras hoje desconhecidas. Esta segunda questão parece a Popper de somenos importância, pois se pudéssemos prever o conteúdo de teorias futuras, então essas teorias não seriam, por definição, futuras e sim atuais. 

Resta a outra questão, a saber, a predição da aceitação futura de teorias ainda não aceitas no presente. Se prever o conteúdo de teorias futuras é já concebê-las no presente, algo diferente é prever a aceitação futura de teorias que já existem, mas não foram ainda aceitas.

Ora, se uma teoria só pode ser aceita por causa da confirmação de suas predições, então uma teoria não é aceita hoje justamente porque carece de evidências a seu favor. Sendo assim, afirmar a possibilidade de prever a aceitação futura de uma teoria ainda não aceita equivale a poder prever hoje o resultado de predições ainda não realizadas.

Contudo, isso significa que a predição que prevê o resultado das predições de uma teoria ainda não aceita confirma não a teoria ainda não aceita e sim a teoria que prevê o resultado das predições da teoria ainda não aceita. Por exemplo, se tenho uma teoria T1 ainda não aceita por falta de evidências e prevejo a aceitação futura de T1 por meio de T0 que prevê os resultados positivos das predições de T1, então essa predição confirma T0 e não T1.

Só podem confirmar uma teoria as predições positivas que foram derivadas do corpo da própria teoria em teste. Em outros termos, aquilo que confirma uma nova teoria são as predições positivas feitas com auxílio da nova teoria e não predições feitas com auxílio de teorias que já possuímos.

Ou ainda, prever com uma teoria já existente os resultados das predições de uma teoria nova ainda não aceita é tornar a teoria nova irrelevante. Não faz sentido ter uma teoria nova cuja confirmação depende de predições cujos resultados já foram preditos por uma anterior.

Isso refuta o historicismo porque demonstra ser impossível prever os novos conhecimentos que ainda não foram descobertos. Em suma, a tese historicista é errônea por razões lógicas, pois se ela afirma que é possível prever o curso futuro da História e se, como afirma Popper, é logicamente impossível prever novos conhecimentos antes de eles serem descobertos e seu impacto sobre o curso da história humana, então esse curso está em aberto e é imprevisível.

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(*) http://oleniski.blogspot.com.br/2016/10/popper-ciencia-historicismo-historia.html
     http://oleniski.blogspot.com.br/2016/02/popper-historicismo-totalismo-e-utopia.html

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Eric Voegelin e o fundamento da ciência política



"O evento decisivo no estabelecimento da politike episteme foi a percepção especificamente filosófica de que os níveis do Ser discerníveis dentro do mundo são ultrapassados por uma fonte transcendente do Ser e de sua ordem. E essa intuição estava, ela mesma, enraizada nos movimentos reais da alma espiritual humana na direção do ser divino experienciado como transcendente."

ERIC VOEGELIN, Science, Politics & Gnosticism, p. 13


Em 1958, na universidade de München, o filósófo político alemão Eric Voegelin ministrou uma lecture onde analisava a influência do gnosticismo antigo nas formas e filosofias políticas de seu tempo. A palestra pública dava-se por ocasião de seu retorno à Alemanha após o exílio nos Estados Unidos devido à perseguição nazista durante a segunda guerra.

A análise de Voegelin tomava como base sua concepção da ciência política segundo a qual esta procede de uma intuição da ordem transcendente do Ser que serve como medida e como crítica das diversas opiniões sobre a organização política da sociedade. Segundo o filósofo, essa concepção tem sua origem em Platão e em Aristóteles.

A ciência política - politike episteme - nasce no século IV A.C. a partir da questão se seria possível encontrar a ordem correta da alma humana e da sociedade, de modo que essa ordem pudesse servir de modelo, ideal ou paradigma para os cidadãos da polis grega. Decerto havia muitas opiniões - doxai - sobre como os homens deveriam comportar-se e organizar-se socialmente. Alguma delas, contudo, poderia exigir para si o caráter de objetividade científica?

Ora, diz Voegelin, essa base clássica da ciência política permanece válida até hoje. O objeto de seus estudos, contudo, não é nada esotérico e compõe-se daquelas perguntas que o filósofo compartilha com o homem comum: "O que é a virtude?", "Como ser feliz?", "Como deve a sociedade organizar-se?", "O que é a justiça?", entre outras questões. Todas elas nascem das condições objetivas da existência do homem em sociedade. E o filósofo, arremata Voegelin, é um homem tanto quanto todo homem.

Assim sendo, resta saber o que distingue os questionamentos e as asserções do filósofo sobre essas matérias daqueles questionamentos e asserções dos homens comuns que sustentam suas opiniões no debate público. A distinção se dá na pretensão qualitativa do filósofo. Suas asserções pretendem ser não meramente opiniões em conflito com outras opiniões e sim asserções que as ultrapassam em validade por serem fruto da utilização de instrumentos de análise científica.

O filósofo, então, inaugura ou novo conflito: não mais um mero conflito entre opiniões (doxai), mas um conflito entre opiniões e ciência (episteme). Obviamente, a análise científica não é limitada à análise lógico-formal que só pode determinar contradições internas das opiniões, contradições entre suas consequências e inferências inválidas. A análise científica julga a verdade daquilo que é dito e só pode fazê-lo na pressuposição de que a ordem real do Ser pode ser captada objetivamente.

A ciência orienta-se portanto, para a ordem do Ser, para a ordem objetiva da realidade. E essa orientação, assevera Voegelin, já está presente nos esforços teóricos de Platão e de Aristóteles. A ciência só pode operar na pressuposição de que a ordem da realidade pode ser captada para além das opiniões cambiantes.

Obviamente, a mera pressuposição de que a ontologia da realidade é acessível ao conhecimento humano não é suficiente para fundamentar a atividade científica. Para Voegelin, a especulação científica platônico-aristotélica não iniciou-se com uma mera pressuposição acerca da capacidade humana de captação da ordem objetiva do Ser e sim de uma experiência efetiva dessa captação.

Dito de outra forma, a própria concepção de uma análise científica só é possível graças à experiência da captação da ordem objetiva da realidade. Portanto, a ciência não nasce da pressuposição da cognoscibilidade objetiva da ordem do Ser, mas sim é um produto da experiência efetiva dessa cognoscibilidade.

Essa "abertura de alma", como o expressa Henri Bergson, é a condição de possibilidade da ciência, pois é somente a intuição da ordem do Ser como um todo que pode servir como régua e parâmetro de julgamento das opiniões correntes sobre a ordem da sociedade e a ordem da alma humana. É somente por essa captação da ordem da realidade que pode Sócrates opor-se às opiniões sobre a ordem da sociedade difundidas em seu tempo. Ele possui a medida objetiva que julga as opiniões subjetivas.

Não se trata somente de um debate teórico, contudo. As opiniões (doxai) que são confrontadas pela medida da ordem do Ser possuída pelo filósofo não são meramente falsas. Elas indicam uma desordem espiritual nas almas daqueles que as defendem. Por essa razão, a análise científica empreendida pelo filósofo será também uma terapia da ordem.

"A sociedade resiste à ação terapêutica da ciência", afirma Voegelin. Isso acontece porque não somente o valor teórico das opiniões confrontadas com a medida da ordem do Ser é posto em questão, mas também as atitudes humanas que as expressam. O que se segue é uma resistência à verdade, uma luta contra a verdade que pode chegar ao ponto de uma proibição do questionamento filosófico.

Voegelin afirma que essa proibição à indagação filosófica jamais aconteceu no mundo helênico, a despeito dos incômodos que ela houvesse criado. Sem dúvida, sempre houve resistências à análise por parte daqueles que defendiam opiniões baseadas meramente na tradição ou na emoção ou que eram ingenuamente confiantes em sua própria correção e que, por conseguinte, enervavam-se contra a análise de suas concepções.

É na modernidade que Voegelin identifica o surgimento do fenômeno da proibição da análise, desconhecido na antiguidade. Isto é, surgem pessoas que sabem que (e por qual razão) suas premissas não podem resistir ao escrutínio crítico da análise cientifica e que, por essa razão, fazem da proibição dessa mesma análise parte integrante de seus dogmas. Tal proibição encontra Voegelin nas obras de Hegel, Marx, Comte, entre outros pensadores.

Não obstante, assim como no seu nascimento na Grécia do século IV A.C., os objetos, os métodos e a precondição da ciência política permanecem os mesmos. As perguntas são as perguntas do homem comum vivendo em sociedade, o método é o da análise científica e a precondição é a abertura à ordem do Ser que pode medir e julgar o conjunto das opiniões veiculadas no debate acerca da ordem da sociedade. 

Isso não significa que as respostas dadas por Platão e por Aristóteles nos albores da ciência política sejam inteiramente válidas hoje, quando as condições da vida humana mudaram drasticamente. O que não mudou, segundo Voegelin, foi a situação básica da ciência política, como apresentada por ele.

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quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Ludwig von Mises, liberdade econômica, liberdade pessoal e socialismo



"Ao lidar com esse sistema de organização econômica - a economia de mercado -, empregamos o termo 'liberdade econômica'. É muito comum que as pessoas não compreendam o que isso significa, acreditando que a liberdade econômica seja algo totalmente independente das outras liberdades, e que essas outras liberdades - as quais crêem serem mais importantes - possam ser preservadas mesmo na ausência da liberdade econômica. O sentido da liberdade econômica é este: que o indivíduo está na posição de escolher a forma na qual ele deseja integrar-se na totalidade da sociedade. O indivíduo está apto a escolher sua carreira, ele é livre para fazer o que ele deseja fazer."

LUDWIG VON MISES, Economic Policy: thoughts for today and tomorrow, 2nd Lecture, "Socialism", p. 17


Na segunda de uma série de seis palestras ministradas em 1958 na Argentina, o economista austríaco Ludwig von Mises, um dos pilares da chamada Escola Austríaca de Economia, tratou da ligação intrínseca entre a liberdade econômica e a liberdade política dentro de uma sociedade. 

Só há sentido em falar de liberdade na sociedade, pois no mundo natural nada há de livre. Tudo é simples regularidade e o homem em todo lugar deve obedecer a essas regularidades se quiser sobreviver. E a liberdade na sociedade inclui as liberdades de culto, de expressão, de imprensa, etc.

Mises afirma que tais liberdades só são possíveis na medida em que há liberdade econômica, pois um governo centralizador que tudo controle e determine tornaria todas as liberdades ilusórias, embora pudesse mantê-las intactas no papel. Por exemplo, que liberdade de imprensa existiria se o Estado fosse dono de todas as máquinas impressoras, já que ele poderia simplesmente impossibilitar a publicação de quaisquer notícias críticas ao regime?

O mesmo se dá com as outras liberdades, como a da escolha de carreira. Em uma economia de mercado, segundo Mises, o indivíduo pode escolher sua carreira como desejar. No socialismo ou em qualquer outro regime coletivista planificador, o Estado decide onde e como os indivíduos trabalharão, de acordo com as exigências do plano central. Obviamente, o sucesso do plano governamental será também a desculpa ideal para o envio de cidadãos inconvenientes ou dissidentes a regiões distantes do país.

Ninguém ignora que a liberdade dentro do sistema de mercado não é perfeita. Ocorre que ela não é perfeita em nenhum lugar. Só há sentido em falar em liberdade dentro da sociedade, como dito anteriormente. E sociedade implica em cerceamento, em renúncias e em sacrifícios. Ao contrário do que Rousseau pensava, o homem na natureza não se encontra livre e sim submetido à força e à hostilidade daqueles que são mais fortes.

A liberdade na sociedade em uma economia livre implica na mútua prestação de serviços entre os cidadãos. O "barão do aço" ou o "rei da indústria" não são nobres cuja posição social esteja garantida a despeito de toda mudança, como poderia parecer em um primeiro momento. Seus filhos não herdarão necessariamente as posses e a posição dos seus pais, mais ou menos como um rei garante o trono a seu filho e sucessor.

Toda a sua fortuna e status dependem de um fundamento frágil e movediço: a vontade do consumidor. Se este não quiser mais o produto X, o dono da empresa que produz X perde a sua colocação feliz na sociedade. A razão disso, segundo Mises, é o fato de que, se é visível e pública a ordem de um patrão a seu empregado, não é igualmente visível e pública a ordem do consumidor ao patrão.

Dito de outro modo, quem manda publicamente é também mandado pela ordem invisível daquele que consome e que, no fim das contas, é quem sustenta e mantém toda a estrutura da empresa, do patrão aos empregados. E estes, por sua vez, também são consumidores. Nenhuma empresa pode sobreviver se seu produto não for uma necessidade ou um objeto de desejo do consumidor.

Essa soberania do consumidor não significa, é claro, que ele não se engane em suas escolhas. Ele pode muito bem consumir o que não deveria, o que em nada diminui a sua liberdade. Ser livre é ser livre inclusive para errar e enganar-se acerca daquilo que deseja.

Seria, então, função do Estado regular o consumo de modo a impedir que os cidadãos consumam aquilo que os prejudica, diriam os estatistas. Mises afirma que essa posição abre margem a outras considerações mais perigosas. Dado ao Estado o direito do controle do consumo dos cidadãos com o fito de protegê-los de escolhas erradas, nada o impediria de estender esse controle dos livros e das idéias perigosas. 

Os meios corretos de corrigir esses erros dos concidadãos são a persuasão e o convencimento. Artigos, livros, conferências e até pregações públicas podem e devem ser utilizados por aqueles que discordam veementemente dos hábitos de seus vizinhos. Em suma, argumentos e não a força estatal.

Mises afirma que, não sendo uma sociedade de status, isto é, de classes e privilégios hereditários, não há na economia de mercado conflitos inconciliáveis de interesse, o que Marx erroneamente atribui ao capitalismo. Se em uma sociedade alguém nasce escravo e um outro nasce senhor e na qual ambos viverão e morrerão dentro dessas classes sem possibilidade de qualquer mudança, então aí é possível falar de conflitos inconciliáveis de interesse, pois o interesse de liberdade do escravo significa a perda da condição de senhor de seu dono.

Obviamente, há diferenças e desigualdades entre as pessoas no capitalismo. Mas essas diferenças não são do mesmo gênero daquelas das sociedades de status, ou seja, não são diferenças hereditárias e imutáveis e sim somente diferenças mutáveis de riqueza. Há mobilidade social, há circulação das elites, como afirmava Pareto. Sempre há e sempre haverá elites, pessoas ricas e politicamente importantes, mas elas estão continuamente mudando. Ricos empobrecem e pobres enriquecem o tempo todo.

Essa mobilidade só pode acontecer em uma sociedade sem um plano centralizador no estilo das sociedades socialistas. Nestas, o planejador central tem nas mãos os destinos de todos os cidadãos e os determina de acordo com um plano único, feito pelo governo e que, por conseguinte, destitui os indivíduos de sua liberdade de escolha de profissão e modo de inserção na sociedade.

O homem livre planeja sua vida, executa seus planos e os modifica de acordo com as circunstâncias favoráveis e desfavoráveis. Ele acerta e erra em suas decisões livremente tomadas. quando submetido a um plano central governamental, ele não é mais livre e sim um mero soldado em um exército. Recebe ordens e as executa sem discussão ou avaliação.

O comitê central tudo controla e a todos comanda. Em tese, ele sabe tudo. Ocorre que o conhecimento acumulado pela humanidade é inabarcável por qualquer indivíduo ou pequeno grupo de dirigentes, por melhores que eles sejam. E quaisquer projetos de novidades e de progressos tecnológicos deverão antes passar pelo escrutínio do planejador central.

Na sociedade de economia de mercado, não há um planejador governamental a ser convencido. Há os investidores que, apresentados ao projeto, poderão aceitá-lo ou rejeitá-lo. De todo modo, assevera Mises, não se trata de um planejador central que decide em definitivo, mas de investidores individuais que podem ser convencidos ou não. E se um investidor não se convence, outro pode convencer-se a investir no projeto.

Mises apresenta, em seguida, seu famoso argumento sobre a impossibilidade do socialismo a partir da impossibilidade do cálculo econômico no sistema socialista. Dado que a indústria baseia-se no cálculo e os empresários planejam suas atividades a partir de cálculos que tomam em conta os preços dos fatores de produção, então não há possibilidade de planeamento sem as informações de preço dos materiais necessários à produção, dos salários dos funcionários e do custo de todas as etapas intermediárias da produção, informações vitais que somente são fornecidas pelo mercado.

Em outros termos, o planejamento dos empresários que produzem mercadorias só pode ser realizado se eles forem informados dos custos e dos preços de todos os materiais e de todas as etapas da produção. A fim de calcular e planejar suas atividades produtivas, um empresário que fabrica móveis tem de saber, por exemplo, o quanto custa a madeira da qual os móveis são feitos, o preço dos pregos que utilizará nos móveis, o custo dos salários de seus empregados, o preço das máquinas, e mais um outro tanto de informações sobre os materiais que utiliza para a fabricação dos móveis. Tais informações são dadas somente pelo mercado.

Não havendo mercado, não há cálculo econômico. E sem o cálculo, o empresário não saberá quais projetos de produção são economicamente viáveis e vantajosos. É porque há mercado não somente dos produtos finais, os bens de consumo, mas também das matérias-primas, das máquinas, dos instrumentos, do trabalho e dos serviços humanos, que o empresário pode calcular os custos e a viabilidade econômica dos diversos projetos de produção de bens de consumo que lhe são apresentados.

Se o socialismo propugna o fim do mercado, a consequência será a impossibilidade do cálculo econômico. Certamente alguém poderia objetar que esse problema parece ter sido contornado na União Soviética. Mises afirma que os russos parecem contornar o problema do cálculo econômico pelo fato de que eles não estão realmente em um mundo socialista, embora seu país seja socialista. Isto é, a URSS vive em um mundo com mercado e, portanto, podem utilizar os preços do mercado mundial em seus planejamentos.

Como no socialismo o governo centraliza tudo, o consumidor deve tudo ao comitê central e é inteiramente dependente com relação aos burocratas que o constituem. Para Mises, nos países de economia de mercado livre, a situação é totalmente diferente. Os consumidores determinam o destino dos empresários e das empresas na medida em que consomem ou deixam de consumir os seus produtos e serviços. No socialismo, o economista austríaco assevera, quem manda são os líderes supremos, os ditadores aos quais o povo todo está submetido e nenhuma liberdade é possível.

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segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Garrigou-Lagrange e Pierre Duhem sobre a compatibilidade entre física e metafísica

                                          Garrigou-Lagrange estudando em sua cela.

O filósofo e teólogo neoescolástico francês Reginald Garrigou-Lagrange (1877-1964) discute, em um apêndice, ao final de sua obra Dieu, son Existence et sa Nature, as possíveis consequências metafísicas de uma interpretação realista dos princípios da inércia e da conservação da energia. 

Em questão está a possibilidade de harmonização entre os supracitados princípios físico-matemáticos e as exigências racionais do princípio metafísico da causalidade. A fim de resolver o aparente dilema, o dominicano expõe suas dúvidas ao físico, matemático, historiador e filósofo Pierre Duhem que, por sua vez, as responde utilizando-se de suas teses acerca dos domínios respectivos da teoria física e da metafísica.

Para Duhem, as teorias físico-matemáticas não são mais do que classificações naturais, isto é, estruturas hierarquicamente ordenadas de equações que descrevem o comportamento manifesto das grandezas físicas sem alcance da natureza última dos fenômenos. Por essa razão, o conflito divisado por Garrigou-Lagrange não pode ser mais do que aparente, pois os princípios em questão não pertencem aos mesmos níveis da realidade.

Garrigou-Lagrange apresenta o problema da seguinte forma:

“Nota sobre o valor dos princípios de inércia e da conservação de energia.”

Tratamos diversas vezes (p. 239, 249-256, 260) desses dois princípios e do problema de sua conciliação com o princípio da causalidade.

De acordo com o princípio da causalidade, não há nenhuma mudança sem uma causa; portanto, uma causa é necessária tanto para a mudança que ocorre durante o movimento quanto para a transição do repouso para o movimento em si. Se assim não fosse, um impulso mínimo e finito poderia produzir um movimento perpétuo no vácuo, no qual haveria sempre de novo, uma passagem perpétua da potência ao ato. Uma potência finita poderia mover durante um tempo infinito, um estalo de dedos dado há dez mil anos produziria ainda hoje o seu efeito e o produziria para sempre. Semelhante movimento não teria necessidade de ser mantido, não possuiria termo, e nem fim no sentido metafísico da palavra. Como isso não contrariaria os princípios de causalidade e de finalidade?

O princípio da inércia, no entanto, afirma: a matéria não pode, por si mesma, pôr-se em movimento ou modificar o seu estado de movimento. Um corpo em movimento, se nenhuma causa externa agir sobre ele, mantêm indefinidamente um movimento retilíneo uniforme.

Se se objeta que os fatos parecem contradizer o princípio da inércia, que uma bola lançada  sobre um plano horizontal bem polido pára depois de um certo tempo, que um trem, tendo  adquirido sua velocidade normal, pára se o vapor não agir sobre os pistões, o físico responde que   a cessação do movimento é devida ao atrito da bola sobre o plano, das rodas sobre os trilhos e também à resistência do ar.

É demonstrado que o atrito e resistência são as únicas causas da cessação do movimento? Está cientificamente provado que um movimento dado não desacelera por si mesmo? 'Já foi experimentado em corpos subtraídos à ação de qualquer força, exige Poincaré [A Ciência e Hipótese, p. 112-119], e, feito isso, como sabemos que tais corpos não foram sujeitos a qualquer força?' Como, sem exceder os limites de sua ciência, o físico poderia sustentar que a moção divina não é necessária para que um corpo lançado no vazio mova-se para sempre?

O princípio da conservação de energia é enunciado da seguinte maneira: 'A energia total (atual e potencial) de um sistema de corpos subtraído à toda ação externa permanece constante.'  Tal princípio está necessariamente relacionado ao precedente, e equivale a dizer que é impossível que o movimento venha a cessar. Ele desaparece em uma forma e reaparece em outra, como o movimento de um projétil não cessa a não ser engendrando calor, e o próprio calor produz movimento local. A equivalência é constatada com o corretivo fornecido pela lei de degradação da energia.

Isso significa que um determinado estalo de dedos dado há dez mil anos ainda tem seu efeito hoje como resultado de transformações de energia e sempre vai ter, sem que a energia tenha a necessidade de ser renovada? É suficiente admitir que essa energia é conservada por Deus, como  queria Descartes, e que a moção divina é exercida apenas no passado, na origem do mundo? Como, sem exceder os limites do seu conhecimento, o físico poderia afirmar que a moção divina não é necessária para que a energia transforme-se perpetuamente? É claro que a energia não permanece individualmente a mesma, não é o mesmo movimento que passa de um corpo a um outro, pois é este movimento, o movimento deste corpo. Também a atividade humana é relativamente constante na face da terra e, no entanto, ela não permanece individualmente a mesma, ela é renovada, uma vez que os homens nascem e morrem. Aristóteles já dizia: corruptio unius est generatio alterius, a matéria não perde uma forma a não ser para receber outra. O que pode ser traduzido em termos modernos relacionados com a energia: uma forma de energia não desaparece sem outra apareça. 

Quer isto dizer que a forma que desaparece é a causa primeira e toda suficiente daquilo que se segue? De modo algum. A ciência experimental, que estuda apenas as relações constantes  entre os fenômenos não pode pronunciar-se a favor ou contra a necessidade da intervenção de uma primeira causa invisível para a transformação de energia. Mas do ponto de vista metafísico, um movimento não dá origem a um outro movimento a não ser com o concurso invisível do primeiro Ser, causa de todo o ser enquanto ser, o Primeiro motor, a causa suprema da atividade das causas segundas. Da mesma forma, do ponto de vista metafísico, um movimento local não pode perpetuar-se no vazio, não pode ser uma perpétua passagem de potência a ato, sem a intervenção invisível do Ato puro, a causa suprema de toda a atualização. Para sustentar, com Descartes, que é suficiente que Deus conserve o movimento, é necessário entender por essa expressão que Deus continua a mover.

Somente assim podem ser conciliados os princípios mecânicos de inércia e de conservação de energia com o princípio metafísico de causalidade. Qualquer conciliação que rejeita a necessidade de intervenção da causa primeira resta ilusória.

O físico não tem como resolver esse problema, ele não pode pronunciar-se positivamente sobre o valor da solução que lhe dá metafísica tradicional. Ele só precisa reconhecer que semelhante solução não se opõe em nada àquilo que a física tem o direito de afirmar sobre o valor de seus próprios princípios na ordem fenomênica.

Sobre este último ponto, temos o prazer de reproduzir uma carta do senhor Pierre Duhem, da Academia de Ciências, onde ele concordou em resumir para nós as ideias principais da sua bela obra A Teoria Física. Rogamos que aceite nossa gratidão, a expressão do nosso respeitoso reconhecimento."

Tendo apresentado suas impressões sobre o problema da conciliação entre os princípios da física-matemática e o princípio metafísico da causalidade, Garrigou-Lagrange reproduz a concisa resposta de Pierre Duhem:

"Meu Padre,

Devo-lhe uma explicação para alguns termos ambíguos da minha carta anterior, e, particularmente, para o nome axioma ou o chamado axioma que dei ao princípio da inércia.

Começo por explicar que eu tomo as palavras Matemática, Física e Metafísica no sentido em que os entendem, em geral, os nossos contemporâneos, não no sentido de Aristóteles e dos escolásticos.

Nessas circunstâncias, a lei de inércia não existe para o matemático. Os princípios da ciência dos números e da geometria são os únicos que ele têm que admitir. Ele não se ocupa dos princípios da Mecânica e da Física. Se acontece de estudar os problemas que lhe colocam o mecânico e o  físico, ele o faz sem preocupar-se com a via pela qual eles foram levados a formular tais problemas.

Considero, portanto, o princípio da inércia somente como ele é para o físico.

Então, podemos afirmar tudo o que pode ser afirmado de todos os princípios das teorias físicas e mecânicas.

Esses princípios fundamentais ou hipóteses (no sentido etimológico da palavra) não são axiomas, isto é, verdades auto-evidentes.

Não são também leis, isto é, proposições gerais que a indução retirou diretamente das lições da experiência.

Pode ser que certas verossimilhanças racionais ou certos fatos de experiência no-las tenham sugerido. Mas tal sugestão nada possui de demonstração. Ela não lhes confere, por si mesma, nenhuma certeza. Do ponto de vista da lógica pura, os princípios básicos das teorias físicas e mecânicas não podem ser considerados a não ser como postulados livremente propostos pelo espírito.

A partir do conjunto desses postulados, o raciocínio dedutivo infere um conjunto mais ou menos remoto de consequências que são consistentes com os fenômenos observados. Esse acordo é tudo aquilo que o físico espera dos princípios por ele postulados.

Tal acordo concede aos princípios fundamentais da teoria alguma verossimilhança. Mas ele nunca pode dar-lhes a certeza, porque nunca podemos demonstrar que, sendo outras premissas tomadas como princípios, não deduzir-se-iam daí consequências que concordariam igualmente bem com os fatos.

Além disso, não se pode jamais afirmar que não serão um dia descobertos novos fatos que não concordam com as consequências dos postulados que foram assentados como os alicerces da teoria. Fatos novos que obrigarão a deduzir, de novos postulados, uma nova teoria.

Essa mudança de postulados ocorreu repetidas vezes durante o desenvolvimento da ciência.

A partir dessas observações, duas consequências:

1. De nenhum dos princípios da teoria mecânica e da física, foi possível ou será possível  afirmar categoricamente que ele é VERDADEIRO.
2. De nenhum dos princípios subjacentes à teoria mecânica e à física, pode-se dizer que é FALSO enquanto não tenham sido descobertos fenômenos em desacordo com as consequências da dedução da qual esse princípio é uma das premissas.

O que eu disse aplica-se, em especial, ao princípio da inércia. O físico não tem direito de dizer que é certamente verdadeiro. Mas ainda menos tem o direito de dizer que é falso, uma vez que nenhum fenômeno até agora forçou a construção de uma teoria física a partir da qual seria excluído esse princípio (se ignorarmos as circunstâncias em que intervêm o livre arbítrio do homem).

Tudo isso é dito permanecendo no campo do físico, para quem os princípios não são afirmações de propriedades reais dos corpos, mas as premissas de deduções cujas consequências devem concordar com os fenômenos todas as vezes em que uma vontade livre não intervém para perturbar o determinismo destes.

A esses princípios da física, podemos e devemos fazer corresponder certas proposições que afirmariam certas propriedades reais de corpos? - À lei da inércia, por exemplo, devemos fazer corresponder a afirmação de que existe, em qualquer corpo em movimento, uma certa realidade, o impetus, dotado de tais e tais características? - Essas proposições estendem-se ou não estendem-se aos seres dotados de livre arbítrio? Esses são problemas para os quais o método do físico está inabilitado a tratar e que ele deixa à livre discussão dos metafísicos.

A essa liberdade do metafísico, o físico somente poderia opor-se em um caso: aquele onde o metafísico formulasse uma proposição que contradissesse diretamente os fenômenos ou que, introduzida a título de princípio na teoria física, conduzisse a consequências em contradição com os fenômenos. Neste caso, haveria motivos legítimos para negar ao metafísico o direito de formular  semelhante proposição.

Eis, meu Padre, o resumo do que eu diria se eu escrevesse, sobre o princípio da inércia, o artigo que gentilmente deseja ...                       P. DUHEM"

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terça-feira, 11 de outubro de 2016

Popper, ciência, historicismo: a História tem sentido?



"Nós queremos saber como nossos problemas estão relacionados ao passado e queremos conhecer a linha ao longo da qual podemos progredir na direção da solução daqueles deveres que sentimos (e escolhemos) como os nossos principais. É essa necessidade que, se não for respondida por meios racionais e justos, produz as interpretações historicistas. Sob sua pressão, o historicista substitui a questão racional 'Quais problemas escolheremos como os nossos mais urgentes, como eles surgiram e ao longo de qual via caminharemos para a solução deles?' pela questão irracional e aparentemente fatual 'Por qual caminho estamos indo? Qual é, em essência, o papel que a História nos reservou para representar?'"

KARL POPPER, Open Society and its Enemies, vol. II: Hegel and Marx, cap. 25, p. 268


O capítulo 25 do segundo volume de Open Society and its Enemies, do filósofo austro-britânico Karl Popper,  conclui a obra com a questão do sentido da História. Para tratar dessa questão, ele inicia sua resposta com uma análise do caráter científico da das teorias históricas.

Como é sabido, Popper criticou durante toda a sua carreira o chamado indutivismo como teoria filosófico-metodológica da ciência empírica. Um dos pontos centrais dessa crítica é a afirmação da impossibilidade de formulação de teorias científicas a partir dos dados observacionais puros, isto é, segundo Popper, nenhuma teoria científica é derivada de dados brutos, mas, ao contrário, os dados são lidos a partir de uma teoria prévia.

Há uma infinidade de fenômenos no mundo natural e uma infinidade de ângulos ou aspectos sob os quais eles podem ser estudados. A seleção dos dados a serem estudados, dos ângulos e dos aspectos sob os quais eles serão estudados, é já fruto de uma escolha prévia na mente do cientista. 

Isso significa, então, que a ciência é presa do subjetivismo, dos interesses teóricos particulares, das expectativas prévias e dos preconceitos do cientista, de modo que toda teoria seria, no fim, dependente das idiossincrasias de seus proponentes? De forma alguma, responde Popper. Embora nascida dessas fontes, a teoria científica legítima é capaz de fornecer predições testáveis empírica e intersubjetivamente, o que garante a sua objetividade.

As teorias científicas nas ciências naturais almejam explicar certos fenômenos e o fazem por meio de afirmações universais combinadas com condições iniciais particulares. Se desejo explicar por qual razão esta corda arrebenta quando submetida a determinada pressão, tomo uma lei universal do tipo "cordas do tipo X quando submetidas a pressões iguais ou maiores a Y arrebentam" e condições iniciais do tipo "esta é uma corda do tipo X que foi submetida a uma pressão igual ou maior a Y". Segue-se daí que a corda deverá arrebentar, como de fato se deu.

So far, so good. A questão que se apresenta é se tal modelo pode ser aplicado às ciências históricas. Aparentemente, a resposta é negativa, pois a História lida precipuamente com fatos singulares e não com leis gerais. As ciências naturais lidam com fatos singulares também, decerto. Mas ela os encara como meras instâncias de um comportamento geral que é, no fim das contas, o que realmente lhe interessa.

Não é esta gota d'água que interessa ao cientista e sim esta gotra d'água como uma instância concreta do comportamento geral de todas as gotas d'água. As leis naturais não são mais do que a generalidade do comportamento dos fenômenos que se manifesta sempre em eventos singulares. Daí que Popper chama essas ciências de ciências generalizantes para distingui-las das ciências históricas.

Ora, se uma gota d'água concreta e singular manifesta um comportamento típico e universal que pode ser traduzido em termos de um lei geral, então um acontecimento histórico pode ser encarado da mesma maneira? Eis o busílis da discussão. A que universalidade ou lei universal corresponde a batalha de Waterloo? O comportamento típico, e, portanto, repetível das gotas d'água pode ser encontrado em um fato histórico como a queda de Cartago ou os descobrimentos marítimos do século XVI? Não é próprio do caráter histórico de um evento a sua irrepetibilidade?

Popper afirma que o interesse da História resta na explicação causal de fatos específicos e que, por conseguinte, a pretensão de descobrimento de leis universais deve ser deixada às ciências naturais. E quando historiadores tentam explicar certos acontecimentos por meio de leis universais, estas são por demais gerais, triviais e ineficientes como explicação. Por exemplo, se se quer explicar o cruzamento do Rubicão pela ambição pela energia de César, isso não seria mais do que uma generalização trivial de ordem psicológica que pouco ou nada explica o evento em questão.

Outros pontos que devem ser recordados quando se trata das diferenças entre as ciências naturais e as ciências históricas são, no que tange às últimas, a severa escassez dos dados à disposição, sua irrepetibilidade e a circularidade implicada no fato de que os dados são recolhidos de acordo com uma teoria preconcebida. Sobre tal ponto, cumpre notar que, na ausência de fatos novos, as teorias não poderão ser testadas e serão, por conseguinte, irrefutáveis.

Popper denomina essas teorias históricas explicativas não-testáveis de interpretações gerais a fim de distingui-las das teorias científicas, testáveis empiricamente. As interpretações gerais são importantes porque elas têm o mesmo papel do ponto de vista prévio que é desempenhado pelas teorias científicas, como visto acima. A diferença é que nunca, ou quase nunca, essas interpretações são testáveis empiricamente, o que significa que raramente elas podem ser classificadas como teorias científicas.

Não se deve também tomar a adequação da interpretação histórica a todos os dados como sinal inequívoco de sua veracidade, pois qualquer conjunto de dados pode logicamente ser harmonizado com um conjunto indefinido de interpretações. A idéia ingênua de que é possível formular uma interpretação única e definitiva dos eventos históricos deve ser abandonada.

Todavia, está longe de ser verdade que as interpretações históricas sejam todas absolutamente equivalentes. Há interpretações que se adequam melhor aos dados, há aquelas que necessitam de hipóteses auxiliares mais ou menos plausíveis para não serem refutadas pelos dados e há as que conectam um número maior de fatos do que as rivais.

Embora as interpretações históricas possam ser incompatíveis entre si, isso não necessariamente é o caso quando as encaramos como pontos de vista cristalizados Por exemplo, uma história da humanidade do ponto de vista de seu progresso na direção da liberdade não é necessariamente incompatível com uma história da humanidade sob o ponto de vista do retrocesso e da opressão. Elas podem, antes, ser interpretações complementares de um mesmo fenômeno visto de ângulos diferentes.

Sendo assim, a interpretação histórica de seu próprio passado contada por uma geração, a partir de seus interesses e pontos de vista, não precisa estar em desacordo com a história contada pela geração anterior, também a partir de seus interesses e pontos de vista. Elas podem ser complementares, enfatizando certos aspectos em detrimento de outros enfatizados pelas gerações anteriores ou posteriores.

"O principal é estar cônscio do próprio ponto de vista e ser crítico, isto é, evitar, tanto quanto possível, vieses inconscientes, e, portanto, não-críticos, na apresentação dos dados. No que tange ao resto, a interpretação deve falar por si mesma e seus méritos serão sua fertilidade, sua habilidade em elucidar os fatos da história tanto quanto seu interesse tópico, sua habilidade em elucidar os problemas do dia." (Popper, p.268)

Resta saber se o mesmo vale para as interpretações historicistas, como as de Hegel e as de Marx. Karl Popper define o historicismo como a doutrina segundo a qual a História possui um sentido cientificamente discernível e que a determinação de tal sentido é necessária para qualquer ação política racional. Para responder à questão acima, é preciso responder se há ou não um sentido na História.

A resposta de Karl Popper é um resoluto "não". Em primeiro lugar, sequer existe uma única História. É possível fazer uma história de qualquer aspecto da vida humana. O que se chama usualmente de "História da Humanidade" não é mais do que a história do poder político, de como civilizações nascem e morrem, conquistam e são conquistadas.

É óbvio que alguma seleção deve ser feita, mas isso não significa que uma história do poder político represente mais a história da humanidade do que qualquer um dos infinitos aspectos da vida humana que podem ser estudados. No fim das contas, não há uma única história humana, mas várias, a depender do aspecto e do ponto de vista escolhidos.

O privilégio de uma história do poder político se deve ao impacto do poder nas vidas dos homens, ao medo e à idolatria que ele desperta nos seus corações. Essa idolatria, contudo, deve ser combatida, seja do ponto de vista racional, seja do ponto de vista do Cristianismo.

Popper não era cristão e estava mais próximo do agnosticismo do que de qualquer crença religiosa. Contudo, aqui sua crítica une-se aos valores cristãos pela percepção de que todo e qualquer ser humano é valioso e que, portanto, a idolatria do poder manifestada na história do poder político só pode significar a glorificação dos fortes em detrimento dos fracos.

E, além disso, a crença de que o julgamento de Deus revela-se na História é indistinguível da crença segundo a qual o sucesso mundano é a justificação suficiente dos atos humanos. Seria como dizer que o sucesso dos fortes manifesta a vontade e a aprovação divinas. Novamente, tanto do ponto de vista racional quanto do ponto de vista cristão, essa doutrina deve ser rejeitada.

Popper considera que é a história dos homens comuns, de seus desejos, anseios e sofrimentos que poderia ser descrita como a manifestação da providência divina e não a história dos fortes, dos brutos e dos vencedores, como é comum encontrar nos livros acadêmicos. Citando o teólogo protestante Karl Barth, Popper afirma que o critério cristão não pode ser o sucesso mundano, pois o próprio Cristo sofreu "sob Pôncio Pilatos" e que o único papel papel reservado ao cônsul romano naqueles eventos era o de simples coadjuvante.

Não obstante, se a História não tem sentido, isso não significa que não possamos dar sentido a ela. Nem a natureza e nem a História podem dizer-nos o que fazer, afirma Popper. Somos nós que decidimos nossos fins e, desse modo, introduzimos finalidade na História. Somos inteiramente responsáveis por nossos atos e pelo sentido que damos à vida.

As doutrinas historicistas retiram do homem sua responsabilidade pessoal e a substituem por forças ocultas que regem a História. O historicismo nasce da desesperança na racionalidade e na responsabilidade moral. A moral do historicismo é o futurismo ético, isto é, o que é certo é aquilo que se conforma com o que será o fim da História, com a vitória final de uma classe, como no marxismo.

O futurismo ético do historicismo garante que, não importa o que façamos, o resultado será o mesmo graças às férreas leis históricas. A um só tempo, tudo o que se faz e tudo o que acontece está justificado pelo resultado final e inevitável da História. Nada depende realmente de nossas decisões morais e nada está realmente sob nossa responsabilidade.

Somente os indivíduos humanos podem progredir, justamente porque somente os indivíduos humanos podem determinar fins e propósitos. A História não pode fazer isso. Por essa razão, o futuro, para Popper, resta sempre aberto e qualquer conquista pode ser perdida se não for mantida pelas decisões contínuas e responsáveis dos homens concretos.

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