quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Popper, a origem e a justificação das teorias científicas


"Generalidade, similaridade, e também repetição, sempre pressupõem a adoção de um ponto-de-vista: algumas similaridades ou repetições vão nos chamar a atenção se estivermos interessados em um determinado problema e outras se estivermos interessados em um outro problema. Mas se similaridade e repetição pressupõem a adoção de um ponto-de-vista ou interesse ou expectativa, então é logicamente necessário que pontos-de-vista, interesses ou expectativas sejam logicamente, tanto quanto temporalmente (ou causalmente ou psicologicamente), anteriores à repetição."

KARL POPPER, The Logic of Scientific Discovery, p.421

O método popperiano, ao invés de inferir enunciados universais de observações particulares, recorre ao movimento inverso, ou seja, inferir de enunciados universais predições na forma de enunciados singulares. De acordo com esse método dedutivo de testes, uma teoria, entendida como um enunciado universal, criada para solucionar um problema específico, é submetida ao teste deduzindo-se daí predições empíricas que se, na qualidade de enunciados singulares, porventura se revelarem falsas, falseiam a teoria, segundo o processo lógico conhecido como Modus Tollens.

A proposta de Popper, como ele mesmo salientou em diversas ocasiões, baseia-se na assimetria lógica entre a verificabilidade e a falseabilidade. Tal assimetria resulta da forma lógica dos enunciados universais que, embora não podendo ser derivados de enunciados singulares, podem, inversamente, ser refutados por enunciados singulares.

Uma série de cisnes brancos observados no passado não dá condições, em termos lógicos, de derivar e afirmar um enunciado universal do tipo: “Todos os cisnes são brancos.” Uma vez que não se conhecem todas as instâncias de cisnes no tempo e no espaço, sempre há a possibilidade da existência de cisnes negros. Por isso tal enunciado será sempre inverificável. Bastará, entretanto, uma única instância de cisnes não-brancos para refutar nosso enunciado universal “Todos os cisnes são brancos.”

Enquanto uma instância contrária às predições não for encontrada, nossa teoria pode ser dita corroborada, embora com isso nada possamos garantir quanto a seu futuro. Daí infere-se que somente é possível falsear uma teoria, nunca verificá-la. O método crítico científico, então, se caracterizaria pela tentativa racional de falsear suas teorias e de eliminar os seus erros. 

Como conseqüência, as teorias científicas permanecem para sempre hipóteses. Não há assim lugar para a certeza definitiva e conclusiva. A qualquer momento, por mais instâncias confirmadoras que tenha, qualquer teoria pode ser refutada por fatos novos. O máximo que se pode dizer de uma teoria científica é que, até o um dado momento, ela resistiu aos testes. A isso Popper chamava de corroboração, sem dar-lhe qualquer tipo de conotação indutiva:


"Teorias científicas não podem jamais ser justificadas, provadas ou verificadas. Contudo, a despeito disso, uma hipótese A pode, sob certas circunstâncias, alcançar mais que uma hipótese B – talvez pelo fato de que B é contrariada por certos resultados de observações e, assim, falseada por eles enquanto A não é falseada; ou talvez pelo fato de um número maior de predições poder ser derivado com a ajuda de A do que com a ajuda de B. O melhor que podemos dizer de uma hipótese é que, até o momento presente, ela tem sido capaz de mostrar seu valor e tem sido melhor sucedida que outras hipóteses, embora não se possa jamais justificá-la, verificá-la ou mesmo mostrar sua probabilidade. Tal avaliação da hipótese repousa somente sobre as conseqüências (predições) que podem ser derivadas da hipótese. Não há sequer necessidade de mencionar indução, (POPPER, The Logic of Scientific Discovery, p. 315)

Como visto, a corroboração de uma teoria se dá somente sobre as suas conseqüências logicamente deduzidas na forma de predições que, expostas ao teste empírico, não sejam falseadas. É por meio da eliminação de seus erros (o método de conjecturas e refutações) que a ciência progride e Popper compara a competição entre teorias rivais com o processo de seleção natural da biologia evolucionista. As teorias que escolhemos são aquelas que provam sua aptidão para sobreviver aos rigorosos testes empíricos.

Entretanto, se a ciência se caracteriza pelo processo de conjecturas e refutações e nos é vetado logicamente derivar de observações singulares enunciados universais, de que forma se dá a construção de teorias ? Hume criticava a indução mostrando como logicamente inválida a idéia de se poder derivar de observações limitadas no tempo um enunciado universal cujo conteúdo afirma a regularidade de certos fenômenos num futuro potencialmente infinito. Todavia, se não é das observações que se derivam as teorias, qual a sua origem ? Há um processo lógico através do qual possamos explicar a criação de hipóteses?

Popper rejeita a idéia de que o conhecimento empírico se inicie pela observação pura de eventos similares. Ao contrário, a tese popperiana afirma que não há jamais observação sem teoria prévia. Eventos similares são similares somente dentro de um determinado ponto de vista e podem ser dissimilares em quaisquer outros pontos de vista. A observação de regularidades só poderá acontecer se for iluminada a partir de algum ponto de vista. 

Assim, o filósofo assevera que, anterior (seja lógica, seja temporalmente) à qualquer observação, sempre há teorias, expectativas ou interesses. O papel da observação não será o de levar à criação de teorias, mas, ao contrário, o de corroborar ou falsear teorias prévias. Coerentemente com o critério de demarcação, as instâncias observacionais proporcionarão o teste necessário das teorias das quais, enquanto predições, são deduzidas.

A observação é sempre feita à luz de alguma teoria prévia e também a própria linguagem em que descrevemos a observação está repleta de teorias. Mesmo uma sentença simples como “Aqui está um copo de água" é uma teoria. A experiência imediata de um copo de água é dada somente uma vez, mas os universais que a descrevem (como “copo” e “água”) denotam corpos físicos que exibem comportamento semelhante a uma lei, ultrapassando a experiência específica dos sentidos. Se a observação também é, grosso modo, uma teoria, então um enunciado observacional como “Aqui está um copo de água “ é inverificável.

Os enunciados observacionais são para sempre inverificáveis, mas podem ser falseados. Popper não defende uma base empírica observacional cujo conteúdo seja imediato, “dado de uma vez por todas ”, aos moldes do empirismo clássico onde a evidência dos sentidos era inquestionável. Ao contrário, a base empírica deve ter o caráter disposicional de falseabilidade, ou seja, ela é sempre passível de revisão como qualquer outra teoria ou hipótese.

De acordo com o visto acima, Popper afirma que a tese empirista da possibilidade de derivação de teorias a partir de enunciados observacionais é logicamente falsa. Porém, a crítica popperiana vai mais longe e pretende mostrar, por meio de outros argumentos, que a tese empirista, intuitiva e historicamente, não se sustenta.

Intuitivamente é possível chegar à conclusão, por exemplo, que uma teoria como a mecânica newtoniana não poderia ter sido derivada de meras observações. As predições da teoria de Newton são marcadas pela exatidão e pela precisão, enquanto as observações (quaisquer que sejam) são sempre inexatas. 

É insustentável a tese segundo a qual seria possível de observações inexatas derivar predições precisas. Além disso, as observações são feitas sob condições especiais e numa situação específica, enquanto a teoria pretende ser aplicada em todas as possíveis circunstâncias. 

Todavia, o mais importante é o fato de que a teoria newtoniana trata de alguns objetos abstratos que não são observáveis. As forças, embora sejam as entidades mais importantes para a dinâmica de Newton, não podem ser observadas. É possível medir a aceleração da queda de um corpo e, assim, a ação da força gravitacional. Porém, nessa operação supomos como dada a verdade da dinâmica newtoniana e a existência de entidades abstratas e diretamente inobserváveis como as forças.

Da mesma forma, segundo Popper, verifica-se que, historicamente, as teorias não derivam de observações. Tomando como exemplo os principais antecessores da teoria newtoniana, Nicolau Copérnico, e Johannes Kepler, Popper mostra como idéias de fundo metafísico e religioso, e não a observação, desempenharam um papel determinante na criação de teorias científicas.

Copérnico não chegou à idéia de substituir a Terra pelo Sol como o centro do universo através de observações, mas sim através de teses místico-filosóficas de origens platônicas e neoplatônicas. Na República, Platão dá ao Sol, no domínio das coisas visíveis, o lugar privilegiado análogo àquele da idéia de Bem no mundo das Idéias. 

Assim, Copérnico, embebido dessas idéias do neoplatonismo, achou que o lugar do Sol no universo não poderia ser girar em torno da Terra, mas, ao contrário, deveria caber ao Sol o lugar de ponto fixo em torno do qual girariam todos os planetas. Entretanto, Copérnico não foi dogmático acerca dessas idéias simplesmente as afirmando sem nenhum amparo observacional. À luz dessa sua teoria, predições foram derivadas e observações foram feitas para testar a teoria. 

Vê-se que a postura crítica científica está justamente no teste das predições derivadas da teoria, não importando a origem da mesma. Johannes Kepler era um copernicano influenciado pelas idéias platônicas e pitagóricas. Empenhado na mística busca pela lei aritmética em que se basearia a estrutura do mundo, Kepler sustentava a idéia de que os corpos celestes descreviam uma órbita perfeitamente circular e de velocidade uniforme em torno do Sol. 

Todavia, ao comparar sua teoria com as observações de seu mestre Tycho Brahe, constatou que sua teoria era falsa. O passo seguinte foi testar modelos alternativos até chegar no modelo da órbita elíptica. As predições feitas corroboraram sua nova teoria e Kepler abandonou de vez a crença em órbitas perfeitamente circulares.

Nos exemplos históricos dados depreende-se, ainda segundo Popper, uma estrutura comum, na qual delineia-se uma postura crítica que parte de idéias, crenças e teses que, ao invés de serem dogmaticamente afirmadas, são testadas e avaliadas por meio da corroboração ou do falseamento das predições que delas porventura se possam derivar. 

A questão que permanece é a da procedência das teorias, uma vez que foi negada a possibilidade de derivá-las de observações. Para Popper, a questão de como uma nova teoria, hipótese ou idéia nasce em um homem (cientista ou não) é uma questão de investigação psicológica enquanto ciência empírica. Ela é irrelevante para uma análise lógica do conhecimento científico, onde o que está em foco é a justificação lógica (quid juris) dos enunciados e não questões de fato (quid facti).

Independentemente da origem da teoria, seu teste não é um empreendimento privado, mas público. Por seu próprio caráter de universalidade, a ciência procura estabelecer relações causais entre os fenômenos válidas para todo o tempo e espaço e para qualquer experimentador. É somente a exposição das teorias ao crivo crítico intersubjetivo que garante a objetividade da ciência. 

Se, como exemplifica Popper, Robinson Crusoé conseguisse construir laboratórios em sua isolada ilha e descobrisse fatos que concordassem com a ciência hodierna, ainda assim o que fez não se poderia considerar ciência. Isto porque o empreendimento científico se dá na discussão entre os membros participantes de um campo de pesquisa.

A objetividade da ciência não é garantida por um fictício cientista ideal destituído de preconceitos e perfeitamente imparcial, mas sim pelo caráter público ou social de suas atividades. Qualquer cientista pode, em princípio, avaliar criticamente uma teoria em questão concordando ou discordando de seus resultados, métodos e conceitos, propondo mudanças e outras perspectivas possíveis. 

Popper, dessa forma, tenta assegurar uma clara separação entre as idiossincrasias, as crenças pessoais e a psicologia que agem no processo ainda desconhecido da invenção de teorias por qualquer cientista e aquilo que realmente interessa à ciência e ao conhecimento e que deve ser submetido ao teste intersubjetivo. Importa ao filósofo austríaco, em suma, marcar a diferença entre o contexto psicológico da criação de teorias (quid facti) e o contexto lógico da justificação (quid juris) das teorias.

O terreno onde se dará a discussão dos problemas científicos e dos méritos das teorias será aquele da argumentação racional. Este tem normas próprias e independentes de avaliação que não fazem referência a contextos psicológicos e que tornam possível a crítica intersubjetiva.

...

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Popper, indução e demarcação científica


“O problema que me preocupava na época não era ‘Quando uma teoria é verdadeira?' nem ‘Quando uma teoria é aceitável?' Meu problema era diferente. Eu queria distinguir entre ciência e pseudociência, sabendo muito bem que ciência freqüentemente erra e que pseudociência pode encontrar ocasionalmente a verdade."

KARL POPPER, Conjectures and Refutations, p.44


Karl Popper destaca-se no cenário da filosofia da ciência do século XX como um dos seus mais importantes pensadores. Durante toda a sua carreira acadêmica dedicou-se à crítica da tradição indutivista no campo da epistemologia. Contudo, segundo suas próprias palavras em Conjectures and Refutations, o problema que o levou, a partir de 1919, a se dedicar precipuamente à epistemologia foi aquele da possibilidade de demarcação clara entre o que se toma como científico e o que se toma como não-científico. 

Tal problema filosófico ficou tradicionalmente conhecido como problema da demarcação e pode ser formulado em uma pergunta básica: “Quando uma teoria deve ser considerada científica?” Em nosso cotidiano trabalhamos com diversas teorias de gêneros e procedências os mais variados. Algumas delas não apelam para conhecimentos empíricos (por vezes rejeitando-os) colocando-se como independentes de verificações na experiência. 

Outras, ao contrário, apelam para a experiência com o intuito de provar sua veracidade. As teorias a que chamamos científicas têm sido tradicionalmente alocadas neste último grupo e seu apelo ao testemunho da experiência tornou-se o principal motivo pelo qual as mesmas são colocadas sob tal título.

Contudo, Popper não se satisfez com essa concepção da natureza das teorias científicas e, ainda em 1919, começou a se questionar se realmente a idéia de verificação de uma teoria através da observação de instâncias empíricas poderia ser um critério adequado para a demarcação entre o pensamento científico e o não-científico. Tal idéia tinha sua origem e base na confiança em inferências indutivas e na validade lógica destas.

Desde Francis Bacon, a indução era considerada o método par excellence da ciência empírica, no qual por meio de observações de fenômenos constantes inferir-se-ia que os mesmos fenômenos apresentariam a mesma regularidade e constância ao longo do tempo. Tal inferência seria traduzida em termos de uma teoria e esta seria confirmada através das instâncias nas quais a predição de constância entre os fenômenos em questão fosse observada. Uma grande quantidade de instâncias confirmadoras da teoria a elevaria à condição de Lei.

Entretanto, segundo David Hume, filósofo cético escocês do século XVIII, não há justificativa lógica para inferirmos o inobservado do observado. Não importando a quantidade de instâncias confirmadoras, não teríamos razões lógicas para esperar que instâncias futuras, potencialmente infinitas, se coadunassem com aquelas observadas no passado. Assim, a indução, a inferência de enunciados universais a partir de enunciados singulares, careceria de justificativa lógica.

Popper aceita as críticas de Hume e defende que qualquer tentativa de justificar a indução, está fadada ao fracasso. Não obstante, as teorias científicas são expressas em enunciados universais do tipo (x) (Rx ->Sx). Num tal enunciado, se pressupõe uma conexão necessária entre todas as instâncias de R e de S . Contudo, para Popper, Hume mostrou muito bem que tal necessidade não existe. A mesma idéia é defendida com veemência por Popper: 

“Eu concordo plenamente com o espírito da paráfrase de Hume feita por Wittgenstein: ‘A necessidade de uma coisa acontecer porque outra aconteceu não existe. Só há necessidade lógica.' ”

Ora, não havendo conexão necessária, não há como garantir que instâncias futuras de enunciados universais se conformem a instâncias passadas. Daí a impossibilidade de uma verificação definitiva de tais enunciados que supõem instâncias futuras inobservadas, não importando o número das instâncias confirmadoras.

Parecia claro a Popper que uma perspectiva indutiva não poderia ser a base para demarcação entre ciência e pseudociência. Além disso, havia teorias que apelavam para evidências empíricas, mas que exibiam características diferentes daquelas teorias reconhecidamente científicas. 

Popper dá como exemplo dessas diferenças três grandes teorias que, à época de sua juventude vienense, centralizavam as atenções dos homens de cultura e reivindicavam a marca da cientificidade: a psicanálise de Sigmund Freud, o materialismo dialético de Karl Marx e a teoria da relatividade de Albert Einstein.

Como Popper mesmo declara, o que havia de impressionante na psicanálise e no marxismo era a grande quantidade de instâncias observacionais verificadoras que apoiavam essas duas teorias. De fato, parecia ao estudante que estas eram como uma revelação divina que explicava todos os acontecimentos dentro de seu campo de aplicação. 

Aparentemente o poder explanatório dessas teorias era tal que podia-se dizer que o mundo estava repleto de instâncias confirmadoras. Uma vez iniciado no estudo de tais doutrinas, o neófito poderia dar conta de qualquer fenômeno dentro de seu campo, pois todo fenômeno, no fundo, não passava de mais uma confirmação das supracitadas teorias.

Contudo, a teoria da relatividade de Einstein pareceu a Popper muito diferente da psicanálise freudiana e do marxismo. O cientista alemão fazia, por meio de sua teoria, predições arriscadas de certos fenômenos em geral dificilmente observáveis. A teoria sustentava, por exemplo, que a luz era atraída pelo campo gravitacional dos corpos de grande massa tal qual os corpos materiais. 

Deduz-se daí a predição de que a luz de uma distante estrela cuja aparente posição estivesse perto do Sol alcançaria a Terra parecendo estar afastando-se do Sol. Tal predição só poderia ser observada durante um eclipse e se o que havia sido predito não se confirmasse, seria um claro sinal da refutação da teoria de Einstein.

A predição foi confirmada por uma expedição de eminentes astrônomos em Sobral, no Ceará, em 1919. O que havia de diferente na teoria da relatividade era que através dela deduziam-se predições que eram incompatíveis com certos resultados passíveis de observação. O contrário se dava com a psicanálise e o marxismo que eram compatíveis com dados divergentes a tal ponto que não se podia, em virtude da própria teoria, encontrar sequer uma instância refutadora nos fatos.

A aparente irrefutabilidade da psicanálise e do marxismo não eram, como usualmente se poderia pensar, a sua força, mas sim a sua fraqueza. Ao contrário, a capacidade de fazer predições que possam ser, em princípio, refutadas é o que dá força à teoria da relatividade. Toda teoria científica procura descobrir leis naturais e estas se caracterizam por uma afirmação de uniformidade de certos efeitos através de um número potencialmente infinito de instâncias.

Se temos uma lei natural X que afirma que para todos os casos de X, se P então Q, o que se quer dizer com isso é que não houve, não há ou haverá uma instância de X em que havendo P não haja também Q. O que se pretende então é afirmar que há uma ligação uniforme ao longo do tempo entre P e Q. 

Se, por exemplo, quando dizemos que um corpo qualquer sempre se esquenta quando é bombardeado diretamente pelos raios do Sol e afirmamos ser isso uma lei natural, postulamos assim que (todas as condições sendo as mesmas) não haverá jamais uma instância na qual um corpo não se esquente sob a ação direta dos raios solares.

Como Popper bem assinalou, as teorias científicas podem ser vistas como proibições. Elas proíbem que certas coisas aconteçam. A lei da gravidade de Newton, como toda lei científica, pode ser reformulada como uma proibição do tipo: “Não haverá um caso no qual um corpo lançado de uma altura qualquer não será atraído pela gravidade tendendo em direção do centro da Terra”. E Popper ainda assevera que quanto mais uma teoria proibir, melhor ela será.

O nível de proibição de uma teoria é proporcional a seu risco. Na mesma medida em que proíbe, a teoria diminui a quantidade das possíveis respostas adequadas às suas predições, aumentando o risco de instâncias refutadoras. O verdadeiro teste de uma teoria será então uma espécie de tentativa de refutação da mesma. O teste será uma tentativa de encontrar furos na lei, de encontrar casos em que a teoria falha em suas predições.

Popper afirma então que o critério do status científico é a testabilidade, ou refutabilidade ou ainda a falseabilidade. A teoria científica é aquela que proíbe muito e que assim arrisca-se à refutação. Uma teoria qualquer que dê condições de refutabilidade, pode ser considerada científica.

Assim, o critério de demarcação popperiano afirma que só pode ser admitido como científico um sistema que seja passível de teste, ou, dito de outro modo, que apresente o caráter disposicional de poder ser refutado empiricamente. E para que a avaliação de teorias aconteça em concordância com a concepção falseabilista de ciência, Popper propõe um método de avaliação ancorado nas virtudes da dedução da lógica formal clássica.

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terça-feira, 20 de outubro de 2015

Ibn Sina: possível, impossível e a demonstração da existência de Deus

                                                     
                                          Trecho do Al Qanun de Ibn Sina


"Para tudo aquilo que existe, sua existência é necessária por si mesma ou não é. Toda coisa cuja existência não é necessária por si mesma é ou impossível ou contingente. Toda coisa que é impossível por si mesma não pode jamais existir. Então, para que possa existir, é necessário que ela seja contingente em si mesma e, então, que ela se torne necessária somente se ela tiver uma causa que a cause e que ela se torne impossível na falta de uma causa que a cause. Pois, uma é a coisa considerada em si mesma. Outra, é a coisa considerada enquanto tendo uma causa ou não tendo uma causa. Quando a consideras em si mesma, sem relação com nenhuma causa, ela não é nem necessária e nem impossível. Quando consideras a realização da causa como a sua causa determinante, então a coisa se torna necessária. Mas, quando a consideras sob o ângulo da não realização da causa como sua causa,  a coisa se torna impossível."

ABU ALI HUSSAIN IBN SINA, Danesh Nama Alai, Livro II- Metafísica


Abu Ali Al Hussayn Ibn Abdu Allah Ibn Al Hasan Ibn Ali Ibn Sina (Avicena) nasceu em Bukhara, Korassan, Uzbequistão no ano de 930 DC (morre em 1037 D.C.). Gênio precoce, Ibn Sina foi poeta, músico, geômetra, astrônomo, filósofo, médico, matemático e gramático. Sua obra de medicina Al-Qanun foi adotada pelas universidades européias até o século XVI.

Entre suas principais obras está o Danesh Nama Alai ("Livro da Ciência"), espécie de suma dos saberes onde o sábio islâmico trata de Lógica, Metafísica, Física, Geometria, Astronomia, Aritmética e Música. Nessa obra, mais precisamente no livro sobre Metafísica, o filósofo trata das relações existentes entre as naturezas das coisas, a causalidade e a existência das mesmas.

Segundo Ibn Sina, os entes estão divididos em entes possíveis por si mesmos, necessários por outros, impossíveis por si mesmos e necessários por si mesmos.

Em outros termos, ao examinarmos a natureza de algo, a essência, o que a coisa é, podemos saber de antemão se se trata de:

1) Ente possível por si mesmo, isto é, um ente que pode existir;
2) Ente impossível por si mesmo, ou seja, um ente que não pode existir;
3) Ente necessário por si mesmo, o ente que não pode não existir.

O homem, por exemplo, é um ser possível por si mesmo, pois nada em seu conceito impede sua existência, assim como nada em seu conceito exige sua existência. Ademais, do simples fato da existência concreta de homens é necessário inferir-se a sua possibilidade.

O ente impossível por si mesmo seria aquele não pode existir, pois é contraditório. Por exemplo, um triângulo quadrado. O ente necessário por si mesmo seria aquele cuja essência exige sua existência, Deus. Ele não é meramente possível, ele é por sua natureza sempre existente.

Para Ibn Sina, há diferença real entre essência e existência, isto é, a essência de algo não implica necessariamente sua existência. Por exemplo, é possível pensar em uma sereia (uma essência) sem que seja preciso afirmar a sua existência real no mundo fora da mente de quem a pensa. Daí que o ente meramente possível é contingente, ou seja, é um ente que pode ou não existir. 

Ora, o ente contingente só se torna existente, em primeiro lugar, por ser possível em si mesmo e, em segundo lugar, por ser posto na existência por outro. Uma vez posto na existência por outro (a causa), o ser contingente (o causado) torna-se ser necessário por outro. 

Dito de outro modo, o ser contingente, quando é causado por outro, torna-se necessário, pois, uma vez que existe por causa de outro, ele não é mais meramente possível, mas existe necessariamente porque há uma cadeia causal que determina a sua existência. De modo inverso, se não há uma causa que cause a sua existência, o ser contingente não tem como existir concretamente.

Por essa razão, o ser contingente que não tem uma causa que cause sua existência concreta é chamado por Ibn Sina de ser impossível. Contudo, essa impossibilidade é relativa e não absoluta como a do ente impossível em si mesmo. O triângulo quadrado é impossível por si mesmo e jamais existirá porque é contraditório. O ente contingente pode ser impossível somente no sentido de que não há (pelo menos por enquanto) uma causa que cause sua existência concreta.

Assim, todo ser contingente que passa a existir tem dois aspectos:

I) Por si mesmo é meramente possível;
II) Pelo outro que o causa, é necessário.

Ibn Sina retira dessa doutrina uma consequência importante para a ontologia e para a teologia natural: uma demonstração racional da existência de Deus. Se todo ser contingente só existe por outro, todo ser contingente existente tem uma causa. 

Ora, o conjunto da totalidade dos seres contingentes existentes é ele mesmo necessário ou possível. Mas se é uma totalidade de seres contingentes existentes, então ela não pode ser necessária, já que é formada por seres meramente possíveis.

Resta a segunda opção, o conjunto da totalidade dos seres possíveis é possível. Se é possível, então necessita de uma causa para existir concretamente. Se a causa da totalidade dos entes contingentes existentes fosse algo interno a essa totalidade, seria também meramente possível. O que não resolve a questão.

A única solução que resta é que o conjunto da totalidade dos entes contingentes existentes deve ter uma causa que não seja em si mesma meramente possível e sim necessária em si mesma. Ora, dado que a totalidade dos entes contingentes existentes não abriga nenhum ente necessário por si mesmo e que a causa da totalidade dos entes contingentes existentes não pode ser meramente possível, então a sua causa só pode ser externa e necessária por si mesma. 

Necessariamente, por conseguinte, tem que haver uma causa necessária por si mesma externa ao conjunto da totalidade dos entes contingentes existentes. E essa causa necessária por si mesma não é outra a não ser Deus.


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