"Generalidade, similaridade, e também repetição, sempre pressupõem a adoção de um ponto-de-vista: algumas similaridades ou repetições vão nos chamar a atenção se estivermos interessados em um determinado problema e outras se estivermos interessados em um outro problema. Mas se similaridade e repetição pressupõem a adoção de um ponto-de-vista ou interesse ou expectativa, então é logicamente necessário que pontos-de-vista, interesses ou expectativas sejam logicamente, tanto quanto temporalmente (ou causalmente ou psicologicamente), anteriores à repetição."
KARL POPPER, The Logic of Scientific Discovery, p.421
O método popperiano, ao invés de inferir enunciados universais de observações particulares, recorre ao movimento inverso, ou seja, inferir de enunciados universais predições na forma de enunciados singulares. De acordo com esse método dedutivo de testes, uma teoria, entendida como um enunciado universal, criada para solucionar um problema específico, é submetida ao teste deduzindo-se daí predições empíricas que se, na qualidade de enunciados singulares, porventura se revelarem falsas, falseiam a teoria, segundo o processo lógico conhecido como Modus Tollens.
A proposta de Popper, como ele mesmo salientou em diversas ocasiões, baseia-se na assimetria lógica entre a verificabilidade e a falseabilidade. Tal assimetria resulta da forma lógica dos enunciados universais que, embora não podendo ser derivados de enunciados singulares, podem, inversamente, ser refutados por enunciados singulares.
Uma série de cisnes brancos observados no passado não dá condições, em termos lógicos, de derivar e afirmar um enunciado universal do tipo: “Todos os cisnes são brancos.” Uma vez que não se conhecem todas as instâncias de cisnes no tempo e no espaço, sempre há a possibilidade da existência de cisnes negros. Por isso tal enunciado será sempre inverificável. Bastará, entretanto, uma única instância de cisnes não-brancos para refutar nosso enunciado universal “Todos os cisnes são brancos.”
Enquanto uma instância contrária às predições não for encontrada, nossa teoria pode ser dita corroborada, embora com isso nada possamos garantir quanto a seu futuro. Daí infere-se que somente é possível falsear uma teoria, nunca verificá-la. O método crítico científico, então, se caracterizaria pela tentativa racional de falsear suas teorias e de eliminar os seus erros.
Como conseqüência, as teorias científicas permanecem para sempre hipóteses. Não há assim lugar para a certeza definitiva e conclusiva. A qualquer momento, por mais instâncias confirmadoras que tenha, qualquer teoria pode ser refutada por fatos novos. O máximo que se pode dizer de uma teoria científica é que, até o um dado momento, ela resistiu aos testes. A isso Popper chamava de corroboração, sem dar-lhe qualquer tipo de conotação indutiva:
"Teorias científicas não podem jamais ser justificadas, provadas ou verificadas. Contudo, a despeito disso, uma hipótese A pode, sob certas circunstâncias, alcançar mais que uma hipótese B – talvez pelo fato de que B é contrariada por certos resultados de observações e, assim, falseada por eles enquanto A não é falseada; ou talvez pelo fato de um número maior de predições poder ser derivado com a ajuda de A do que com a ajuda de B. O melhor que podemos dizer de uma hipótese é que, até o momento presente, ela tem sido capaz de mostrar seu valor e tem sido melhor sucedida que outras hipóteses, embora não se possa jamais justificá-la, verificá-la ou mesmo mostrar sua probabilidade. Tal avaliação da hipótese repousa somente sobre as conseqüências (predições) que podem ser derivadas da hipótese. Não há sequer necessidade de mencionar indução, (POPPER, The Logic of Scientific Discovery, p. 315)
Como visto, a corroboração de uma teoria se dá somente sobre as suas conseqüências logicamente deduzidas na forma de predições que, expostas ao teste empírico, não sejam falseadas. É por meio da eliminação de seus erros (o método de conjecturas e refutações) que a ciência progride e Popper compara a competição entre teorias rivais com o processo de seleção natural da biologia evolucionista. As teorias que escolhemos são aquelas que provam sua aptidão para sobreviver aos rigorosos testes empíricos.
Entretanto, se a ciência se caracteriza pelo processo de conjecturas e refutações e nos é vetado logicamente derivar de observações singulares enunciados universais, de que forma se dá a construção de teorias ? Hume criticava a indução mostrando como logicamente inválida a idéia de se poder derivar de observações limitadas no tempo um enunciado universal cujo conteúdo afirma a regularidade de certos fenômenos num futuro potencialmente infinito. Todavia, se não é das observações que se derivam as teorias, qual a sua origem ? Há um processo lógico através do qual possamos explicar a criação de hipóteses?
Popper rejeita a idéia de que o conhecimento empírico se inicie pela observação pura de eventos similares. Ao contrário, a tese popperiana afirma que não há jamais observação sem teoria prévia. Eventos similares são similares somente dentro de um determinado ponto de vista e podem ser dissimilares em quaisquer outros pontos de vista. A observação de regularidades só poderá acontecer se for iluminada a partir de algum ponto de vista.
Assim, o filósofo assevera que, anterior (seja lógica, seja temporalmente) à qualquer observação, sempre há teorias, expectativas ou interesses. O papel da observação não será o de levar à criação de teorias, mas, ao contrário, o de corroborar ou falsear teorias prévias. Coerentemente com o critério de demarcação, as instâncias observacionais proporcionarão o teste necessário das teorias das quais, enquanto predições, são deduzidas.
A observação é sempre feita à luz de alguma teoria prévia e também a própria linguagem em que descrevemos a observação está repleta de teorias. Mesmo uma sentença simples como “Aqui está um copo de água" é uma teoria. A experiência imediata de um copo de água é dada somente uma vez, mas os universais que a descrevem (como “copo” e “água”) denotam corpos físicos que exibem comportamento semelhante a uma lei, ultrapassando a experiência específica dos sentidos. Se a observação também é, grosso modo, uma teoria, então um enunciado observacional como “Aqui está um copo de água “ é inverificável.
Os enunciados observacionais são para sempre inverificáveis, mas podem ser falseados. Popper não defende uma base empírica observacional cujo conteúdo seja imediato, “dado de uma vez por todas ”, aos moldes do empirismo clássico onde a evidência dos sentidos era inquestionável. Ao contrário, a base empírica deve ter o caráter disposicional de falseabilidade, ou seja, ela é sempre passível de revisão como qualquer outra teoria ou hipótese.
De acordo com o visto acima, Popper afirma que a tese empirista da possibilidade de derivação de teorias a partir de enunciados observacionais é logicamente falsa. Porém, a crítica popperiana vai mais longe e pretende mostrar, por meio de outros argumentos, que a tese empirista, intuitiva e historicamente, não se sustenta.
Intuitivamente é possível chegar à conclusão, por exemplo, que uma teoria como a mecânica newtoniana não poderia ter sido derivada de meras observações. As predições da teoria de Newton são marcadas pela exatidão e pela precisão, enquanto as observações (quaisquer que sejam) são sempre inexatas.
É insustentável a tese segundo a qual seria possível de observações inexatas derivar predições precisas. Além disso, as observações são feitas sob condições especiais e numa situação específica, enquanto a teoria pretende ser aplicada em todas as possíveis circunstâncias.
Todavia, o mais importante é o fato de que a teoria newtoniana trata de alguns objetos abstratos que não são observáveis. As forças, embora sejam as entidades mais importantes para a dinâmica de Newton, não podem ser observadas. É possível medir a aceleração da queda de um corpo e, assim, a ação da força gravitacional. Porém, nessa operação supomos como dada a verdade da dinâmica newtoniana e a existência de entidades abstratas e diretamente inobserváveis como as forças.
Da mesma forma, segundo Popper, verifica-se que, historicamente, as teorias não derivam de observações. Tomando como exemplo os principais antecessores da teoria newtoniana, Nicolau Copérnico, e Johannes Kepler, Popper mostra como idéias de fundo metafísico e religioso, e não a observação, desempenharam um papel determinante na criação de teorias científicas.
Copérnico não chegou à idéia de substituir a Terra pelo Sol como o centro do universo através de observações, mas sim através de teses místico-filosóficas de origens platônicas e neoplatônicas. Na República, Platão dá ao Sol, no domínio das coisas visíveis, o lugar privilegiado análogo àquele da idéia de Bem no mundo das Idéias.
Assim, Copérnico, embebido dessas idéias do neoplatonismo, achou que o lugar do Sol no universo não poderia ser girar em torno da Terra, mas, ao contrário, deveria caber ao Sol o lugar de ponto fixo em torno do qual girariam todos os planetas. Entretanto, Copérnico não foi dogmático acerca dessas idéias simplesmente as afirmando sem nenhum amparo observacional. À luz dessa sua teoria, predições foram derivadas e observações foram feitas para testar a teoria.
Vê-se que a postura crítica científica está justamente no teste das predições derivadas da teoria, não importando a origem da mesma. Johannes Kepler era um copernicano influenciado pelas idéias platônicas e pitagóricas. Empenhado na mística busca pela lei aritmética em que se basearia a estrutura do mundo, Kepler sustentava a idéia de que os corpos celestes descreviam uma órbita perfeitamente circular e de velocidade uniforme em torno do Sol.
Todavia, ao comparar sua teoria com as observações de seu mestre Tycho Brahe, constatou que sua teoria era falsa. O passo seguinte foi testar modelos alternativos até chegar no modelo da órbita elíptica. As predições feitas corroboraram sua nova teoria e Kepler abandonou de vez a crença em órbitas perfeitamente circulares.
Nos exemplos históricos dados depreende-se, ainda segundo Popper, uma estrutura comum, na qual delineia-se uma postura crítica que parte de idéias, crenças e teses que, ao invés de serem dogmaticamente afirmadas, são testadas e avaliadas por meio da corroboração ou do falseamento das predições que delas porventura se possam derivar.
A questão que permanece é a da procedência das teorias, uma vez que foi negada a possibilidade de derivá-las de observações. Para Popper, a questão de como uma nova teoria, hipótese ou idéia nasce em um homem (cientista ou não) é uma questão de investigação psicológica enquanto ciência empírica. Ela é irrelevante para uma análise lógica do conhecimento científico, onde o que está em foco é a justificação lógica (quid juris) dos enunciados e não questões de fato (quid facti).
Independentemente da origem da teoria, seu teste não é um empreendimento privado, mas público. Por seu próprio caráter de universalidade, a ciência procura estabelecer relações causais entre os fenômenos válidas para todo o tempo e espaço e para qualquer experimentador. É somente a exposição das teorias ao crivo crítico intersubjetivo que garante a objetividade da ciência.
Se, como exemplifica Popper, Robinson Crusoé conseguisse construir laboratórios em sua isolada ilha e descobrisse fatos que concordassem com a ciência hodierna, ainda assim o que fez não se poderia considerar ciência. Isto porque o empreendimento científico se dá na discussão entre os membros participantes de um campo de pesquisa.
A objetividade da ciência não é garantida por um fictício cientista ideal destituído de preconceitos e perfeitamente imparcial, mas sim pelo caráter público ou social de suas atividades. Qualquer cientista pode, em princípio, avaliar criticamente uma teoria em questão concordando ou discordando de seus resultados, métodos e conceitos, propondo mudanças e outras perspectivas possíveis.
Popper, dessa forma, tenta assegurar uma clara separação entre as idiossincrasias, as crenças pessoais e a psicologia que agem no processo ainda desconhecido da invenção de teorias por qualquer cientista e aquilo que realmente interessa à ciência e ao conhecimento e que deve ser submetido ao teste intersubjetivo. Importa ao filósofo austríaco, em suma, marcar a diferença entre o contexto psicológico da criação de teorias (quid facti) e o contexto lógico da justificação (quid juris) das teorias.
O terreno onde se dará a discussão dos problemas científicos e dos méritos das teorias será aquele da argumentação racional. Este tem normas próprias e independentes de avaliação que não fazem referência a contextos psicológicos e que tornam possível a crítica intersubjetiva.
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