terça-feira, 11 de outubro de 2016

Popper, ciência, historicismo: a História tem sentido?



"Nós queremos saber como nossos problemas estão relacionados ao passado e queremos conhecer a linha ao longo da qual podemos progredir na direção da solução daqueles deveres que sentimos (e escolhemos) como os nossos principais. É essa necessidade que, se não for respondida por meios racionais e justos, produz as interpretações historicistas. Sob sua pressão, o historicista substitui a questão racional 'Quais problemas escolheremos como os nossos mais urgentes, como eles surgiram e ao longo de qual via caminharemos para a solução deles?' pela questão irracional e aparentemente fatual 'Por qual caminho estamos indo? Qual é, em essência, o papel que a História nos reservou para representar?'"

KARL POPPER, Open Society and its Enemies, vol. II: Hegel and Marx, cap. 25, p. 268


O capítulo 25 do segundo volume de Open Society and its Enemies, do filósofo austro-britânico Karl Popper,  conclui a obra com a questão do sentido da História. Para tratar dessa questão, ele inicia sua resposta com uma análise do caráter científico da das teorias históricas.

Como é sabido, Popper criticou durante toda a sua carreira o chamado indutivismo como teoria filosófico-metodológica da ciência empírica. Um dos pontos centrais dessa crítica é a afirmação da impossibilidade de formulação de teorias científicas a partir dos dados observacionais puros, isto é, segundo Popper, nenhuma teoria científica é derivada de dados brutos, mas, ao contrário, os dados são lidos a partir de uma teoria prévia.

Há uma infinidade de fenômenos no mundo natural e uma infinidade de ângulos ou aspectos sob os quais eles podem ser estudados. A seleção dos dados a serem estudados, dos ângulos e dos aspectos sob os quais eles serão estudados, é já fruto de uma escolha prévia na mente do cientista. 

Isso significa, então, que a ciência é presa do subjetivismo, dos interesses teóricos particulares, das expectativas prévias e dos preconceitos do cientista, de modo que toda teoria seria, no fim, dependente das idiossincrasias de seus proponentes? De forma alguma, responde Popper. Embora nascida dessas fontes, a teoria científica legítima é capaz de fornecer predições testáveis empírica e intersubjetivamente, o que garante a sua objetividade.

As teorias científicas nas ciências naturais almejam explicar certos fenômenos e o fazem por meio de afirmações universais combinadas com condições iniciais particulares. Se desejo explicar por qual razão esta corda arrebenta quando submetida a determinada pressão, tomo uma lei universal do tipo "cordas do tipo X quando submetidas a pressões iguais ou maiores a Y arrebentam" e condições iniciais do tipo "esta é uma corda do tipo X que foi submetida a uma pressão igual ou maior a Y". Segue-se daí que a corda deverá arrebentar, como de fato se deu.

So far, so good. A questão que se apresenta é se tal modelo pode ser aplicado às ciências históricas. Aparentemente, a resposta é negativa, pois a História lida precipuamente com fatos singulares e não com leis gerais. As ciências naturais lidam com fatos singulares também, decerto. Mas ela os encara como meras instâncias de um comportamento geral que é, no fim das contas, o que realmente lhe interessa.

Não é esta gota d'água que interessa ao cientista e sim esta gotra d'água como uma instância concreta do comportamento geral de todas as gotas d'água. As leis naturais não são mais do que a generalidade do comportamento dos fenômenos que se manifesta sempre em eventos singulares. Daí que Popper chama essas ciências de ciências generalizantes para distingui-las das ciências históricas.

Ora, se uma gota d'água concreta e singular manifesta um comportamento típico e universal que pode ser traduzido em termos de um lei geral, então um acontecimento histórico pode ser encarado da mesma maneira? Eis o busílis da discussão. A que universalidade ou lei universal corresponde a batalha de Waterloo? O comportamento típico, e, portanto, repetível das gotas d'água pode ser encontrado em um fato histórico como a queda de Cartago ou os descobrimentos marítimos do século XVI? Não é próprio do caráter histórico de um evento a sua irrepetibilidade?

Popper afirma que o interesse da História resta na explicação causal de fatos específicos e que, por conseguinte, a pretensão de descobrimento de leis universais deve ser deixada às ciências naturais. E quando historiadores tentam explicar certos acontecimentos por meio de leis universais, estas são por demais gerais, triviais e ineficientes como explicação. Por exemplo, se se quer explicar o cruzamento do Rubicão pela ambição pela energia de César, isso não seria mais do que uma generalização trivial de ordem psicológica que pouco ou nada explica o evento em questão.

Outros pontos que devem ser recordados quando se trata das diferenças entre as ciências naturais e as ciências históricas são, no que tange às últimas, a severa escassez dos dados à disposição, sua irrepetibilidade e a circularidade implicada no fato de que os dados são recolhidos de acordo com uma teoria preconcebida. Sobre tal ponto, cumpre notar que, na ausência de fatos novos, as teorias não poderão ser testadas e serão, por conseguinte, irrefutáveis.

Popper denomina essas teorias históricas explicativas não-testáveis de interpretações gerais a fim de distingui-las das teorias científicas, testáveis empiricamente. As interpretações gerais são importantes porque elas têm o mesmo papel do ponto de vista prévio que é desempenhado pelas teorias científicas, como visto acima. A diferença é que nunca, ou quase nunca, essas interpretações são testáveis empiricamente, o que significa que raramente elas podem ser classificadas como teorias científicas.

Não se deve também tomar a adequação da interpretação histórica a todos os dados como sinal inequívoco de sua veracidade, pois qualquer conjunto de dados pode logicamente ser harmonizado com um conjunto indefinido de interpretações. A idéia ingênua de que é possível formular uma interpretação única e definitiva dos eventos históricos deve ser abandonada.

Todavia, está longe de ser verdade que as interpretações históricas sejam todas absolutamente equivalentes. Há interpretações que se adequam melhor aos dados, há aquelas que necessitam de hipóteses auxiliares mais ou menos plausíveis para não serem refutadas pelos dados e há as que conectam um número maior de fatos do que as rivais.

Embora as interpretações históricas possam ser incompatíveis entre si, isso não necessariamente é o caso quando as encaramos como pontos de vista cristalizados Por exemplo, uma história da humanidade do ponto de vista de seu progresso na direção da liberdade não é necessariamente incompatível com uma história da humanidade sob o ponto de vista do retrocesso e da opressão. Elas podem, antes, ser interpretações complementares de um mesmo fenômeno visto de ângulos diferentes.

Sendo assim, a interpretação histórica de seu próprio passado contada por uma geração, a partir de seus interesses e pontos de vista, não precisa estar em desacordo com a história contada pela geração anterior, também a partir de seus interesses e pontos de vista. Elas podem ser complementares, enfatizando certos aspectos em detrimento de outros enfatizados pelas gerações anteriores ou posteriores.

"O principal é estar cônscio do próprio ponto de vista e ser crítico, isto é, evitar, tanto quanto possível, vieses inconscientes, e, portanto, não-críticos, na apresentação dos dados. No que tange ao resto, a interpretação deve falar por si mesma e seus méritos serão sua fertilidade, sua habilidade em elucidar os fatos da história tanto quanto seu interesse tópico, sua habilidade em elucidar os problemas do dia." (Popper, p.268)

Resta saber se o mesmo vale para as interpretações historicistas, como as de Hegel e as de Marx. Karl Popper define o historicismo como a doutrina segundo a qual a História possui um sentido cientificamente discernível e que a determinação de tal sentido é necessária para qualquer ação política racional. Para responder à questão acima, é preciso responder se há ou não um sentido na História.

A resposta de Karl Popper é um resoluto "não". Em primeiro lugar, sequer existe uma única História. É possível fazer uma história de qualquer aspecto da vida humana. O que se chama usualmente de "História da Humanidade" não é mais do que a história do poder político, de como civilizações nascem e morrem, conquistam e são conquistadas.

É óbvio que alguma seleção deve ser feita, mas isso não significa que uma história do poder político represente mais a história da humanidade do que qualquer um dos infinitos aspectos da vida humana que podem ser estudados. No fim das contas, não há uma única história humana, mas várias, a depender do aspecto e do ponto de vista escolhidos.

O privilégio de uma história do poder político se deve ao impacto do poder nas vidas dos homens, ao medo e à idolatria que ele desperta nos seus corações. Essa idolatria, contudo, deve ser combatida, seja do ponto de vista racional, seja do ponto de vista do Cristianismo.

Popper não era cristão e estava mais próximo do agnosticismo do que de qualquer crença religiosa. Contudo, aqui sua crítica une-se aos valores cristãos pela percepção de que todo e qualquer ser humano é valioso e que, portanto, a idolatria do poder manifestada na história do poder político só pode significar a glorificação dos fortes em detrimento dos fracos.

E, além disso, a crença de que o julgamento de Deus revela-se na História é indistinguível da crença segundo a qual o sucesso mundano é a justificação suficiente dos atos humanos. Seria como dizer que o sucesso dos fortes manifesta a vontade e a aprovação divinas. Novamente, tanto do ponto de vista racional quanto do ponto de vista cristão, essa doutrina deve ser rejeitada.

Popper considera que é a história dos homens comuns, de seus desejos, anseios e sofrimentos que poderia ser descrita como a manifestação da providência divina e não a história dos fortes, dos brutos e dos vencedores, como é comum encontrar nos livros acadêmicos. Citando o teólogo protestante Karl Barth, Popper afirma que o critério cristão não pode ser o sucesso mundano, pois o próprio Cristo sofreu "sob Pôncio Pilatos" e que o único papel papel reservado ao cônsul romano naqueles eventos era o de simples coadjuvante.

Não obstante, se a História não tem sentido, isso não significa que não possamos dar sentido a ela. Nem a natureza e nem a História podem dizer-nos o que fazer, afirma Popper. Somos nós que decidimos nossos fins e, desse modo, introduzimos finalidade na História. Somos inteiramente responsáveis por nossos atos e pelo sentido que damos à vida.

As doutrinas historicistas retiram do homem sua responsabilidade pessoal e a substituem por forças ocultas que regem a História. O historicismo nasce da desesperança na racionalidade e na responsabilidade moral. A moral do historicismo é o futurismo ético, isto é, o que é certo é aquilo que se conforma com o que será o fim da História, com a vitória final de uma classe, como no marxismo.

O futurismo ético do historicismo garante que, não importa o que façamos, o resultado será o mesmo graças às férreas leis históricas. A um só tempo, tudo o que se faz e tudo o que acontece está justificado pelo resultado final e inevitável da História. Nada depende realmente de nossas decisões morais e nada está realmente sob nossa responsabilidade.

Somente os indivíduos humanos podem progredir, justamente porque somente os indivíduos humanos podem determinar fins e propósitos. A História não pode fazer isso. Por essa razão, o futuro, para Popper, resta sempre aberto e qualquer conquista pode ser perdida se não for mantida pelas decisões contínuas e responsáveis dos homens concretos.

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