terça-feira, 28 de abril de 2015

Dionísio Areopagita, teologia catafática e teologia apofática



''E a vós, caro Timóteo, vos aconselho que, no fervoroso exercício da contemplação mística, deixeis os sentidos e as atividades do intelecto e todas as coisas que os sentidos e o intelecto podem perceber, e todas as coisas deste mundo de nulidades ou deste mundo do ser, e que, vosso entendimento em repouso, vos esforceis (tanto quanto puderdes) para vos unirdes com Ele a quem nem o ser e nem o entendimento podem conter. Pois, pela incessante e absoluta renúncia de si mesmo e de todas as coisas, deveis em pureza deixar de lado todas as coisas e serdes libertado de todas elas e, assim, deveis vos elevar ao Raio daquela Escuridão divina a qual excede toda existência.''

DIONÍSIO AREOPAGITA, Teologia Mística, I

“Ele não está contido no Ser, mas o Ser está contido Nele”

DIONÍSIO AREOPAGITA, Os Nomes Divinos, V, 8

''Alguns homens, porém, aderiram a ele e abraçaram a fé. Entre esses achava-se Dionísio, o Areopagita (…).''

Atos dos Apóstolos 17,34


Dionísio, o Areopagita, é o nome de um filósofo grego convertido por Paulo no Areópago quando da pregação deste apóstolo em Atenas. Nada se sabe com certeza de sua vida após a conversão, mas a ele são atribuídas diversas obras como Os Nomes Divinos, A Teologia Mística, A Hierarquia Celeste, A Hierarquia Eclesiástica e algumas outras das quais somente conservamos o nome, como a Teologia Simbólica.

As obras de Dionísio, escritas em uma linguagem de origem neoplatônica, influenciaram fortemente a mística cristã posterior, tanto no Ocidente como no Oriente. A sua doutrina mais conhecida, contudo, é a distinção entre dois tipos de teologia: a catafática e a apofática.

A teologia catafática é aquela em que diz-se algo positivo sobre o que Deus é. Por exemplo, que Deus é simples, onipotente, onisciente e onipotente. Esse gênero teológico pode estar associado a uma ascensão ao divino a partir das perfeições das coisas sensíveis. É possível inferir algo de Deus a partir de Suas obras, como por exemplo que Ele existe e é imutável.

Há também, obviamente, aquilo que as próprias Escrituras dizem acerca de Deus. Ele é descrito como um ser que caminha no Jardim do Éden, que possui uma mão poderosa e que o mundo é o escabelo de Seus pés. Desde cedo, os Padres da Igreja souberam ver nessas expressões somente um auxílio metafórico e antropomórfico às mentes simples dos fiéis incapazes de conceber a grandeza divina.

As mesmas Escrituras afirmam de Deus que Ele é espírito, que Nele não há sombra de mudança ou variação, que é amor, misericórdia e regente do mundo. Tais atributos estão mais distantes do antropomorfismo um tanto ingênuo de que se serve o texto sagrado para ensinar os homens simples acerca da imensidão divina.

Não obstante, segundo Dionísio, sabemos que Deus está para além de qualquer ser, conceito ou concepção humanas. Além mesmo daquelas expressões empregadas pelas Escrituras. Daí que, na realidade, nada do que se diz sobre Deus é estritamente adequado.

Dizer que Deus é matéria é obviamente errôneo. Afirmar que Deus é espírito é mais certo que afirmar que Deus é material. Não obstante, mesmo "espírito" é uma expressão inadequada e não cabe como descrição do que Deus é. Nem mesmo a mais sublime palavra do vocabulário humano poderia dar conta do que Ele é.

Por essa razão, Dionísio afirma, a melhor linguagem seria a da teologia apofática, aquela na qual nada dizemos de positivo sobre Deus, apenas negamos a adequação de qualquer conceito ou atributo derivado das criaturas.

Nas palavras de Dionísio:

''Em certo sentido Ele possui todos os atributos positivos do universo (sendo a causa universal), embora em um sentido estrito Ele não os possua, pois Ele os transcende a todos, de modo que não há contradição entre afirmar e negar que Ele os possui na medida em que Ele precede e ultrapassa toda privação, estando para além de toda distinção positiva ou negativa.''

Assim, a teologia apofática afirma a perfeição para negar a imperfeição e nega a perfeição para não afirmar a imperfeição. Isto é, atribui-se a Deus toda e qualquer perfeição, pois em Deus não reside nenhuma imperfeição. Mas, ao mesmo tempo, retira-se Dele todo e qualquer atributo, pois toda a perfeição que existe neste mundo traz consigo a marca da imperfeição e da limitação. 

Note-se que essa negação não é uma negação de ausência, como quando se diz de um animal que ele é irracional. Ser irracional significa a ausência da capacidade de raciocínio. Afirma-se usualmente que Deus é racional. Sua racionalidade, contudo, não tem medida de comparação com a humana, que procede a partir de conceitos, juízos e encadeamentos de juízos com o fim de derivar logicamente conclusões.

Não é, portanto, por falta, mas por uma superabundância acima de toda medida que Deus não pode ser descrito adequadamente como racional. O mesmo vale para qualquer outro atributo positivo de que a teologia catafática faz uso para falar de Deus. Do ponto de vista da teologia apofática, nem sequer pode ser dito com justiça que Deus existe.

Tudo o que há tem uma essência, aquilo que define o que uma coisa é. Em outros termos, a essência é a natureza ou o ser de um ente qualquer. A essência é uma delimitação, diz o que a coisa é e, por conseguinte, diz por exclusão o que ela não é. Tudo o que é definido é limitado. Se Deus é a origem de todo ser, não é possível que seja limitado e definível.

Para Dionísio, então, Deus é a realidade última supraessencial, para além de todo e qualquer conceito, definição ou essência. A linguagem não O pode abarcar. Tudo o que há de perfeição é um efeito de Deus, mas só conhecemos esses efeitos, nunca a essência da causa divina.

Dionísio afirma em Os Nomes Divinos, II,7:

"Todas as coisas divinas, mesmo aquelas que são reveladas a nós, são conhecidas somente por suas Comunicações. Sua natureza última, a qual elas possuem em seu ser original, está para além da mente, de todo Ser e do conhecimento. Por exemplo, se chamamos o Místério Supraessencial pelo nome 'Deus', 'Vida', 'Ser', 'Luz' ou 'Palavra', concebemos somente os poderes que descem de lá conferindo-nos Divindade, Ser, Vida ou sabedoria, enquanto tentamos apreender aquele Mistério em si mesmo pondo de lado todas as atividades de nossa mente, uma vez que não contemplamos nenhuma Deificação, Vida ou Ser que se assemelhe à Causa absolutamente transcendente de todas as coisas.''

Dionísio assevera que a teologia apofática não pode ser concebida como um mero artifício retórico ou como uma simples tese de teologia especulativa e sim como o resultado de uma experiência do divino na união mística. Longe de ser somente um assunto filosófico, o apofatismo seria uma realidade para a qual apontam aqueles que uniram-se misticamente a Deus:

''E mentes inclinadas ao divino, entrando angelicamente (na medida de seus poderes) em tais estados de união e sendo deificadas e unidas, através da cessação de suas atividades naturais, na Luz que ultrapassa a Deidade, não encontram método mais adequado para celebrar seus louvores do que negar-Lhe toda forma e atributo. Pois por uma iluminação verdadeira e sobrenatural proveniente de sua abençoada união, elas aprendem que Ela é a Causa de todas as coisas e que, contudo, em si mesma é nada, porque supraessencialmente transcende-as todas. Assim, com relação à Supraessência da Divindade Suprema não é permitido a qualquer amante daquela Verdade acima de toda verdade celebrá-la como Razão, Poder, Mente,Vida ou Ser, mas como o que ultrapassa completamente toda condição, movimento, vida, imaginação, conjectura, nome, discurso, pensamento, concepção, ser, repouso, união, limite, infinitude e tudo o que existe.'' (Os Nomes Divinos, I, 5)

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sexta-feira, 24 de abril de 2015

Julien Sorel, Raskolnikov e o drama da pretensão



"Quando Bonaparte deu que falar de si, a França tinha medo de ser invadida; o mérito militar era necessário e estava na moda. Hoje, a gente vê pares de quarenta anos com 100.000 francos de vencimentos, três vezes mais do que o percebiam os famosos generais de divisão de Napoleão. E ainda têm quem se dobre ante eles. Vejam esse juiz de paz, tão sensato, tão honesto até agora, tão velho, desonrando-se por temor de desagradar a um jovem vigário de trinta anos! Preciso ser padre."

JULIEN SOREL, em O Vermelho e o Negro, de STENDHAL


Há diversas semelhanças entre Julien Sorel e Rodion Raskolnikov: a consciência de sua superioridade sobre os demais, o orgulho ferido pelas condições adversas a que foram submetidos pelo destino, a ambição de galgar os degraus da elevação social, a disposição de utilizar de meios imorais para alcançar seus objetivos, a coragem e uma certa nobreza de caráter e a adoração pela figura de Napoleão.

O quadro que se apresenta é o de jovens angustiados e aflitos pelas limitações de seu meio e que percebem a um tempo a mediocridade daqueles que se encontram nas altas posições sociais e a evidente superioridade de suas almas e de seus intelectos. 

Quão grande é o drama de ver-se repleto de capacidades e talentos e constatar, ao mesmo tempo, que estes poderão muito bem jamais florescer como deveriam graças à precariedade do meio e à mediocridade daqueles que dominam o teatro do mundo! Talvez seja a consciência desse drama que pode facilmente ser divisado por todos que tornam quase inevitáveis ao leitor a simpatia e, porque não?, uma certa admiração pelas figuras de Sorel e de Raskolnikov.

Sim, eles são criminosos e seus objetivos não são afinal os mais nobres na escala qualitativa dos bens da vida humana. Mas um olhar mais profundo e mais complacente consegue perceber que seus atos são um protesto menos contra a estrutura de desigualdade social do que uma tentativa desesperada de resguardar e de realizar a justiça de uma ordenação hierárquica dos talentos.

O escândalo não é exatamente que haja diferenças sociais, mas que estas estejam baseadas não no mérito e no talento e sim no mero nascimento ou no dinheiro. É contra a preeminência dos medíocres que ambos se erguem.

Napoleão surge justamente como a figura simbólica do talento que vence a despeito das resistências das condições concretas da vida e da sociedade. Nele o valor se afirma e vence, fazendo curvarem-se as veneráveis mediocridades que até então dominavam e governavam o mundo.

Ele sonha com batalhas e com a rápida ascensão na hierarquia militar que, segundo pensa, reconheceria e premiaria o seu valor e a sua bravura. Não obstante, o caminho de Sorel, ainda que iluminado por Napoleão, não se encontra nas fileiras dos filhos de Ares. O que não o impede de enxergar a si mesmo como um brilhante comandante militar demonstrando sua inteligência tática nas batalhas em que se envolve. Só que seu front não é Austerlitz e sim os enfadonhos salões da dita "sociedade".

Por conseguinte, tampouco seu caminho é o da ação violenta direta contra o explorador, como o de Raskolnikov. A dissimulação e a ascensão dentro das brechas da própria estrutura social constituem seu método. Em uma época - a Restauração que se seguiu ao fim do império napoleônico - na qual um rei curva-se piedosamente diante de um simples bispo, o modo mais certo de triunfar socialmente é tornar-se membro dessa confraria que dobra os joelhos até de monarcas.

Então é necessário a Sorel a dissimulação de seus verdadeiros sentimentos e convicções. Ele esconde sua admiração por Napoleão, Rousseau e Voltaire, exibe Joseph de Maistre e aprende de cor as Escrituras em Latim. Em suma, finge a cândida piedade de um camponês devoto que aspira às ordens sacerdotais. 

Sua prodigiosa memória e sua aguda inteligência lhe servem para ganhar as graças de um velho cura que, contudo, é experimentado o suficiente para entrever a falsidade e a ambição daquele talentoso rapaz filho de carpinteiro. Com o hábito religioso, consegue adentrar no seio da pequena nobreza provinciana de sua cidade na qualidade de um piedoso seminarista feito tutor dos filhos do prefeito, Monsieur De Rênal.

Sorel engana, ilude, decerto. É um radical em meio às frivolidades e provincianismos que imperam na casa de seu empregador, mas sua beleza e seu fascínio acabam ganhando o amor sincero da esposa ingênua e inexperiente deste, Mme. De Rênal. Mas ele a ama? 

O traço dominante de seu caráter é o orgulho. Teme somente ser humilhado pelos que estão acima dele, odeia-os e despreza-os interiormente. Sua intrepidez e inexperiência quase o lançam na desgraça pública de um escândalo de adultério. A conquista do amor de Mme. De Rênal é encarada por ele como uma grande vitória militar.

As desconfianças de Monsieur De Rênal crescem e, por um golpe do destino, após um curto período no seminário, Sorel é enviado à casa da grande nobreza parisiense. Enfim, ele se encontra no centro do mundo. Torna-se secretário do velho aristocrata Monsieur Marquis De La Mole que, ironicamente, perdera tudo e fora exilado durante a Revolução e os anos napoleônicos.

O marquês afeiçoa-se por Julien, encarrega-o do cuidado de sua biblioteca e de boa parte de seus negócios e até mesmo confia-lhe uma missão secreta em meio à uma conspiração anti-jacobina. O jovem, apesar de seus esforços, não brilha no salão dos De La Mole e chega mesmo a angariar a antipatia de muitos dos aristocratas que ali frequentam.

Curiosamente, aos poucos Sorel desperta a atenção de Mathilde, filha do bom marquês. Inteligente, ácida e de caráter volúvel, a Mlle. De La Mole entedia-se até a morte com os salões elegantes e, principalmente, com seus insossos pretendentes aristocráticos. Superando seu desprezo inicial, ela percebe o vigor e a natureza orgulhosa de Julien. Isso a agrada e a faz conceder ao empregado deferências que contrariam as práticas e os costumes de sua classe.

O encontro dessas almas é um dos pontos mais interessantes da obra de Stendhal. Sedenta como Sorel por aventuras e por heroísmos, mas com uma imaginação alimentada por histórias românticas de grandes amantes de tempos passados, Mathilde sentia-se especialmente ligada ao destino de um seu ancestral do século XVI, Boniface De La Mole, que fora decapitado, sendo sua cabeça reivindicada e enterrada por sua amante, a rainha Margarida de Navarra.

De certo modo, ambos são insatisfeitos com o mundo que se lhes apresentava. Sorel por se achar melhor do que a posição social a que o destino e a sociedade lhe concederam. Mathilde por considerar aquele mundo destituído do heroísmo e do valor dos gloriosos tempos passados. Para ele o herói é Napoleão, aquele que, vindo das classes baixas, se eleva pelo mérito e pela força às alturas do poder. Para ela, a heroína é uma rainha que não se furta a prestar as últimas homenagens a seu bravo amante.

Não leva muito tempo para tornarem-se íntimos. Porém, o orgulho de ambos torna sua relação amorosa uma experiência dolorosa e repleta de crueldades. Julien, por um lado, orgulhoso, encara o amor de Mathilde inicialmente como uma vitória do plebeu revoltado que é sobre a aristocracia que ele odeia e despreza. Ao mesmo tempo, desconfia que está sendo vítima de uma conspiração para desmoralizá-lo e humilhá-lo. Por fim, convence-se da sinceridade da bela jovem aristocrata e de que também a ama.

Mathilde, por seu turno, ama Julien, mas ressente-se desse sentimento que a seus olhos a rebaixa frente a um subalterno e maltrata e despreza seu amante toda vez que este demonstra alguma fraqueza. Convence-se de que não o ama e dele se afasta, fazendo-o amargar dias de extremos desespero e infelicidade. Em seguida, enche-o de promessas de sacrifício amoroso somente para depois arrepender-se de suas palavras e desprezar o amante com palavras ferinas e humilhantes.

Afinal, Julien não é um Boniface De La Mole e sim o reles secretário plebeu de seu pai. Em desespero, o inexperiente Julien procura a ajuda de um nobre russo que o aconselha a cortejar por meio de cartas amorosas uma dama da alta sociedade que frequenta o salão da mãe de Mathilde.

Nada mais fácil para fazer nascer ou reascender o amor do que o ciúme e a perspectiva da perda do(a) pretendente para um(a) rival. Tema que irá se repetir no ciclo de Em Busca do Tempo Perdido, de  Marcel Proust, o amor que nasce do ciúme e do medo da perda sela de vez o destino do amante. A jovem Mathilde entrega-se a Julien e engravida.

O escândalo parece inevitável. Movida pelo senso do dever - ou pelo desejo de criar de vez um desfecho dramático como os das histórias que habitam sua imaginação? -, Mathilde conta a seu pai sobre seu romance com Julien e informa-o de seu estado interessante. Pede-lhe modesta pensão para viver com o marido, afastada da azáfama da sociedade.

Surpreendentemente, o marquês concede a ambos uma pensão substancial, faz de Julien tenente de um regimento de hussardos, doa-lhe terras e ainda consegue que um outro nobre reconheça o marido de sua filha como seu "filho ilegítimo". Com um só golpe, o "general" Sorel logrou as mais impressionantes vitórias: dobrara pelo amor uma jovem e linda aristocrata, tinha um herdeiro, tornara-se finalmente militar e um nobre senhor de terras.

"A arrogância precede a ruína e a altivez, a queda" sentencia o livro dos Provérbios de Salomão.  O passado do jovem ambicioso retorna para cobrar-lhe seu preço. A felicidade de Julien e de Mathilde é desfeita quando o marquês recebe uma carta de Mme. De Rênal - instigada por um clérigo que era seu confessor e ambicionava ser seu amante - na qual dizia explicitamente que Julien era somente um maquiavélico alpinista social que se introduzia nos bons lares da sociedade como um jovem devoto somente para depois seduzir a dona da casa a fim de tomar para si o que era dela e dos seus.

Transtornado, o impulsivo Sorel abandona Mathilde e atira na Mme. De Rênal durante a missa celebrada por seu confessor e diretor espiritual. Fizera aquilo por vingança contra quem destruíra seu sonhos de grandeza ou por ciúme de um possível amante de Mme. De Rênal? Aqui a ambiguidade dos motivos de Julien torna-se mais explícita.

E essa ambiguidade cresce quando o leitor questiona-se sobre a verdadeira natureza da relação do jovem com Mathilde. Não será seu romance com a volúvel aristocrata não era uma repetição do amor que sentiu pela Mme. De Rênal, inclusive nos detalhes marcantes dos passeios nos jardins e da subida de escada ao quarto da dama na calada da noite?

Seja como for, uma vez preso, Julian convence-se de que ama realmente Mme. De Rênal e não Mathilde. Alegra-se quando descobre que a primeira não morreu e aborrece-se com as visitas e os esforços da última para salvá-lo da pena capital. Não busca safar-se, assume sua culpa e a premeditação de seu crime.

Durante o julgamento que mais parece um evento social ou um espetáculo, Julien reafirma sua admissão da culpa e da premeditação do crime discursando diante da multidão que acompanha o julgamento. Afirma que muitos de seus juízes cometeram torpezas tão ou mais graves que a sua para chegar onde estão e que seu crime foi querer abandonar sua condição precária e ascender ao mundo da "sociedade".

É condenado e guilhotinado. Mathilde, dando curso à sua fantasia romântica, reivindica sua cabeça e enterra seu corpo, tal qual Margarida de Navarra fez com seu ancestral Boniface De La Mole. Impactada pela morte de Julien, Mme. De Rênal morre de amor pouco tempo depois do jovem.

Julien Sorel e Rodion Raskolnikov representam personagens de revolta contra as condições materiais que impedem a realização plena de suas capacidades e talentos. Mas também são personagens de ambição, de orgulho e de pretensão. Dotados de evidentes qualidades, ambos, contudo, têm de si mesmos uma imagem exaltada, pretendidamente à altura de seu ídolo comum, Napoleão. Resta saber se suas qualidades de fato ombreiam-se com as suas pretensões.

Cumpre notar que tais personagens de Stendhal e de Dostoievski, embora separados temporalmente, partilham uma hierarquia de valores comum na qual o sucesso no mundo, a fama, a riqueza, o reconhecimento são os fins últimos que os movem. Em uma palavra, são mundanos. Suas almas são consumidas pelo desejo e pelo conflito entre este e os obstáculos que se antepõem à sua realização.

Seria possível questionar, inclusive, se a ambição que os corrói nasce da consciência de sua superioridade ou se esta está, ao contrário, a serviço daquela. "Queremos e ambicionamos, logo temos direito à posse", pensam. E o fundamento dessa pretensão se apresentaria ad hoc como um direito natural do homem superior: "porque somos como Napoleão".

Se é certo que as condições materiais adversas podem podar o florescimento de um homem de gênio, não é certo que todos os submetidos a essas condições seriam homens de gênio se as condições fossem modificadas a seu favor. Sorel e Raskolnikov pensam que se encontram na situação de um gênio impedido de desenvolver-se por obra de uma conspiração das circunstancias.

Não é possível ser gênio antes de efetivamente sê-lo. Obviamente, a grandeza exige certo "capital", certa potência, por assim dizer, natural. No entanto, o homem grande só o é porque torna-se grande, constrói-se na imposição voluntária da unidade de uma regra ditada pela razão à multiplicidade dos atos concretos. A pretensão é justamente a segurança da posse de algo anterior à tensão que irá constituí-la concretamente.

Em suma, esses jovens não têm efetivamente nada, mas crêem-se desde já merecedores de condições que não obstaculizem a manifestação de seus talentos. No fundo, são presas de um idealismo das condições."Mostraríamos a grandeza que possuímos se as condições fossem ideais". O problema é que elas nunca são. Aliás, a grandeza jamais é abstrata.

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quarta-feira, 22 de abril de 2015

"District 9", "Elysium", "Chappie", transhumanismo e a superação do homem



O espectador que assiste atentamente aos filmes District 9, Elysium e Chappie do sulafricano Neill Blomkamp facilmente percebe que há em todos as três obras dois temas recorrentes: a humanidade e a transformação. 

O primeiro deles é o clássico questionamento acerca do que nos faz humanos, afinal. Qual a diferença específica que nos distingue realmente de todo e qualquer outro ser e que, em tese, nos eleva ontologicamente acima deles por uma dignidade intrínseca. Nada mais antigo e nada mais explorado tanto nas artes quanto na filosofia. 

Ocorre que, se Blomkamp se limitasse a esse questionamento, seus filmes não teriam feito mais do que reencenar um questionamento filosófico que já foi trabalhado com maior profundidade em inúmeras obras cinematográficas clássicas.

Nesse ponto entra o segundo tema recorrente: a transformação. Se algo é evidente nas três películas é que ser humano não é suficiente. Ou melhor, a humanidade há de ser ultrapassada. Melhor ainda, ela tem que ser ultrapassada.

Em District 9, o tema é ventilado ainda de forma tímida. O protagonista, Wikus van der Merwe, já é um ser um tanto deslocado no meio social em que vive e reflete em si mesmo a exclusão em que vivem os alienígenas em uma Johanesburgo distópica. É casado com uma bela mulher, mas é hostilizado por seu sogro que o considerado inadequado para sua filha.

Ainda que relutante, ele toma parte da repressão que o sistema impõe aos alienígenas, sarcasticamente comparados a insetos. Sua transformação, que remete àquela de A Metamorfose de Kafka, é seguida de todas as consequências típicas do afastamento gradativo da norma vigente: exclusão, preconceito, perseguição, etc. 

Nada de muito novo em uma narrativa de "patinho feio". O ponto interessante encontra-se em uma leve sugestão que pode passar desapercebida no meio de um tradicional conto moral de percepção da realidade humana do outro: os alienígenas, os excluídos, não são simplesmente humanos, mas são mais que os humanos, pois possuem o segredo tecnológico superior de uma interação completa entre organismo e máquina.

Na verdade, mais que a transformação de Wikus em um "inseto", é sua transformação em um "homem-máquina" que é o centro do filme. Não é à toa que nesse momento ele se torna um herói que derrota as forças militares que pretendem usar o conhecimento alienígena para fins puramente bélicos.

Note-se que os militares - ou figuras de aparência e mentalidade militares - são os grandes vilões dos três filmes. E essas figuras sombrias estão sempre associadas ao poder, seja político ou econômico. 

O tema que é apenas sugerido em District 9 é claramente enunciado em Elysium, a propaganda de uma revolução. A estrutura clássica está toda lá: divisão de classes, injustiça, insensibilidade das classes privilegiadas, sublevação das classes oprimidas e uma esperança messiânica.

Em um futuro triste, vivem na Terra todos aqueles que não têm condições de morar em Elysium, uma estação espacial onde os ricos vivem nababesca e tranquilamente, a salvo de todos os perigos e carências que assolam os moradores do planeta azul. 

Na perspectiva do filme, qual o maior problema da Terra? A falta de cuidados e técnicas médicas. Em outros termos, tudo o que os terrestres fazem e pensam se dirige a um único objetivo: sair da Terra com o fim de alcançar o paraíso médico. A saúde corporal e a longevidade são os valores imperantes. Da garotinha com câncer até o protagonista/messias doente por exposição à radiação, tudo se passa em torno da busca pela saúde.

O protagonista é Max, o tradicional encrenqueiro incompreendido, de bom coração e com coragem de empreendedor que caracteriza o herói norte-americano. É encrenqueiro porque vê mais longe que todos os outros e tem disposição para realizar seus sonhos.

Max (máximo) tem um sonho impossível: chegar a Elysium. Quando ele fica doente por culpa da ganância e insensibilidade dos homens da Terra, a sua ida deixa de ser um mero sonho e transforma-se em um imperativo. Ele morrerá se não chegar lá para usufruir das benesses médicas da estação que, como o nome mitológico sugere, é para poucos.

Como ele alcançará tal feito? Tornando-se mais que um homem. Um quase-robô. Em uma palavra: transhumano. Eis a promessa: o herói só pode sobreviver se se tornar um transhumano. Max tem acoplado a seu corpo um exoesqueleto robótico que lhe dá força e resistência extrahumanas.

Por uma série de reviravoltas políticas protagonizadas pela cruel chefe da estação, Max se torna o portador da possibilidade de que todos se tornem cidadãos de Elysium. Em outros termos, o transhumano tem a chave do paraíso médico da saúde e da longevidade.

E mais, sua vida tem esse propósito, já que uma freira prevê seu futuro grandioso. O messias é anunciado por uma religiosa cristã, como João Batista anunciou aquele que viria para salvar o mundo e que, ao mesmo tempo, aboliria a lei antiga.

A estrutura é clara: ele é o messias prometido, uma imagem do Cristo. Ele vem de uma região pobre, sem perspectivas e ninguém vê nenhum valor nele - "pode vir algo de bom de Nazaré?". Vive entre os necessitados e os bandidos. 

Como o Cristo, Max instaurará uma nova economia, uma nova aliança, o Reino dos Céus. Será pedra de tropeço para muitos. Mas, ao mesmo tempo, pretende-se que ele seja a realização de tudo aquilo que a ordem anterior tinha de verdadeiro.

O transhumanismo é o novo messias. Tornado meio-máquina, Max pode derrotar seus inimigos, mesmo aqueles que tentarão usurpar esse novo mundo, como Kruger, agente da velha ordem que toma para si um exoesqueleto como o de Max.

Kruger representa os perigos da má utilização dessas novas tecnologias. Mas ele é indigno, é alguém que já é pervertido e louco mesmo antes de se apossar da armadura metálica. Ou seja, o perigo não é vem do transhumanismo, vem daqueles que dele podem se utilizar seguindo idéias da velha ordem. 

Mais uma vez, os militares e seus aliados nos poderes constituídos são a ameaça imediata ao paraíso prometido. Felizmente, Max elimina Kruger - que, antes, havia matado a fria diretora da estação - e assim afasta o perigo. 

Como o messias cristão, ele dá sua vida livremente em holocausto para que todos possam ser cidadãos de Elysium. O Reino dos Céus é tornado acessível a todos. Ele cumpre seu destino e a revolução está completa. A velha ordem caiu e a era de harmonia, saúde e longevidade se inicia.

O transhumanismo vence o homem antigo. Novos céus e nova terra, literalmente. O Reino é instalado aqui mesmo, no imanente. O único detalhe é que Elysium, pairando sobre a Terra, tem a forma de um pentagrama. Simbólico.

Não há como não notar que o tema da transformação reaparece em Elysium muito mais forte e explícito do que em District 9. O homem-máquina tem ali um papel messiânico evidente. É a tecnologia que trará ao homem a realização das promessas que a teologia e a religião não parecem capazes de cumprir: um novo corpo "ressuscitado" e o retorno ao paraíso perdido por Adão.

As consequências funestas da Queda são reparadas não pela Encarnação do Verbo de Deus no mundo, mas pela ação da tecnologia. Algo que é nossa criação pode no final nos salvar de nossa própria fragilidade humana. Eis o cerne de Chappie. No filme estão presentes de novo os mesmos elementos tradicionais do conto do "patinho feio": a inocência do simpático robô, a exclusão, o preconceito, etc. 

Está presente também o militar que se aproveita da tecnologia para fazer o mal. A diferença é que, dessa vez, ele é um cristão fanático. Se antes o cristianismo anunciava a vinda do messias cibernético de Elysium na figura de uma freira, desta feita ele se encontra já entre os inimigos da promessa transhumanista.

Max fôra criado por uma freira, isto é, era como o filho de uma virgem. Chappie tem um Criador, o cientista nerd idealista, mas tem pais "adotivos", o casal de excluídos/bandidos. Ambos são atrapalhados e, no fundo, simpáticos e ingênuos. O messias nasce entre os excluídos e marginalizados.

Chappie, assim como os outros robôs de sua espécie, foi criado para auxiliar ou substituir os humanos nas atividades policiais. O emprego desses autômatos tem como consequência feliz um decréscimo significativo dos crimes em Johanesburgo. Tudo indica que o uso de robôs seja o caminho para a garantia da segurança dos cidadãos.

Acontece que Vincent Moore, o militar cristão fanático - que trabalha na mesma empresa que Deon, o criador dos robôs-policiais - acha que o uso de robôs deve ser substituído pelo emprego de robôs controlados por humanos. Em outros termos, ele é ainda apegado à velha humanidade, embora aceite a interação homem-máquina até certo ponto.

O Criador, como Chappie denomina Deon, é como um demiurgo gnóstico. É um ser limitado que insere a consciência em um ente material já defeituoso e fadado à morte. A carcaça da qual Chappie é feito é defeituosa, acabará por conduzí-lo à morte e precisa ser urgentemente substituída.

O tema da transformação é aqui elevado a um novo patamar. Não só o homem deve se tornar um homem-máquina, mas a chave para a mais radical transformação da natureza humana, a superação da mortalidade, está nas mãos da tecnologia. Especificamente, nas mãos de uma criação humana, Chappie.

É ele que, tendo uma inteligência muito maior que a humana, pode descobrir o segredo de como transferir uma consciência à uma máquina e assim conceder aos homens o dom da imortalidade prometido pelas religiões. Não há segredo que uma máquina não possa decifrar. Tudo está a seu alcance, mesmo a imortalidade. 

Chappie derrota o mostro tecnológico controlado por Moore em um confronto que remete o combate entre Robocop e ED-209, mas que curiosamente inverte os papéis. Ao invés do homem na máquina vencer o robô é este que vence aquele. E, ainda mais curioso, Chappie perdoa Moore, mostrando que a máquina consegue entender melhor que o cristão o conceito mais característico do cristianismo.

O final do filme anuncia a redenção do Criador pelas mãos da criatura. Chappie transfere a consciência de Deon para um robô. A mensagem, de novo, é clara: a tecnologia, produto do homem limitado, pode remir seu mestre de suas limitações e alçá-lo à imortalidade. Realiza-se desse modo a mais alta promessa transhumanista.

Conscientemente ou não, os três filmes de Neill Blomkamp apresentam-se como uma narrativa da gradual aceitação de um suposto destino transhumanista do homem. De início, poucos são os que ouvem e acreditam na mensagem e, por isso, há incompreensão, exclusão, resistências e preconceitos de diversas ordens. 

Há os que negam esse destino por apego a filosofias ou religiões caducas e há os que só pensam nas vantagens bélicas ou econômicas.Todavia, existem os heróis que aceitam e buscam esse futuro promissor e fascinante no qual o homem é superado pelo homem-máquina, pelo transhumano imortal e onipotente. 

A questão do que é o homem serve nos filmes como gancho para a questão realmente central da transformação do homem em algo que o supera completamente. Blomkamp aparentemente está menos preocupado em dizer o que é o homem do que em transformá-lo. 


sábado, 11 de abril de 2015

Mircea Eliade, tempo sagrado e História


                               O jovem Mircea Eliade em sua estada na Índia.

''É somente nas sociedades ocidentais modernas que o homem arreligioso floresceu plenamente. O homem moderno arreligioso assume uma nova situação existencial: ele se reconhece unicamente como sujeito e agente da História e recusa todo apelo à transcendência. Dito de outra maneira, ele não aceita nenhum modelo de humanidade de fora da condição humana, tal como ela se deixa decifrar nas diversas situações históricas. O homem se faz a si mesmo e somente se realiza plenamente na medida em que se dessacraliza e dessacraliza o mundo. O sagrado é o obstáculo por excelência diante de sua liberdade. Ele não será ele mesmo a não ser no momento em que for radicalmente desmistificado. Não será verdadeiramente livre a não ser no momento em que tiver matado o último deus.''

MIRCEA ELIADE, Le Sacré et le Profane, p.172


Como visto no post anterior, o aspecto central da ontologia arcaica ou religiosa se encontra na abolição do tempo por meio da imitação dos arquétipos e da repetição de gestos paradigmáticos.

Um sacrifício, por exemplo, não somente repete com exatidão o sacrifício original que se deu ab origine e que foi revelado pelos deuses, mas também reatualiza aquele mesmo momento mítico primordial.

Eis o paradoxo do rito. É dado aqui e agora, mas abole o tempo na medida em que torna presente de novo o ''tempo intemporal'' do mundo sagrado. No sacrifício o homem se torna partícipe do sacrifício original, como o de Purusha, no Rig Veda. Ele está presente à formação do mundo.

A abolição do tempo pelos ritos paradigmáticos revela uma tensão fundamental entre o mito e a História. Se o mito é o relato do mundo sagrado e atemporal e sua recitação suspende o fluxo do tempo trazendo o recitador àquele mundo divino, então a oposto do mito é a história, a sequência indefinida de acontecimentos singulares e irrepetíveis que não aponta para nada além de si mesma.

O Mito do Eterno Retorno é uma das respostas a essa tensão fundamental. Na maioria das religiões antigas, o tempo se apresentava sob uma forma cíclica. O universo nasce, dura e por fim é tragado por uma conflagração que faz tudo retornar ao amorfo, ao caótico.

Contudo, o fim de um universo é o início de outro e, logo após o caos, nasce um novo universo que passará pelo mesmo processo que deu fim ao anterior. Tal ciclo já se deu incontáveis vezes antes e se dará outras incontáveis vezes ainda. Em suma, não há História, uma sucessão indefinida de momentos singulares e irrepetíveis.

O mais conhecido ciclo cósmico é aquele dos Yugas hindus. Cada Yuga é uma era dentro do contínuo processo de afastamento da fonte original. São admitidos quatro grandes Yugas: Satya-Yuga, Treta-Yuga, Dvapara-Yuga e, por fim, Kali-Yuga. Há uma razão decrescente no ciclo dos Yugas que possui um aspecto qualitativo e um aspecto quantitativo.

No aspecto quantitativo, os Yugas têm uma duração temporal decrescente na qual o primeiro Yuga seria o quatro, o segundo Yuga seria o três, o terceiro Yuga seria o dois e o último Yuga seria o um. O estágio anterior é uma unidade mais longo que o posterior.

Qualitativamente, cada Yuga é uma sucessão decrescente de graus de observância do Dharma. O Satya-Yuga é a completude, a inteireza, a perfeição. Nele o Dharma é plena e naturalmente seguido. É a era de ouro, a época beatífica onde reinam a justiça, a felicidade, a opulência. O homem do Satya-Yuga encarna a norma cósmica e, por conseguinte, a lei moral.

No Treta-Yuga, os homens não seguem mais que três quartos do Dharma. O trabalho, o sofrimento e a morte são agora o apanágio do homem. O dever não é mais espontâneo e natural, mas tem de ser ensinado. Os modos próprios das varnas (castas) começam a se alterar.

No Dvapara-Yuga, somente a metade do Dharma permanece sendo seguido. As maldades e os vícios aumentam e a própria vida humana sofre um decréscimo em seus limites.

O Kali-Yuga, a era negra, é a mais curta das eras e a mais degradada. Somente um quarto do Dharma é seguido. É a era da desintegração, da discórdia e da disputa. O mal e a desordem imperam. A posse torna-se o único critério para o status social, a riqueza é a fonte das virtudes, a luxúria, os prazeres e as paixões convertem-se nos únicos desejos dos casados, a mentira e a falsidade são os únicos meios de sucesso, etc.

O único consolo do Kali-Yuga é a certeza de que ele marca o fim do ciclo de um Mahayuga e, por isso, prefigura um novo ciclo. O Mahayuga é o conjunto dos quatro yugas e, segundo algumas fontes, dura em torno de 12 mil anos e termina na pralaya, a dissolução completa. Há uma Mahapralaya, ao fim do milésimo Mahayuga. Mil Mahayugas perfazem um Kalpa e quatorze kalpas perfazem um Manvantara.

Cumpre ressaltar o caráter cíclico do tempo. Diante de cifras tão acachapantes, o sentimento é, a um tempo, de insignificância e de desejo de libertação. É por essa razão que as doutrinas hindus terão sempre um forte componente soteriológico, de libertação completa dos ciclos infindos.

A visão do tempo infinito, do ciclo sem fim das criações e das destruições dos universos – o mito do Eterno Retorno – é um instrumento de conhecimento e meio de libertação. Vistos sob a perspectiva do Grande Tempo, toda existência é precária, evanescente, ilusória. E não somente a vida humana, mas a própria História - com seus impérios e dinastias, suas revoluções e guerras – tornam-se efêmeros e vazios de realidade.

A existência no Tempo é ontologicamente uma inexistência, uma irrealidade. O mundo é ilusório justamente porque sua duração é limitada e, sob a perspectiva do Eterno Retorno, é como se não fosse. O mundo histórico dura somente o espaço de um instante e logo desaparece.

A saída, portanto, é buscar aquilo que está fora do tempo, o sagrado, o eterno, o ilimitado. Há dois caminhos para isso. O primeiro é Moksha, a libertação total da temporalidade a qual é o apanágio do jivan-mukta, o liberto em vida. E o outro é o caminho do Karma-Yoga apresentado por Krishna no Bhagavad Gîta, o cumprimento do Dharma sem atenção aos frutos da ação.

O mito do Tempo cíclico e infinito, ao desfazer as ilusões urdidas pelos ritmos menores do Tempo, isto é, pelo tempo histórico, revela a precariedade e, no limite, a irrealidade ontológica do universo e aponta para a libertação espiritual.

O mito do Eterno Retorno está inserido no conjunto dos mitos de renovação cíclica do mundo, como aqueles que embasam os ritos do Ano Novo. O sentido de tais mitos é o de que o mundo nasce e desaparece em um ritmo acelerado e que a cosmogonia é atualizada em todo rito de renovação.

Há uma outra solução para a tensão entre o tempo divino e o tempo histórico. A novidade dos monoteísmos é a concepção da revelação divina na História, ou seja, Deus se revela em momentos específicos, para pessoas e povos específicos em situações que não se repetirão. A hierofania não será mais dada em um tempo mítico, a-histórico, mas em um lugar e em um tempo determinados, localizados.

Em outros termos, a História, antes o locus do amorfo, do profano, do imanente, torna-se o locus privilegiado do sagrado, do transcendente. O destino coletivo e individual depende então de atos de manifestação divina únicos e irrepetíveis. Como a sarça ardente, a revelação de Deus a Moisés no Sinai e – o cume da História – a Encarnação do Verbo de Deus, Jesus Cristo.



Por essa razão, os acontecimentos históricos não são mais simples acidentes, expressões de uma dimensão profana, caótica e irreal que se opõe ao mundo sacro, ordenado e real da repetição ritualizada dos acontecimentos divinos dados no princípio. Ao contrário, os acontecimentos históricos podem ser hierofanias, manifestações da vontade divina, da aprovação ou desaprovação do comportamento do povo escolhido ou do fiel individual.

No cristianismo, é na História concreta que se dá a teofania perfeita que recapitula, fornece o sentido definitivo e justifica todas as hierofanias anteriores. O cristianismo esforça-se em salvar a História. Contudo, a História não é divinizada, pois ela será encerrada pelo eterno na escatologia final.

Embora sacralizem a História, os monoteísmos apresentam aspectos cíclicos, como o calendário litúrgico, as festas anuais, os ritos e cerimônias sempre repetidos. No cristianismo, essa repetição cíclica é explicitada no rito eucarístico que é um sacrifício onde o ser divino morre e assim renova e recria o mundo. "Eis que faço novas todas as coisas".

Seria possível então afirmar que o mundo dessacralizado é o mundo da História, o mundo no qual os dias não oferecem nenhuma porta ou saída para uma dimensão atemporal e transcendente. E, por conseguinte, o homem arreligioso é o homem da História.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Mircea Eliade, sagrado, tempo, espaço e ontologia



''Um historiador das religiões, quaisquer que sejam suas opiniões, considera, com efeito, que seu dever primordial é capturar o significado original de um fenômeno sagrado e interpretar a sua história.''

MIRCEA ELIADE, L'Épreuve du Labyrinthe, p.163

''O objetivo último de um historiador das religiões é compreender, e esclarecer para os outros, o comportamento do homo religiosus e seu universo mental.''

MIRCEA ELIADE, Le Sacré et le Profane, p.137

"O símbolo revela certos aspectos da realidade - os mais profundos - que desafiam qualquer outro meio de conhecimento"

MIRCEA ELIADE, Images et Symboles, p.


O fato primordial da História das Religiões, segundo o grande estudioso das religiões Mircea Eliade, é a existência universal daquilo que ele usou denominar de hierofania, isto é, a manifestação do sagrado. As hierofanias podem estar relacionadas a realidades tão comuns como uma pedra ou uma árvore ou a acontecimentos grandiosos, como a Encarnação e descida de Deus no mundo.

Seja qual for o objeto em que a hierofania acontece, ele torna-se outro sem jamais deixar de ser ele mesmo. Uma pedra sagrada ainda é pedra, embora manifeste algo para muito além dela mesma. Para o homem religioso - ao qual Eliade também chama de homem arcaico -, o Cosmos inteiro pode ser ocasião de hierofanias.

Contudo, o que é o sagrado? Segundo Eliade, a hierofania é a manifestação do poder, do Ser, em uma palavra, da realidade. O sagrado é a manifestação da realidade na sua forma mais própria, é uma saturação de Ser.

Por conseguinte, o profano, o não-sagrado, é aquilo que não é o real em si mesmo, é o deficitário de Ser, é, de certa forma, o não-Ser. Assim, para o homem religioso, viver no sagrado é propriamente viver na realidade.

Por causa da hierofania, o espaço do homem religioso não é um espaço homogêneo, contínuo e linear. Ao contrário, no espaço do homem religioso há rupturas e desníveis. Nele há o lugar sagrado. O lugar sagrado marca a hierofania e esta marca a revelação do eixo do mundo, o ponto fixo, aquilo que é realíssimo e que a tudo sustenta.

O ponto fixo é o lugar a partir do qual serão marcadas as direções e que, portanto, funda o próprio mundo. O que não é o lugar sagrado é, literalmente, informe, caótico, destituído da presença e do poder divinos. Por outro lado, para o profano o espaço é homogêneo e neutro e nenhuma diferença qualitativa se encontra entre seus diversos pontos.

O desejo do homem religioso é viver o mais que pode no real e no eficiente, isto é, no sagrado. Por essa razão, o mundo – o Cosmos - está onde há o sagrado e tudo o que está para além do mundo é o caos, o estrangeiro,o larvar, o inimigo.

A consagração de um lugar não é mais do que uma nova criação, um renascimento no qual o que estava fora do mundo é trazido para dentro de suas fronteiras. O local ou a cidade onde se dá a hierofania é sempre o centro do mundo. Não em um sentido geográfico, mas em no sentido qualitativo de Axis Mundi.

Por conseguinte, todo ataque externo à cidade é um ataque das forças do caos, do mal, do amorfo e das trevas. A guerra torna-se um reflexo da batalha do divino ordenador contra a besta desagregadora.

A vitória arquetípica do deus solar contra a serpente marítima é ciclicamente atualizada em ritos no qual o mundo é como que refundado e reiniciado pela nova vitória da ordem sobre o caos e o indistinto.



O templo é uma imago mundi, uma imagem do cosmos em todos os seus níveis. Ele se encontra no centro do mundo, lá onde a hierofania se deu e reflete a desigualdade ontológica dos espaços para o homem religioso.

Se o espaço sagrado não é contínuo e homogêneo, tampouco o tempo sagrado o é. Há épocas e eras sagradas, tempos de festa, ciclos sagrados, etc. Fora do tempo sagrado há o tempo profano e ordinário, assim como há o espaço profano.

O tempo sagrado, contudo, é reversível. Ele é reatualizado a cada nova festa, a cada ritual que pretende retornar liturgicamente ao tempo sagrado do ''no princípio''. O tempo sagrado não é uma sucessão ou uma duração irreversível. Ele não se perde, é sempre reatualizável, reversível, sempre presente a cada festa, como se fora ab origine, no princípio, lá onde os deuses fundaram o mundo. O tempo sagrado abole o tempo.

O tempo profano, aquele do homem irreligioso, é uma sucessão irreversível de dias irrepetíveis onde nenhuma presença divina ou misteriosa pode ser divisada. O tempo recorda-lhe existencialmente do limite, da finitude, da morte.

O tempo sagrado é um tempo mítico, primordial, original, não-histórico, sem nada anterior a ele, pois é nele que se funda o mundo e, portanto, o tempo. Mesmo quando os fatos sagrados aconteceram em tempos históricos determinados, como na vida de Cristo, os serviços litúrgicos reatualizam esse tempo comum santificado pela presença encarnada do divino.

Para o homem religioso o mundo se renova a cada ano, a cada rito que repete e reatualiza os feitos dos deuses ou do divino realizados ''no princípio''.O mundo reencontra sua santidade original, é refundado como se tivesse saído naquele momento das mãos do divino.

Nessa renovação, o passado é tornado não-ser, como se jamais tivesse existido. As purificações rituais realizam uma aniquilação e uma anulação do passado e de suas mazelas para que possa
nascer o novo. O novo não é a repetição de um ciclo já decorrido, mas o nascimento do mundo totalmente puro, intocado, sem passado, pleno de possibilidades.

Para que tal renovação aconteça, o mundo deve desaparecer totalmente. Essa é a função das festas e ritos orgiásticos e do carnaval. A desordem, a licenciosidade, a inversão das figuras de poder representam o retorno do mundo às águas inferiores, ao caos primitivo e amorfo do qual ele foi retirado pelos deuses.

Nesse dia, a serpente marinha Tiamat vence o deus Marduk para que este possa, na reatualização do rito do ano novo, ''vencê-la mais uma vez'' e fundar o mundo. A cosmogonia é o ato divino supremo, a manifestação de sua superabundância e de sua criatividade. Segundo Eliade, todos os mitos não são mais que variações do mito cosmogônico.

Nas festas sagradas o homem religioso toma contato com a verdade fundamental de que o mundo não é mera natureza - no sentido de um todo ordenado governado leis impessoais e imutáveis - , mas uma manifestação do divino, uma hierofania.

A "nostalgia das origens'' é uma expressão da necessidade do homem religioso de retornar sempre ao Ser, de recolocar-se periódica e constantemente na fonte geradora última de tudo o que há. Só se é plenamente homem quando se imita os feitos dos deuses ou dos heróis. Os relatos míticos fornecem o repertório de ações e de realizações que serão os modelos de toda ação e de toda realização plenamente humanas.

O mundo arcaico, de acordo com Eliade, nada sabe a respeito de atividades profanas. Todos os atos possuem significado definido – a caça, a pesca, a agricultura – de algum modo participam do sagrado. 

Tudo o que é sagrado tem um modelo extra-humano. As únicas atividades profanas são aquelas que não possuem qualquer significado mítico, isto é, que carecem de modelos exemplares. No mundo religioso, quaquer atividade responsável em busca de um propósito definido é um ritual.

A cerimônia de consagração de um rei, por exemplo, não é mais do que uma reprodução terrena da consagração mítica do rei dos deuses. Todo o gestual empregado, em seus mínimos detalhes, corresponde ao gestual do deus ''no início dos tempos''. A legitimidade do rito encontra-se na imitação da ordem eterna (Rta).

Um objeto ou um ato somente torna-se real se serve para imitar ou repetir um arquétipo. A realidade é alcançada somente na repetição e na imitação. O que não tem arquétipo não é real. 

Para Eliade, a ontologia arcaica ou religiosa tem uma estrutura platônica. Platão poderia ser encarado como um filósofo da ''mentalidade primitiva'', um pensador que conseguiu dar coerência e validade filosófica aos modos de vida e de comportamento da humanidade arcaica.

E ele concedia essa legitimidade não só por meios filosóficos, através da dialética e de sua doutrina das Idéias, mas também pelo uso constante de mitos criados por ele mesmo localizados em pontos centrais de seus diálogos.

A busca pelo modelo divino se manifesta também nos ritos iniciáticos. Os ritos de passagem e as iniciações marcam uma mudança radical de regime ontológico e de status social. Nascimento, puberdade, casamento e morte são algumas das ocasiões marcadas por passagens iniciáticas.

A iniciação revela que o homem religioso não se considera pronto, algo dado de uma vez por todas, mas, ao contrário, como um ser que, para se tornar verdadeiramente homem, deve abandonar seu estado inicial e assumir uma elevação ontológica que o conduz para cada vez mais perto dos deuses.

Os ritos iniciáticos comportam provas, morte e ressurreição simbólicas que foram fundadas pelos deuses ou pelos heróis. O iniciado tem abolida a sua humanidade inicial para assumir, em um segundo nascimento, uma humanidade plena, posto que divina.

O iniciado não é somente um renascido, mas um homem que recebeu revelações de ordem metafísica. O homem que passou pela iniciação é aquele que sabe e acesso à espiritualidade se traduz pelos simbolismos da morte e do renascimento. 

O neófito é lançado ao monstro, ao caos primevo, para que seja dissolvido, retorne ao amorfo e, vencendo a serpente, renasça completamente transfigurado, novo e sapiente. O que morre é sempre o inessencial, o irreal, o profano. 






O que renasce é o homem sacralizado, isto é, o homem real, banhado na realidade última. Por essa razão, nos ritos de passagem, o jovem adentra na sociedade dos homens, da qual esteve excluído até então.